sábado, 31 de dezembro de 2022

2022: o resumo da ópera

A parte mais difícil de escrever essas retrospectivas é selecionar uma foto que represente bem o ano. Nunca tem e eu tenho que me virar nos trinta. Dessa vez foi essa aí (ela tá valendo porque foi parte da jornada literária que fiz a Brasília). Fazer o que né. O bom é que, desde que comecei o blog, tenho conseguido manter essa tradição de falar do ano que passou. 


1. Livros resenhados 

Este ano devo confessar que gostei bastante das minhas leituras. Sinto que estou aprendendo a selecionar melhor o que leio. Não tem como evitar: a commodity mais valiosa de todas ainda é o tempo. Então escolher como a gente gasta nosso tempo se torna essencial. Não fui eu quem ensinou isso, aprendi com Bill Gates e Stephen King.

2018: 27 livros
2019: 37 livros
2020: 40 livros
2021: 21 livros
2022: 35 livros

Antes de passar para a tabela em si, só gostaria de ressaltar como fiquei impressionado. Este ano nem parece que li tanto, mesmo tendo alcançado a marca de 35 livros. O que mais me impressiona, no entanto, é pensar que nos últimos cinco anos consegui ler 160 livros. 

E olha que falei do tempo: trabalho oito horas por dia (algumas vezes mais), tenho ministérios na igreja, escrevo minhas coisas, toco minhas músicas, namoro com minha esposa. Não tem segredo. É só saber usar o tempo que temos. Eu não leio horas a fio (é raro), mas, todo dia, antes de dormir, eu pego o livro da vez e leio um ou dois capítulos. Só isso. É bem pouco, mas no final chega nesse resultado que estamos vendo aí. Saca só a tabela.

Jan1) Great Expectations
Fev2) Pais e filhos
Mar3) Notas do subsolo; 4) A morte de Ivan Ilitch; 5) Ben Carson; 6) Flood
Abr7) Madame Bovary; 8) 1984; 9) A dama de espadas; 10) O guia do mochileiro das galáxias
Mai11) O restaurante do fim do universo; 12) Eldorado de Brisa
Jun13) The Gathering Dark; 14) Gente pobre; 15) O retrato de Dorian Gray; 16) Babel; 17) The Old Man and the Sea
Jul18) Olhai os lírios do campo; 19) Os testamentos
Ago20) A vida, o univeso e tudo mais; 21) O falecido Mattia Pascal
Set22) Abram; 23) Da terra à lua; 24) A lua na sarjeta; 25) A moreninha
Out26) Almas mortas; 27) O vendedor de sofás
Nov28) O capote e O retrato (um livro só); 29) Crônica de uma morte anunciada
Dez30) The Hunter and the Valley of Death; 31) A pérola; 32) Panton pia'; 33) Até mais, e obrigado pelos peixes; 34) Noites brancas; 35) Comédias para se ler na escola

Como li muita coisa boa nesse ano, não sei se consigo elencar quem foi o melhor. Talvez fiquem empatados "A morte de Ivan Ilitch", "The Old Man and the Sea" e "Crônica de uma morte anunciada". Todos absurdamente bons, que ficaram ecoando na minha cabeça por semanas mesmo depois que eu terminei a leitura. 

Agora, pra elencar os ruis, infelizmente Flood, Babel e Abram ganham também empatados. Infelizmente, como falei nas resenhas deles, o autor perdeu a mão e a história se tornou terrivelmente engessada e sem graça. Uma grande pena, porque esta série começou muito, muito bem.


2. Concursos literários e produções

Vamos começar logo pela tabela, que fala por si. Desta vez resolvi anotar também não só qual seria o prazo do resultado do concurso, mas também quando eu enviei, pra ter uma ideia geral de quanto tempo leva pra sair o resultado (muito embora eu saiba que isso varia caso a caso).

(lembrando que "Talvez" são aqueles que enviei esse ano, mas que o resultado só sai no ano que vem)

 Obs.: clique na tabela pra ver melhor, se eu tentar colocar ela no tamanho maior, fica tudo cortado).

Novamente, creio que os números falam por si, não é? Consegui enviar pra ainda mais concursos que no ano passado (foram 35 da última vez), e cheguei a 46 esse ano. Em 2022, cheguei à marca de 7 textos publicados. Isso é bom ou ruim? Eu não sei. Porque se compararmos com o total de publicações, temos aí uma crescente, mas não uma crescente proporcional.

Isso quer dizer que, embora neste ano eu tenha novamente criado um novo recorde pessoal, na proporção isto não significa que meu aproveitamento tenha sido melhor. Para fins de registro, eis a situação:

2018: 18 textos enviados, 4 aprovados → 22% de aproveitamento
2019: 17 textos enviados, 4 aprovados → 23% de aproveitamento
2020: 18 textos enviados, 6 aprovados → 33% de aproveitamento
2021: 35 textos enviados, 6 aprovados → 17% de aproveitamento
2022: 46 textos enviados, 7 aprovados → 15% de aproveitamento

O que estes números significam, de fato? 
Porcaria nenhuma. 
São só números. 

O que vale mais a pena no currículo? Com certeza é ter mais publicações. Tudo que isto indica é que neste ano resolvi aceitar mais "nãos", já que era evidente que eu jamais conseguiria receber apenas "sims". Isto serve pra mostrar também os bastidores de quem é selecionado em concursos literários: a quantidade de "nãos" é sempre muito maior do que os "sims". Aceitar e saber lidar com este fato é essencial pra quem quer ser um verdadeiro artista.


Pra finalizar este tópico, tenho pelo menos dois pontos que valem a pena ser ressaltados. 
1) Publiquei meu primeiro conto em inglês! Ele ainda não saiu na revista literária dos EUA, mas assim que ele ficar disponível, vou compartilhar com todo mundo!
2) Terminei a edição de "Pois é e outos microcontos", meu próximo livro de microcontos a ser lançado em Março/2023 se tudo der certo!


#O resumo da ópera
  • Livros lidos: 35
  • Textos escritos: faz cinco anos que não mantenho esse controle, evidente que não é agora que vai começar né
  • Textos enviados pra concursos literários: 46
  • Textos aprovados: 7
No fim das contas, considero que 2022 foi um ano sólido, estável. Se não teve nenhuma grande revelação, também não teve nenhuma grande decepção — algo que, tendo em vista os últimos anos, eu considero até mesmo um avanço. Para 2023, quero escrever meu primeiro romance. Isto é oficial. Eu deveria tê-lo escrito este ano, mas, bem, não deu né, fazer o que. Vamos olhar pra frente, colocar a bunda na cadeira e escrever. 

Na arte, assim como na vida, não tem segredo. Para conseguir fazer algo bem feito: é necessário esforço. Então venha, 2023. Venha. 

sábado, 17 de dezembro de 2022

Resenha — Comédias para se ler na escola

VERÍSSIMO, Luis Fernando. Comédias para se ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Depois de ler este livro, duvido que algum jovem ainda seja capaz de dizer, sinceramente, que não curte ler. (p. 15)
A primeira vez que li este livro eu estava no Ensino Fundamental. E a citação acima, de Ana Maria Machado, não podia ser mais verdadeira. Por isso preciso começar esta resenha tirando o chapéu para ela, que selecionou e organizou as crônicas e textos de Luis Fernando Veríssimo que compõem essa obra. Não sei se este livro teria decolado e alcançado tantos se não fosse pelo trabalho dela.

A obra em si é uma coletânea de textos, crônicas, contos de Luis Fernando Veríssimo. Os textos são sempre curtos, bem-humorados, fáceis e divertidos de serem lidos por leitores de todas as idades, de todos os estilos literários. Não consigo imaginar alguém que sinceramente não consiga gostar dessa obra.

Embora já tivesse lido-a há um bom tempo, várias das histórias eu lembrava direitinho como começavam e terminavam. Isto não significa, porém, que não houve algumas que me surpreenderam e outras que me fizeram gargalhar (O recital foi uma delas).

Olhando para o título das histórias, vejo que os meus se parecem muito com estes. Apenas duas palavras, quando muito três ou quatro. Títulos simples e que tentam traduzir bem o conteúdo do texto. Gente... tudo indica que fui influenciado pelos Veríssimos novamente, mesmo sem perceber. Até que ponto esse povo consegue ser tamanha influência na minha vida?!

Não tenho resposta pra isso, porque quanto mais eu me aproximo deles, cada vez descubro um pouco mais de mim mesmo nos textos. É por isso que esse livro vale a pena ser lido.

Semana passada uma mãe entrou em contato comigo pedindo que eu sugerisse leituras para seu filho pré-adolescente que tem se interessado bastante pela leitura. Na ocasião, só me veio à mente Sherlock Holmes e Guia do Mochileiro das Galáxias. 

Dias depois, contemplando minha estante, vi Comédias para se ler na escola. Naquele momento eu sabia. Tirei o livro da estante, ciente de que o leria pela última vez. Está na hora de passar essa belezura para outra pessoa desfrutar. 

Não se engane, isso não é uma despedida. Vou comprar outro exemplar pra mim depois. Tá achando que sou besta? 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Resenha — Noites brancas

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Noites brancas. Jandira: Principis, 2019.


Quem diria que o segredo pra ler bastante é ficar doente, né? Pois é. Consegui pegar uma senhora gripe e disso resultou ler vários livros em pouco tempo. Tá certo que não eram livros grandes; mas quando não se tem energia pra mais nada, não resta opção senão deitar e devorar livros. Fato aleatório à parte, vamos à resenha.

Não é de hoje que tenho elogiado as edições da Principis. São edições de baixo custo, com papel simples, mas tudo via de regra bem trabalhado pra fornecer ao leitor aquele custo-benefício maroto. Porém, no caso de "Noites brancas", achei que deixaram a desejar no formato do livro. Por ser uma história pequena, talvez pudessem ter diminuído as dimensões, pra que a leitura ficasse mais confortável e o leitor não ficasse com medo da fragilidade do papel.

Além disso, penso que a tradução (ou o seu revisor) deslizou em alguns momentos de inconsistência (por exemplo, em alguns lugares era Pushkin, enquanto em outros era Púchkin). E, sinto dizer, a fonte que os caras escolheram para os títulos dos capítulos foi horrível. Ela mais confunde o leitor do que ajuda, ficando até difícil de distinguir as letras.

Bom, sobre a história, devo contar outra anedota e dizer que este livro teve sobre mim um efeito Mandela: achei que já tinha lido "Noites brancas", mas estava confundindo com "Noite" de Érico Veríssimo (livro que, aliás, tenho que resenhar aqui porque é muito bom).

Em Dostoiévski, acompanhamos os encontros noturnos entre o Sonhador e Nástienka, às margens de um rio em São Petersburgo, na época das "noites brancas", que são um fenômeno natural do mundo setentrional em determinadas épocas do ano, quando o sol se põe mas ainda permanece sobre a linha do horizonte, trazendo claridade ao céu noturno.

Quem conhece Dostoiévski (e olha que já resenhei bastante coisa dele aqui), sabe que ele tem um estilo muito característico. O que choca em "Noites brancas" é que não encontramos nada desse estilo. Pelo contrário, estamos diante de um Dostoiévski romântico! Eu nem sabia que isso poderia existir! Saca só a abordagem poética do cara no trecho abaixo:
Diga-me por que, Nástienka, por que então nesses momentos sente-se o espírito constrangido? Por que a partir de um feitiço, de um árbitro misterioso, o pulso acelera, jorram lágrimas dos olhos do sonhador, ardem as suas bochechas pálidas e úmidas e esse prazer irrefutável preenche toda a sua existência? (p. 35)
Dostoiévski? É você mesmo, meu fi? Se for você, devo confessar que em alguns momentos o tom geral dos diálogos é tão poético que tive dificuldade de acompanhar a narrativa embutida neles. O autor aqui se aproxima demais daquele lirismo em prosa que tanto caracterizou os escritores do período romântico.

Isto não significa, é claro, que não haja momentos belos na narrativa e frases construídas que me fazem parar e relê-las. Pode ser besteira minha, mas achei esse parágrafo abaixo tão bonito, que voltei nele mais de uma vez. Acho que foi o impacto da simplicidade somada à beleza:
O meu coração estava cheio. Eu queria falar, mas não conseguia. (p. 67)
Ah, e que final, senhoras e senhores. Que final! É ali que nos encontramos com o Dostoiévski que tanto conhecemos — ou, pelo menos, com um lampejo daquele autor que nos acostumamos a ver. É Dostoiévski com outro tempero, sei lá, não sei explicar. No final claramente vemos que é ele, mas... é como se o víssemos usando outras roupas pela primeira vez, com um penteado novo, um perfume diferente. Claramente é a mesma pessoa, mas não é. Estranhamente familiar e desconhecido ao mesmo tempo. 

Novamente sendo surpreendido com este cabra. Um dia, Dostoiévski, terei lido sua obra completa, anota aí.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Resenha — Até mais, e obrigado pelos peixes

ADAMS, Douglas. Até mais, e obrigado pelos peixes!. São Paulo: Arqueiro, 2010.


E aqui estamos nós de novo com mais um livro da "trilogia de cinco" escrita pelo fenômeno-gênio da literatura de ficção científica / zoeira desmedida (vulgo "non-sense"), Douglas Adams. Este é o número 4, falta só mais um pra ter oficialmente relido todos. Pra fins de registro, os outros livros (e suas respectivas resenhas) são: O guia do mochileiro das galáxias, A vida, o universo e tudo o mais, e O restaurante no fim do universo.

Em Até mais, e obrigado pelos peixes, nos encontramos num grande paradoxo: Arthur Dent está de volta à Terra. É isso. Por que é um paradoxo? Simplesmente porque a Terra foi destruída no primeiro capítulo do primeiro livro desta saga. Como diabos, então, ele está de volta ao planeta, como se nada tivesse acontecido?

Novamente estamos diante do brilhantismo que já cansei de falar nos outros livros de Douglas Adams: frases certeiras, parágrafos lotados de inuendos e informações interessantes, páginas repletas de ironias e indiretas. O cara é um absoluto gênio em conseguir transmitir tanta coisa com tão pouco.

Nós já estamos num ponto com essas resenhas que eu praticamente já não tenho mais o que falar dos livros. Só me restaria destrinchar o enredo aqui, mas acho que não convém, porque não quero roubar o leitor do espetáculo que são estes livros. Cada um vale MUITO a pena ser lido.

O grande segredo da leitura é: não leia tudo de uma vez. Dê a você mesmo tempo para digerir e absorver tudo. Esse foi meu erro há anos atrás, quando li-os em sequência e de uma tacada só. Agora, anos depois, aprendendo com a experiência, posso garantir que tive uma leitura bem melhor. 

Aliás, esse livro me mostrou um erro: eu achava que Arthur Dent tinha aprendido a voar numa situação bem específica, num ocaso bem dramático (que provavelmente está no próximo livro). Mas foi tudo um efeito Mandela, porque na verdade Arthur já tinha aprendido a voar bem antes.

Por fim, acho que meu único comentário de fato sobre este livro em específico é que acho que neste volume, mais do que nos outros, o autor não tem pena de quebrar a quarta parede e várias vezes conversar com o leitor, em trechos super inspirados como esse:
Os que querem respostas devem continuar lendo. Outros podem preferir pular direto para o último capítulo, que é bem legal e é onde aparece o Marvin. (p. 99)
No fim das contas, posso apenas recomendar o manual oficial de qualquer nerd que se preze: a coleção do Guia do Mochileiro das Galáxias.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Resenha — Panton pia'

FIOROTTI, Devair; FLORES, Clemente. Panton pia': a história de Macunaima / Makunaimü Pantonü. Boa Vista: Wei, 2019.


Essa com certeza vai entrar pra lista de resenhas estranhas que eu faço. Não só porque este livro é bem diferente do que já li por aí, como também tem alguma carga emocional por ter sido escrito pelo finado Devair Fiorotti, homem que foi um marco para a arte roraimense.

Deixe-me começar pela edição, que é um primor. O livro não tem o tamanho tradicional de 14x21cm, mas sim 23x28cm. A princípio achei o tamanho exagerado, mas sinceramente acho que compensa. Porque as ilustrações internas ganham maior destaque e elas, em si, já são um espetáculo à parte. Além disso, imagino que o tamanho e as figuras possam ser bons atrativos para um público leitor infantil.

Não curti que a obra não tem numeração de páginas (que me quebrou as pernas na hora de fazer as citações rsrsrs), mas isso é de menos. A qualidade do livro é sensacional: gramatura excelente, capa bem trabalhada, design das páginas muito bem trabalhado valorizando as ilustrações. Talvez a fonte escolhida tenha sido um pouco metódica demais e não tenha visualmente a mesma pegada do resto do livro (mas a que ponto chega a frescura de alguém, né? Saudades do tempo que nem pensava nessas coisas).

Além disso, há algo de sensacional na obra: ela é bilíngue. Ao contar uma história do povo Taurepang, o autor teve a sensibilidade de que o registro não fique apenas no idioma português, mas no idioma pátrio daquele povo. Fantástico.

E já começando a falar um pouco sobre a obra, até agora ainda não entendi direito o que li. Foi um mito? Uma obra de ficção? Foi um trabalho acadêmico? Tudo isso se mistura demais nessa obra, porque foi justamente parte da pesquisa acadêmica feita pelo autor. Além disso, tenho certeza que há antropólogos e outros pesquisadores bem mais qualificados que eu pra dizer do que se trata de fato esta obra. Para mim, acho que, no fim das contas, este livro conta uma história.

A história é retratada como sendo de Makunaima. Mas na verdade durante o trajeto todo Makunaima está com seu irmão Xicö, que, por sinal, é o verdadeiro peralta e esperto da história. A narrativa inicia com os dois na infância e sua mãe, saindo de casa para ir atrás do pai que foi caçar. Porém, no meio do caminho são enganados, perdem a mãe e agora têm que seguir viagem sozinhos.
[...] tinha pé de patauá e pé de inajá bem perto assim como tá aqui, ao redor de nós, e outro também aí, do outro lado! Pé de najá, pé de patauá. O qu é que Macunaima fez? Vão subir lá. Volta a subir no pé de inajá. Ficaram lá. (p. ?, mais ou menos do meio pro fim da história)
É evidente que a estrutura da narrativa é muito distinta das que estamos acostumados a ver, especialmente porque se trata de uma cultura diferente, de toda uma construção linguística diferente. Então não há jornada do herói, tampouco fica explícita quais as necessidades ou objetivos dos personagens, há apenas uma série de acontecimentos que acompanhamos.

Perguntei-me acima se o livro era um mito, porque em vários momentos da história vemos ações dos personagens que levam o narrador a dizer coisas como "e é por isso que até hoje é assim". Além disso, pelo pouco que pude extrair dos personagens, tanto Makunaima quanto seu irmão são capazes de se transformar em diferentes animais para sair das mais diversas situações. Durante toda a narrativa, os dois se provam bem espertos, algumas vezes mesquinhos e em outras vingativos.

Entre os personagens, além dos irmãos, vale destacar: Dona Sapa, Onça, Cotia, Senhor Garça, e o meu favorito: o Quatipuru. É o meu favorito porque, gente, talvez eu seja apenas urbanizado demais... porém eu não fazia ideia que na Amazônia existiam esquilos! E creio que jamais saberia disse se não tivesse lido este livro!

Bom, no fim das contas, achei a narrativa incompleta. O próprio narrador, seu Clemente Flores, da Comunidade Sorocaima I, Terra Indígena São Marcos, admite que algumas coisas ele não se lembra direito e outras ele só está contando porque foi assim que contaram para ele. São os ossos do ofício da tradição oral. Fazer o que, né? Acho que Makunaima nunca terá sua verdadeira história revelada. Será para sempre um símbolo do enigma que é a cultura brasileira.

sábado, 10 de dezembro de 2022

Resenha — A pérola

STEINBACK, John. A pérola. Rio de Janeiro: BestBolso, 2007.


Eu não entendo por que há livros que me batem tanto. Não entendo como pode haver uma história tão bem escrita que fica reverberando na minha mente por tanto tempo, mesmo depois que eu já a li toda. É um verdadeiro mistério que eu fique regurgitando e procurando cada pequeno significado escondido em frases, expressões, acontecimentos, linhas, parágrafos. Como pode?
Contam na vila a história da grande pérola [...]. Falam de Kino, o pescador, de Juana, mulher dele, e do garoto Coyotito. E tantas vezes foi contada esta história que se gravou na cabeça de todos. E como acontece com todas as histórias repetidas que ficam no coração dos homens, há coisas boas e más, coisas pretas e brancas, bens e males sem nada no meio. (p. 6)
Eu já havia lido Steinback antes com "Of mice and men" (resenha aqui) e já sabia que o cabra era bom. Foi por isso que encontrei esse livro baratinho na Estante Virtual e aí resolvi comprar. Nossa como valeu a pena. Uma edição de bolso maravilhosa de se ler e de se ter.

A história de "A pérola" é exatamente essa que está na citação aí em cima. O que eu gostaria de chamar a atenção é que o livro encontra-se naquele limiar misterioso na língua portuguesa entre o "conto" e o "romance". Ao mesmo tempo que não é um romance literário (por conta da sua extensão) também não é um conto (por conta da sua extensão). Ou seja, vive no limbo do "pequeno demais pra um livro" x "grande demais para um conto". 

Há quem chame esse limiar de "novela". Mas a verdade é que o próprio termo "novela" já traz tantos significados no português brasileiro que é difícil usar o termo assim. Quiçá uma "novela literária"? Ou uma "noveleta"? Que tal simplesmente "um conto grande pra caramba"? Ou "um livro pequenininho"?

A verdade, porém, é que Steinback consegue escrever pouco e passar MUITO. Pra começar que a sua narrativa é arrebatadora. Já no primeiro capítulo somos fisgados sem dó nem piedade, e não nos resta outra opção senão continuar lendo a história até o fim — que, aliás, não decepciona.

É um absurdo a capacidade do autor em inserir pequenos símbolos no meio do texto sem que eles se tornem supérfluos ou prejudiquem o andamento da história. É justamente o contrário! Ele constrói o cenário ao mesmo tempo em que apresenta os símbolos. Que isso, mano! Que habilidade fenomenal é essa, que elegância no uso da literatura como arte e como ferramenta!

Confesso que terminei de ler o livro me tremendo um pouco. Não consegui desgrudar das páginas e, quando tudo acabou, fiquei me perguntando e me perguntando e me perguntando. Tenho certeza que há muitas coisas que eu deixei passar, simplesmente porque este não é o tipo de livro que você consegue absorver tudo numa lida só. 

Obra que vai ficar bem guardadinha na minha estante, esperando a revisita.

domingo, 4 de dezembro de 2022

Resenha – The Hunter and the Valley of Death

McPHERSON, Brennan. The Hunter and the Valley of Death. Sparta: McPherson Publishing, 2018.


Então. Aqui estamos nós com mais um livro de ficção cristã de Brennan McPherson. Finalizei a leitura da série "The Fall of Men", resenhando todos eles (em ordem de publicação: Cain, Adam, Flood, Babel, Eden, e Abram), e agora foi a vez de ver o último livro que faltava dentre todos os que ele já publicou. Vamos à resenha.

Este livro tem uma pegada diferente da série anterior apenas no sentido de que não trata de gente que realmente existiu. Enquanto em "The Fall of Men" o autor mistura fantasia com ficção bíblica (e o faz muito bem), dessa vez ele mistura fantasia com ficção cristã. 

A história é de um Caçador, que, para salvar seu Amor, desce até o Vale da Morte, onde ele tem um único objetivo: matar a Morte, antes que ela o alcance. 

O livro é boa ficção cristã, com uma abordagem que lembra muito os simbolismos que Lewis fez em Nárnia. Cada personagem tem um significado, há várias referências explícitas ou veladas a diferentes textos ou expressões bíblicas. 

Pra mim o livro tem boas sacadas, utilizando conceitos e trabalhando o desenvolvimento da história pra fortalecer estes conceitos. Porém pra mim ele peca pelo excesso de descrição e até de narração. Mesmo nos momentos que deveriam ser clímax, o autor opta por simplesmente narrar o fato. 

Eu posso dar uma colher de chá porque o gênero fantasia é um gênero muito descritivo. Quando se fala de uma cidade de elfos no meio da floresta mágica... como você vai criar referências para o leitor se não descrever essa cidade minimamente? Mas pra mim o autor precisava ter feito isso com alternância, aos poucos, em vez de encher vários parágrafos com muitas informações pro leitor. Informações essa, diga-se de passagem, que nem sempre eram relevantes.

Além disso, pra mim final foi um pouco decepcionante: o cara faz tudo errado e ainda consegue o que quer. A jornada dele não me pareceu completa, as mudanças soam muito superficiais. O personagem mais fala que mudou, do que de fato demonstra que mudou. Do meu ponto de vista as mudanças ocorrem apenas no epílogo, ou seja, depois que a história já até acabou.

Não obstante, ratifico quando disse que é boa ficção cristã, porque o autor claramente conhece suas referências e sabe do que está falando. Se eu não curti muito o desenvolvimento das premissas que o livro tinha para oferecer, bem, aí são outros quinhentos. No fundo acho que é um livro que vale a pena para introduzir pessoas a uma boa literatura cristã.

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Resenha — Crônica de uma morte anunciada

GARCÍA MARQUEZ, Gabriel. Crônica de uma morte anunciada. Rio de Janeiro: Record, 2006.


"Mataram Santiago Nasar!" (p. 105)
Juro que não é spoiler, está na contracapa do livro. Este não é um livro policial, não tem mistério nenhuma aqui. Santiago Nasar realmente morreu e nada é segredo. Todos sabem quando foi, como foi, por que foi, e até mesmo quem matou. Realmente não tem segredo. E é justamente por isso que esse livro não deveria ser tão bom. Mas é.

Não faz o menor sentido. O livro é uma grande fofoca. Nós temos um narrador que nos informa do fato e vai aos poucos destrinchando os detalhes. Detalhes estes que ele consegue ao conversar com as várias pessoas que estavam na pequena cidade no dia em que aconteceu. É tudo um super "casos de família", em que não há de fato nenhuma grande novidade, mas, ainda assim, ficamos vidrados na leitura, curiosos para qualquer sórdido detalhe que possa surgir.

A estrutura do livro é circular. A narrativa toda é de alguém nos contando o que aconteceu naquele dia repetidas vezes, só que de pontos de vista diferentes. É isso. Simples, simples, simples. E ao mesmo tempo impressionante. 

E não é só a estrutura que assuta. É o conteúdo. O livro é repleto do que há de mais humano, no pior sentido da palavra. No comportamento das pessoas (desde o que morreu, até as autoridades locais), no modo de pensar daquela sociedade, no encadeamento dos fatos que revelam pelos quais o autor consegue revelar os diferentes personagens.

É brilhante. É absurdamente brilhante.
Mas não deveria ser. Não faz o menor sentido. Não se engane achando que a estrutura circular do livro priva o leitor de pequenas reviravoltas e até mesmo um clímax no final. Nossa... e que final! 

Essa resenha já vai acabar por aqui, porque eu ainda não consegui digerir como uma história tão simples conseguiu ser contada tão bem. Gabriel García Marquez, eu definitivamente preciso te conhecer melhor.

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Resenha — O capote e O retrato

GOGOL, Nicolai Vassiliévitch. O capote e O retrato. Porto Alegre: L&PM, 2022.


Não tem jeito, eu gosto de pocket books. É legal demais ter um livrinho que cabe na palma da mão, que dá pra levar com facilidade pros lugares. É simplesmente gostoso de ler e, pelo visto, a L&PM é a melhor nisso, muito embora eu tenha visto alguns problemas grosseiros nessa edição como textos com travessões e aspas ao mesmo tempo, além de erro na digitação de "Petersburgo". Embora, por outro lado, penso que o tradutor fez excelentes escolhas (como a palavra "esculhambação").

Neste livro encontramos duas histórias de Gogol. Quando vi o nome do autor eu sabia que precisava comprar (vide a resenha de Almas Mortas). E aqui encontrei dois contos do autor: "O capote" e "O retrato". No final do livro tem uma cronologia da vida do autor que preenche quase umas vinte páginas. Sinceramente achei desnecessário e a impressão que me passou é que colocaram ali só pro livro não ficar muito fino, uma vez que se trata de dois contos. Mas vamos a eles.

Em "O capote", temos a história de um medíocre funcionário público russo que precisa trocar seu capote (casaco) por um novo. Satisfeito com sua vida de mesmice, a troca do casaco traz algumas reviravoltas no seu cotidiano — não necessariamente para melhor. Nele é possível encontrar novamente o estilo irônico e mordaz de Gógol que tanto me conquistou em "Almas Mortas". Deste conto trago esta citação, que descreve bem a miséria humana presente nele:
Então, minha boa senhora, não perca seu tempo inultimente. Vá imediatamente comprar um caixão de pinho, pois um de carvalho seria demasiado caro para ele. (p. 42)
Já "O retrato", por outro lado, me pareceu um conto mais "europeu", se é que isso faz sentido. Talvez o que eu queira dizer é que enquanto o primeiro está mais próximo da Rússia realista, ou seja, aquela Rússia de Dostoievski, este segundo está mais próximo de uma Rússia romantista, quiçá como algo que se encontra em Turguêniev (fiz uma resenha de uma obra dele, chamada "Pais e filhos") ou em vários dos autores franceses e ingleses que marcam o romantismo europeu. Este trecho talvez deixe mais claro o que quero dizer:
O erro está na falta de luz. A mais maravilhosa paisagem parece também incompleta quando o sol deixa de iluminá-la. (p. 65)
Neste conto nos deparamos com a história de um quadro "amaldiçoado" (se é que podemos classificar assim) e um pintor que o encontra. Na primeira parte do conto temos a história em si e na segunda parte um pequeno histórico de como o quadro surgiu. Este é um daqueles casos emblemáticos em que fica difícil descrever certinho o que é um "conto", uma vez que esse aqui, além de ter várias páginas, ainda tem uma divisão interna bem marcante.

Bom, no fim do dia, o que importa é que o livro é muito bom de ler. Creio que essa diferença nas características dos contos mostrou bem a versatilidade de Gogol, uma vez que ambos são bem interessantes e um não ofusca o outro (pelo menos não achei). Este com certeza é mais um daqueles livrinhos pra se ter na estante e revisitar no futuro. 

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Resenha – O vendedor de sofás

BERNARDES, Anderson; MARCON, Franciele. O vendedor de sofás. Itajaí: Ipêamarelo, 2022.


Este livrinho chegou pra mim como premiação do 3º Concurso de Minicontos da editora Ipêamarelo. Mais uma daquelas clássicas antologias que encontramos por aí, distribuídos numa edição pocket book (devo admitir) muito fofinha. Literalmente cabe na palma da mão. Achei o acabamento muito bem feito de modo geral, dá pra ver que é um trabalho de qualidade.

Cada página do livro é uma história, tipo eu fiz no "É a vida: microcontos de risadas, amor e morte". Mas a verdade é que não gosto muito de coletâneas de autores. O livro nunca tem uma identidade muito certa. Os estilos são diferentes, os tópicos são diferentes, os gêneros são diferentes. Por mais que se tente organizar o livro, não fica algo uniforme. 

Por isso, limitei-me a destacar aqui os contos e autores que gostei. Não vou transcrever aqui os contos deles porque já estão publicados no livro e, como os contos são bem pequenos, pra transcrever eu teria que copiar praticamente o texto inteiro. Vamos aos destaques:
  • Branca Sobreira traz o conto "The Hand". É cru, pesado, real. Gostei DEMAIS da abordagem dela, ao ponto de ir pesquisar no Google outros textos dela e gostei de todos. Se peca em alguma coisa aqui é ter colocado o título em inglês – não colabora em nada com o conto e só serve pra ser um estrangeirismo que diferencia o título.

  • Cintia Laud, no conto "Não há cordões em mim", constrói um clima muito bom, um ambiente bem trabalho em pouco tempo, com direito ainda a uma excelente revelação no final, pra dar aquele punch. Tem uma abordagem mais seca, direta, mas sem revelar demais. Muito bom o texto.

  • Glauber Santos Wisniewski, no conto "O motorista do shuttle ouvia jazz", tem um estilo clean, agradável de ler. Dessa vez não condeno o estrangeirismo, porque casou com o tom geral do conto, contribuiu para dar um ar de "exterior" e viagem – ou seja, o título serviu a algum propósito dentro do texto, não sendo só um título em si.

  • Quando li Isadora Rodrigues, em "Um estalo", senti que não foi o melhor trabalho da autora, mas tem potencial.

  • Marina Barrichello Marone ganha fácil o título de melhor conto de terror do livro com a história narrada em "A janelinha". 

  • E por fim Wanderson Mota Silva fica com o título de melhor trocadilho no conto "A toalha" – conto este que encerra a coletânea. 
Incomodou-me um pouco o aspecto visual dos contos. A maioria das histórias no livro são "blocadas", ou seja, um único parágrafo enorme com todas as informações. Acho que isso foi por causa do método de submissão do concurso, que era preenchendo um formulário no Google e isso acabou levando as pessoas a essas construções. (Interessante essa influência aspecto visual não só do texto final, como também na sua produção.)

O livro é um pouco cansativo de ler, não sei se por conta desse aspecto blocado, ou talvez pela disposição dos contos, que tendem a ser muito densos. Ou seja, toda vez que a gente passa a página, temos que refazer nosso comprometimento mental de começar uma história do zero. O fato de ela ser "micro" facilita bastante; mas quando o texto é muito pesado, isso cansa. Não que isso seja ruim, talvez seja até bom pra que o leitor seja convidado a revisitar o livro com frequência. Só foi algo que notei.

Não gostei da maioria dos textos, simplesmente porque não me chamaram a atenção. Vários deles me fizeram revirar os olhos com muito lirismo em prosa que me fez questionar se os textos eram mesmo contos ou divagações escritas num caderno estudantil.

É inevitável que eu faça uma comparação com o "É a vida" e agora com meu novo livro, o "Pois é". Meus livros têm a vantagem de terem sido escritos por um único autor, o que ajuda demais a manter o estilo e a coesão interna da obra. De modo geral, penso que a disposição dos contos nos meus também foi mais assertiva, deixando espaços pro leitor respirar com contos mais leves e intercalando temas de maneira mais sensível. Só que falar do próprio livro é fácil, né? Melhor parar por aqui então.

Aliás, não entendi o porquê de "O vendedor de sofás". O título faz referência a um único conto dentro da obra e não transmite bem o que o livro tem a apresentar. Mas não dá pra negar que o título é bem legal. Um daqueles clássicos que faz a gente, no mínimo, pegar o livro pra ler a sinopse.

De modo geral, acho que a editora Ipêamarelo fez um bom trabalho com o que tinha em mãos. A produção foi bem feita, mesmo que o conteúdo – pra mim – não tenha sido dos melhores. Mas não tem muito o que fazer, este será sempre o resultado dessas coletâneas. 

Este é um livrinho para se ter na mochila, ou pra levar no banheiro. Não vai mudar sua vida, algumas poucas histórias terão real impacto – o que não é demérito nenhum para um livro, nem todos têm esse propósito. Em suma, é uma obra que pode ser um bom passatempo. É isso. 


P.S.: tem um conto meu neste livro. Clique AQUI para ler.

Buraco

Tem um buraco na minha sala que leva ao Inferno. O demônio sai de lá de vez em quando pra relaxar.

— Bom dia, Rosana.
— Oi, Naberus. Vou fazer café, tu quer?
— Só se for sem açúcar e bem forte, igual a gente toma lá no inferno. 

Passei o café e servi-lhe uma xícara. Ligamos a TV, era o jornal. Guerras, pandemia, corrupção. O demônio puxou uma prancheta e começou a anotar.

— Naberus, tu bem que podia falar com teu chefe pro Brasil ter uma folga, né?

Ele bebericou o café e balançou a cabeça:

— Rosana, tu acha que o diabo vai perder tempo lascando o Brasil?

Naberus levantou e foi lavar a xícara. Rosana espiou a prancheta: “Brasil, pesquisa de campo.” Da cozinha, ele disse:

— Eu venho aqui é pra aprender.


Conto publicado na coletânea "O vendedor de sofás", fiz uma resenha dele AQUI.

Remanso

— Doutor, fui picado por um carapanã no lavrado.
— Quem não foi, né? — ele sorriu. — Deixe eu ver.

Apresentei-lhe minha mão arroxeada e inchada, mostrei bem pra ele as veias onde os vermes passeavam.

— Que é isso?!
— Doutor o senhor já foi a um igarapé num fim de tarde?
— Sim, mas o que isso…
— O senhor sabe aquele horário em que os piuns e carapanãs saem? Bem perto do pôr do sol?
— S-sim.
— Então o senhor sabe que naquela hora, aquela mesma hora, em que Cruviana não sai, fica escondida com medo do silêncio, aquele momento entre a luz e a escuridão em que você tá mas não tá ali, sabe? Em que os buritizais ficam parados, esperando pra ver o que vai acontecer naquela hora específica.

Levantei da maca devagar e caminhei até ele. Minha mão roxa pesava e doía, eu comecei a suar. O médico deu dois passos pra trás, ele olhou pra porta, mas então já não tinha porta porque era o crepúsculo.

— O que tá acontecendo? — tinha medo na voz dele.
— Não tá acontecendo nada, nada mesmo. O senhor não entende que é exatamente isso? Não acontece nada. Não é mais dia, mas também não é mais noite. E só o que resta é o enxame de insetos que vem nos morder, tirar o sangue, a sanidade, porque eles entram no seu olho, no seu nariz, no seu ouvido, e não importa quanto você se debata eles não param de te atacar, porque você é só um e eles são centenas, milhares, centenas de milhares.

E no fundo dos olhos daquele médico eu vi que ele sabia também. Quem é de Roraima sabe. Sabe que quando o mormaço entorpecente vem, não tem rede que resolva, não tem ventilado que aguente, não tem ninguém que consiga suportar. Todo mundo acha que gosta do silêncio, até a hora que ele vem.

O médico continuou recuando até que os pés dele entraram na água do igarapé. A água também corria sem fazer som. Ele estava descalço e agora eu também. Na verdade, estava nu. Porque agora eu já não conseguia impedir o fluxo, e senti quando meus olhos começaram a inchar e o mundo começou a ficar arroxeado e tudo se espalhava. O médico ainda conseguiu gritar:

— O que é isso?! — e já o grito dele estava abafado, engolido pela infinitude do lavrado.
— Silêncio, doutor… — eu sussurrei.

Silêncio…


Conto publicado na Newsletter da revista Égua Literária, disponível AQUI.

E-mail

– Pode enviar.
– O quê?
– O e-mail.
– Ué, já enviei.
– Eita, já? Pera, deixa eu ver aqui. Ah, é. Chegou mesmo. Vish, mas veio sem anexo.
– Alô? Oi? A ligação está cortando.
– Eu disse que o e-mail chegou sem anexo.
– Sim eu mandei o e-mail, já disse.
– Já entendi isso, mas estou dizendo que veio sem anexo.
– Oi? O anexo? Sim, eu fiz a tabela, já te enviei.
– Marcos, eu tô dizendo que veio sem anexo. Sem. Anexo. Ouviu?
– Hum… acho que entendi agora. Foi sem anexo, é?
– Isso!
– Ah, tá. Desculpa. Fica aí na linha que vou enviar de novo. Enviando. Nossa, a ligação tá cortando demais, difícil te ouvir. Pronto, agora foi! Recebeu?
– Recebi sim.
– Pronto, tá aí o e-mail. Posso ir?
– Marcos.
– Que foi?
– Veio sem anexo.


Conto publicado na coletânea "A vida é uma piada", da editora Apparere. Disponível para compra AQUI.

Anfêmero

Há um deserto no fundo do mar. Lá os crustáceos andam sem ver o fim do mundo, apenas contemplando os pássaros-peixes que os sobrevoam com ar ameaçador. O crustáceo precisa ser esperto, as coisas não são mais como antigamente.

Antes, ainda se podia passear, levar a família para ver um pequeno gêiser, essas coisas que só quem vive no fundo do mar sabe apreciar. Mas hoje não tem mais condições. Cada esquina é uma moreia, um molusco bêbado perdido, um detrito que caiu do espaço.

O fundo do mar é um deserto, mas não significa que a gente não posso gostar do deserto.

Existe um lugar, porém, que a gente gosta de evitar. São as fossas oceânicas. Reza a lenda que lá embaixo existem seres horripilantes e é para lá que vão todos os peixes que boiam. Sim, é um paradoxo. Eles boiam, mas no final vão parar no mais profundo do mar.

O fundo do mar é cheio de histórias. Se olhar para baixo, tem as fossas; mas, se olhar para cima, tem o Grande Espaço. Não falo ali onde voam peixes, falo de onde caem os detritos. Há histórias até de gente que foi abduzida. Nunca conheci um desses, só ouvi falar. Há histórias.

Certo dia eu andava com minha esposa à procura de plânctons. Nossas patas vasculhavam a areia. Procurávamos e montávamos guarda ao mesmo tempo. Um peixe sobrevoou nossa cabeça e tentamos nos enterrar na areia, mas ele falou conosco:

– Esperem! Estou perdido.
– Como é?
– Vocês sabem o caminho para as fossas?

Eu e minha esposa nos entreolhamos. Era um robalo qualquer, não havia nada de especial nele, parecia inocente o suficiente.

– E o que diabos o senhor vai fazer lá? – minha esposa interpelou.
– Vou buscar meu pai.

Silêncio. Um vento de ondas levantou a poeira no fundo do mar e eu tossi.

– O senhor está falando sério? – dessa vez eu que falei.
– Já disse que sim. Vocês sabem o caminho ou não?

Novamente ficamos em silêncio, mas viramos a cabeça para o leste. O robalo entendeu tudo e pegou o rumo à toda velocidade.

– Moço, faça isso não – minha esposa disse, mas ele já não conseguia escutar.

O fundo do mar é um deserto e no deserto a gente vê miragens, coisas estranhas. Será que aquele peixe estava lá mesmo? E como o doido conseguiria resgatar alguém das fossas? Olhei para minha esposa e ela não disse nada, começou a cavucar a areia de novo. Imitei-a.

Mais tarde, já em casa, nenhum dos dois teve coragem de comentar o causo. Se falássemos aos vizinhos, seríamos motivo de chacota, como aqueles que dizem ter sido abduzidos. O deserto é um lugar com poucas novidades e, nós aprendemos naquele dia, era assim que preferíamos.

No dia seguinte, apenas eu saí para procurar comida.

– Estou indisposta, você se importa?
– Tranquilo, querida, sem problemas.

Eu saí de casa um pouco aliviado. Não queria sentir de novo o desconforto de pensar naquele peixe. Mas eu não conseguia evitar. No fundo eu sei que minha esposa também não e foi por isso que preferiu ficar em casa.

Eu andei pelo deserto infinito, mas estava distraído demais para conseguir o que precisava. Olhava para cima e ficava imaginando como seria ir além do Grande Espaço, lá onde só alguns peixes-pássaro conseguem ir. O meu devaneio me fez caminhar a esmo. Quando menos esperei, eu estava lá.

Eu olhei para a escuridão do profundo do mar e, como eu tanto temia, ela olhou de volta para mim. Fiquei procurando sinais do robalo, mas eu sabia que era impossível ver qualquer coisa ali. O chamado do abismo era cada vez mais forte. Precisei de muita força para olhar para trás e ver o que estava ali desde sempre.

Há um deserto no fundo do mar. Lá os crustáceos andam ignorando o fim do mundo, apenas contemplando os pássaros-peixes que os sobrevoam com ar sonhador. O crustáceo precisa ser esperto, as coisas ainda são como antigamente.


Conto publicado na 34ª edição da Revista LiteraLivre, disponível AQUI.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Resenha – Almas mortas

GÓGOL, Nikolai. Almas mortas. São Paulo: Abril Cultural, 1987.


Esse é um daqueles livros que é difícil de resenhar logo depois que se termina a leitura. É que ele reverbera demais, é profundo demais. Não só pelo teor do livro em si, mas pelo próprio destino do autor, que nunca terminou o livro. Na verdade, ninguém jamais saberá o final de Almas Mortas, porque o autor queimou seu manuscrito original, nove dias antes de morrer.

Neste livro acompanhamos a história de Tchítchicov, um ex-funcionário público corrupto, que bolou um esquema para enriquecer: acontece que todos os proprietários rurais (chamados de pomiêchtchik) têm que listar seus servos, ou seja, as almas que têm na sua propriedade e pagar tributos delas ao governo. Porém, o governo só atualiza essa listagem a cada tantos anos (como um censo). E se nesse meio tempo morrer algum servo, o proprietário continuará pagando tributo por ele até o próximo censo, quando finalmente poderá retirá-lo do seu rol de almas.

Como uma alma bondosa, Tchítchicov aparece na propriedade destes latifundiários e oferece para comprar essas "almas mortas", este peso que os proprietários carregam. A brecha que ele encontrou é que, embora as pessoas estejam de fato mortas, elas ainda existem como vivas no papel. E como servos são um tipo de propriedade, ele pode utilizá-los como caução ou moeda de barganha para conseguir altos empréstimos com o governo (e, teoricamente, sumir com a grana).

Só essa explicação já serve pra mostrar bem o caráter da história. Ela não trata de um herói, mas, como próprio Gógol diz, trata de um patife. Gógol ajuda a inaugurar, lá pelos meados do século XIX, o realismo na literatura russa. Ele não tem pena de retratar seu país tal como ele é – e, o mais interessante, isso não diminui em nada o seu patriotismo (embora, veja só, o autor tivesse nascido na Ucrânia). De qualquer forma, dá gosto de vê-lo falar do povo russo.

Aliás, sempre que leio boa literatura russa fico assustado com as semelhanças com o Brasil. Burocracia, coronelismo, servilismo público e tudo que isso traz (da puxação de saco à corrupção). Chega a ser desconcertante tanta parecença. 
[...] a nossa pátria está perecendo, não pela invasão de vinte tribo estrangeiras, mas por nossas próprias mãos. (p. 444-445)
Gógol não chega a ser tão psicológico quanto Dostoiévski. E, justamente por isso, talvez ele consiga transmitir com mais gosto quem é o ser humano. Porque enquanto Gógol não explora com profundidade a psiquê, ele traduz isso de modo fenomenal no próprio comportamento dos personagens, em vários pontos apenas destacando o que já ficou visível ao leitor:
E ficou claro que espécie de criatura é o ser humano: é sábio inteligente e sensato em tudo o que se refere aos outros, mas não a ele próprio. (p. 250)
Deus do céu, que distância imensurável há entre conhecer o mundo e o saber utilizar-se deste conhecimento! (p. 396)
A tradução deste livro foi feita pela finada Tatiana Belinky, que fez um trabalho simplesmente fenomenal. Não sei se Gogol tinha a linguagem acessível que o livro parece ter; mas, ao julgar pelo teor das narrações, ouso dizer que sim. Tudo graças ao exímio trabalho da tradutora, que fez um equilíbrio sensacional entre coloquial e formal:
O dia, ao que parece, foi encerrado com uma porção de vitela fria, uma garrafa de sopa de repolho azedo e um sono ferrado, um ronco puxado, como se dizem algumas partes do vasto império russo. (p. 13, grifos meus)
Some-se a isso o próprio estilo sagaz e quase cômico de Gógol. Quem lê o livro, parece estar diante de um erudito, um sábio, um formalista. Mas quando a gente começa a ler e se depara com essas expressões ou até mesmo algumas construções, não consegue evitar, no mínimo, um sorriso de orelha a orelha com trechos como esse aqui:
[...] adormeceu logo, num sono forte e profundo, um sono maravilhoso como só é dado dormir àqueles felizardos que não conhecem nem as hemorróidas, nem as pulgas, nem os dotes intelectuais excessivos. (p. 156, com destaque para a equiparação de hemorroidas e dotes intelectuais excessivos)
Caramba, que escritor! Aliás, é interessante notar que o livro começa com pura narração, mas não cansa! Pelo contrário, é gostoso de ler. Quero entender o que tem de tão gostoso, saboroso até nessas obras realistas que nos fazem ter tanta vontade de continuar a leitura. É assim que eu quero um dia escrever.

Vale citar também que Gógol faz uso da viagem como elemento motor da sua narrativa. Até mesmo quando Tchítchicov está hospedado por um longo tempo numa cidade, ele ainda viaja para as fazendas dos latifundiários que pretende engabelar. Essa constante movimentação por meio da viagem faz o leitor sempre olhar pra frente, sempre traz sensação de movimento. E isso ainda livra o autor de precisar continuamente justificar os deslocamentos e abrindo um espaço não-forçado para divagações e digressões no trajeto entre os lugares. Este é um exemplo sensacional do uso eficaz da viagem como recurso narrativo.

Antes de concluir, vale dizer que o livro nos traz muitas características interessantes sobre a cultura russa. A começar pela centralidade do pomiêchtchik não só para a narrativa como para a própria forma de organização em glebas, com servos sendo propriedade, gerando pequenas vilas em cada fazenda, atraindo um clero próprio, etc. A propriedade rural, nesse caso, é um microcosmo próprio, cada uma como uma realidade paralela.

Além disso, me surpreendeu bastante a hospitalidade dos pomiêchtchik. O cara vai visitar alguém que nunca conheceu, mas o anfitrião faz questão que ele fique pro almoço. Se entabularem boas relações, o hóspede deve dormir no local, sob pena de ofender o dono dela. Se forem conhecidos, o hóspede deverá ficar pelo menos um mês naquela casa, presenteando o anfitrião com sua companhia.

Parece até estranho descrever dessa forma, mas é absolutamente verdade! Aqui no Brasil mesmo não é estranho que alguém, em viagem de férias, hospede-se por duas semanas na casa de um parente. Cheguei a comentar isso uma vez pra um amigo dos EUA. Ele arregalou os olhos e ele achou um absurdo.
Se a devassidão tem que entrar neste mundo, que não seja pelas minhas mãos! (p. 374)
Haveria muito mais a falar, tanto sobre as várias temáticas que Gógol traz da sociedade russa (propinas, jogo de influências, falsidade social, etc.) como outros traços muito interessantes da sua cultura (nessa época ainda muito influenciada pela França); mas vou concluir com esta pintura de Mikhail Clodt, que retrata o porquê de não termos o fim desse livro. 

O que acontece com Tchítchicov no fim das contas? Dá certo a maracutaia? Não sabemos ao certo. O livro termina com um discurso de outro personagem sobre a necessidade da nobreza de espírito do povo russo. Pra saber o que vem depois disso, precisaríamos ter acesso àquele manuscrito que Gógol queimou. Alguns dizem que foi um acesso de raiva, outros dizem que foi acidente. O fato é que aquilo o perturbou de tal modo que ele ficou acamado, recusou-se a comer, e morreu de inanição nove dias depois.

Fim de 'Almas Mortas"  (Gógol queima seu manuscrito). Mikhail Clodt, 1887

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Resenha – A moreninha

MACEDO, Joaquim Manual de. A moreninha. Jaguará do Sul: Avenida, 2009.


Tá, vamos lá. 

Edição simples e barata da editora Avenida, comprei na época do cursinho lá na Jaime Brasil, numa época em que o Shopping Fortaleza (que não tem nada de shopping, muito menos de fortaleza) ainda tinha alguns livrinhos bestas. Nessa época comprei vários desses clássicos, jurando que os leria. Só me perdoo porque foi lá que comprei a primeira vez Noite na taverna (resenha aqui). Só por isso já valeu a pena.

Vou direto ao ponto aqui e já começar falando que há uma razão pela qual tanta gente desgosta de ler os clássicos no período escolar. E realmente não faz o menor sentido, porque pra aproveitar o estilo tem que ter maturidade leitora e muito saco. E isso não se consegue em poucos meses ou até semanas. (Acreditem se quiser, já vi currículo escolar que propunha ler e estudar Dom Casmurro em dois meses). A exemplo do que estou falando, veja este trecho:
[...] naturalmente, Bocage, quando tomava carraspana, descompunha os médicos.
— C'est trop fort! bocejou Augusto [...] (p. 9)

Esse intelectualismo que sempre permeou os clássicos foi exatamente o que sempre me afastou deles. Não porque eu (ou outros leitores) não tenhamos capacidade intelectual de entender ou degustar, mas porque é uma leitura feita para uma casta, cheia de rodeios, citações em idiomas estrangeiros e referências que só não são obscuras pra quem tem todo o tempo do mundo pra ler poetas arcadistas.

A história não caminha de fato para frente, mas é permeada por uma sucessão de anedotas que poderiam ser facilmente reduzidas a poucas linhas (e olhe lá – por mim cortava era tudo). Aqui acompanhamos a história de Augusto, um estudante de medicina, que finda se apaixonando pela irmã do seu amigo Fabrício – trata-se de Carolina, a Moreninha –, por ocasião de uma visita que faz à casa da avó de seu amigo. 

Outra coisa que incomoda é que é tudo um conto de fadas, um mundo alheio e abstrato. Não que literatura deva tratar apenas do que é real apenas realisticamente; mas é que, mesmo na fantasia ou ficção, é preciso que o leitor se relacione ou se identifique com os personagens.

Talvez isso tivesse sido realidade para o século XIX. Porém, ainda assim, creio que, se o fora, então o foi apenas para uma parcela da população. O distanciamento é tão grande que não parece que estamos lendo uma história, parece que estamos lendo um relato de acontecimentos tão somente. É chato porque é distante, bem distante de nós.

Em mais de uma ocasião me pareceu que o verdadeiro apelo do livro está no seu erotismo nem sempre tão velado. No começo da história, por exemplo, lemos a seguinte descrição que o amigo de Augusto, Fabrício, faz de uma de suas primas: 

A mais moça tem um ano de menos: loira, de olhos azuis, face cor-de-rosa... seio de alabastro... dentes... (p. 11)
Em outra ocasião, em que Augusto se vê escondido dentro do quarto das meninas, lê-se:
Pobre Augusto!... não te chamarei feliz!... ele vê a um palmo dos olhos a perna mais bem torneada que é possível imaginar!... através da finíssima meia aprecia uma mistura de cor de leite com a cor-de-rosa e, rematando este interessante painel róseao, um pezinho [...] não foram beijos o que desejou o estudante outorgar àquele precioso objeto [...] (p. 73)
Uma coisa que fica evidente, porém, e nisso preciso tirar o chapéu, é que o autor faz um excelente uso do idioma. Claro que o uso da língua muda, isso é natural e esperado. Mas não posso deixar de notar a beleza que aparece nas construções, no uso de adjetivos, até mesmo nas conjugações verbais. Isso é de fato belo.

E também não significa que o livro não tenha citações bonitas ou um e outro acontecimento que é até engraçado (lembro da ocasião em que Augusto diz para uma véia chata que ela tinha hemorróidas). Para exemplificar, trago este trecho:
Em amor a imaginação é tudo: é ardendo em suas chamas e elevado nas asas de seus delírios que o mancebo se faz poeta por amor (p. 16)
Em conclusão, achei o livro extremamente chato e, se Deus permitir, não o lerei nunca mais. Penso que esta obra tem seu valor histórico e com certeza uma boa função no mundo acadêmico da literatura. Mas, pelo menos para mim, que vejo a literatura com os olhos do cotidiano, não penso que seja um livro para o dia a dia ou para desfrutar – talvez esteja mais próximo de ser um livro para estudar.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Resenha – A lua na sarjeta

GOODIS, David. A lua na sarjeta. Porto Alegre: L&PM, 2005.


Este livro está naquela categoria dos "li quando era adolescente, gostei, e resolvi ler de novo porque não lembro mais de absolutamente nada da história, então é como se eu estivesse lendo pela primeira vez." O nome da categoria é exatamente esse. À resenha.

Tá, não tem como começar sem falar dessa edição de bolso da L&PM. Ah, mano. Não sei por que eu simplesmente amo, amo esses livrinhos de bolso. Tem alguma coisa de prático e quase mágico. Um objeto tão pequeno mas ainda assim tão cheio de aventuras (tá, eu sei que todo livro é assim, mas quando ele é pequeninho...). Essa capa também ficou excelente! Traduz muito bem o tom do livro. E já que mencionei o tom do livro, saca só:
Na entrada da ruela que dava para a Vernon Street, um gato cinza esperava que uma ratazana grande saísse de seu esconderijo. O rato tinha corrido para dentro de um buraco na parede do barraco de madeira e, agora, o gato estava inspecionando todas as fendas estreitas e se perguntando como o rato conseguira se espremer para passar por ali. O gato esperou, na escuridão grudenta de uma meia-noite quente, por mais de meia hora. Quando foi embora, deixou a marca de suas patas no sangue seco de uma garota que tinha morrido ali na viela uns sete meses atrás. (p. 5)
Perdoem a citação grande, mas é que poucas vezes vi um autor conseguir imprimir tão bem, já no seu primeiro parágrafo, todo o tom, peso e estilo da história que ele vai contar! É de ficar boquiaberto com a capacidade de Goodis – repito, já no primeiro parágrafo! – de imprimir de modo tão certeiro o estilo da história que quer contar.

E esse estilo nada mais é do que a literatura noir. Em francês "preto", este termo se refere, via de regra, a uma literatura policial em que se destaca a sujeira, a miséria, os vícios e doenças, em suma, a podridão escondida da sociedade. É o mesmo estilo de Max Payne, por exemplo. Noir me lembra aquele cinema em preto e branco, cheio de vielas, crime e pesares. David Goodis deve ter sido um mestre disso, porque não é possível. O cara é um absurdo de talentoso.

Neste livro companhamos a história de William Kerrigan, um estivador que mora numa casa miserável, tem uma família desastrosa, vive uma vida deplorável de vícios e violência. Ele quer descobrir o que aconteceu com sua irmã, essa cuja morte é mencionada no primeiro parágrafo (citação acima). No meio do caminho, ele vai lidar com o que a sociedade tem de pior, tudo para tentar resolver esse problema que fica martelando sua alma, sem nunca lhe dar descanso.

Kerrigan, eu diria, me soa quase como um personagem de Dostoievski. Cheio de contradições e inundado por um complexo de inferioridade, ele não apenas julga impossível mudar sua condição, como também se rende a ela. Por causa disso, ele não só está preso numa realidade como também se recusa a sair dela.

O enredo é muito, muito bom. Claro, o estilo carrega a gente pra frente. E aqui não falo só do noir, mas também da habilidade de Goodis em misturar narração, descrição e diálogo de modo adequado, pra que a gente nunca fique cansado demais de nenhum deles. O destaque que quero fazer é, na verdade, para as reviravoltas que o livro traz. Mais de uma vez arregalei os olhos e exclamei para mim: "Mentira!".

Isso sem falar de algumas cenas que são tão bem escritas que eu literalmente conseguia assisti-las na minha cabeça, como se um filme estivesse acontecendo. Eu conseguia ver a cena certinha, eu conseguia sentir como os personagens se moviam, respiravam, o que eles sentiam, o que eles faziam. Meu Deus, como pode um livro ser capaz de me transportar tão completamente para uma outra realidade? 

Para fins de registro, cito a cena em que Kerrigan visita o quarto de seu amigo, o pintor que agora não lembro o nome, falo da cena do quarto e a da pintura. Quando terminei de ler aquela cena, fechei o livro e fiquei olhando para o vazio, abismado com a qualidade do que tinha acabado de ler.

Por fim, só me resta concluir dizendo que este livro é muito, muito bom. Não foi à toa que, na adolescência mesmo, eu comprei todos os livros de David Goodis que consegui encontrar. Creio que ainda não encontrei todos. Mas este certamente será um autor que vou revisitar num futuro não muito distante. Bom demais. De-mais.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Resenha – Da terra à lua

VERNE, Júlio. Da terra à lua. Jandira: Principis, 2020.


Faz uns bons anos que não visito Júlio Verne. Li 20 mil léguas submarinas na adolescência e lembro de ter ficado fascinado com o Capitão Nemo do filme A liga extraordinária. Depois dele lembro de ter lido também Viagem ao centro da terra, todos absurdamente fascinantes. 

Duas coisas me fizeram querer ler o livro que resenho agora: 1) Por ocasião de um aniversário, comprei Viagem ao centro da terra para dar de presente e – vejam só – a Amazon me sugeriu comprar Da terra à lua por meros R$7,90. Aí não tem leitor que aguente. 

2) Por que uma vez conversando com o Pr. Esli, da 4º Igreja Presbiteriana de Boa Vista, ele me falou como leu este livro na sua juventude e ficou impressionado pela praticidade dos personagens destacada neste trecho:
Ora, quando um americano tem uma ideia, procura logo outro americano com quem partilhá-la. Quando chegam a três, elegem um presidente e dois secretários. Se já são quatro, nomeiam um arquivista e a sociedade passa a funcionar. Cinco? Convocam uma assembleia geral e o clube está fundado. (p. 8)
Mas, calma. Essa resenha tá toda do avesso. Vamos por partes. Deixa eu voltar um pouco aqui e ir à resenha propriamente.

Tenho curtido cada vez mais essas edições paperback da Principis. Refiro-me a edições com papel de gramatura leve, o que deixa o livro mais barato, sem necessariamente perder a qualidade da diagramação ou até mesmo eventuais ilustrações. O livro não peca pela simplicidade, pelo contrário, considero louvável o trabalho bem produzido.

Por outro lado, creio que não possa dizer o mesmo da tradução no caso deste livro. Primeiro que ele escolheu traduzir umas notas de rodapé que, sinceramente, não eram necessárias. Some-se a isto que o próprio tradutor e até o editor resolveram acrescentar suas próprias notas. Ficou desnecessário ao quadrado. Sinceramente até que daria para perdoar, porque várias das notas constavam no original. Mas essa era apenas a ponta do iceberg.

Conquanto o trabalho da tradução tenha sido homogêneo no livro, garantindo uma boa inserção na história; por outro, as falhas que aparecem são exdrúxulas demais para passarem despercebidas. Em mais de uma ocasião o tradutor faz escolhas infelizes na hora de aportguesar termos. E nem nisso ele é constante, uma vez que o clube – que é simplesmente o clube onde nasce o âmago da história – ele opta por não traduzir: "Gun Club".

Porém o problema mais crasso foi a escolha de tradução do título de um capítulo. Na página 126 literalmente está escrito, em letras garrafais, no topo da página: "Uma meeting". Repito. O cara optou por (não) traduzir o título e deixou escrito lá: "Uma meeting". Eu: você tá de brinqueition com a minha cara, né?

Bom, tendo cuspido fora esses sapos, posso falar do texto e destacar algumas coisas que curti. Primeiro, claro, o cientificismo de Júlio Verne. É um absurdo de interessante como ele realmente buscou trazer fatos e abordagens científicas para suas obras de ficção. Muito interessante ver também como ele faz isso de modo genuíno, sem ficar muito cansativo ou pretensioso. Não é à toa, portanto, que Verne foi quase um profeta da tecnologia do futuro (lembrando que o texto é de 1865):
Iremos à lua, iremos aos planetas, iremos as estrelas como se vai hoje de Liverpool a Nova York, facilmente, rapidamente e segurança. [...] A distância é apenas uma palavra relativa e acabará por se reduzir a zero. (p. 129)
Neste livro o autor não disfarça sua quase veneração à engenhosidade humana e faz um claro e amplo aceno à vontade americana de querer e fazer acontecer. O que não significa, porém, que ele seja totalmente apaixonado pelo mundo ianque. 

Na verdade, essa obra de Verne tem uns tons irônicos e sagazes muito bem-humorados que eu não lembro de ter encontrado em outras obras dele (embora, como já disse, faz um bom, bom tempo, desde que li as outras obras dele). Nos trechos abaixo ele brinca com a paixão que os americanos têm por balas e armas:
Era uma legião de Anjos Exterminadores – de resto, tidos como as melhores pessoas do mundo. (p. 10)
Um belo dia, porém – dia triste, lamentável –, a paz foi assinada pelos sobreviventes da guerra. (p. 10)
E ficamos nesse meio termo entre a cutucada e a admiração, uma vez que foi justamente essa paixão bélica o motor que levou adiante a ideia mais maluca de todos os tempos: fazer um canhão gigante capaz de lançar uma bala até a lua e, assim, iniciar a conquista do espaço. 

(Não disse que essa resenha está toda do avesso? Só agora, já quase no final, é que eu me dignei a comentar qual é a história em si: membros do Gun Club, nos EUA, se reúnem e decidem que lançarão uma bala de canhão à lua. Como fazer isso? Quanto isso vai custar? Não importa, porque eles vão fazer.)

O livro começa num ritmo agradável e se mantém, até do que nada, PAM!, tudo fica muito interessante e intenso de repente. Quando os membros do Gun Club saem da teoria para a prática, a leitura nos eletriza. E embora haja alguma flutuação na dinâmica, os fatos novos que aparecem vão sempre nos prendendo e nos carregando até o final. Aliás. Não consigo deixar de citar isso. Que final emocionante. Confesso que senti um arrepio quando finalmente o grande evento acontece. 

Por fim, uma vez que estou nessa jornada de escritor, gostaria de destacar uma coisa sobre a estrutura do livro. É que, ao contrário de todos os manuais de escrita criativa que li até hoje, a história não é sobre personagens. 

Há, evidente, um personagem principal: Barbicane, o presidente do Gun Club. Mas não há jornada. Ele e os outros personagens são caricatos desde o começo (no sentido de que já tem suas personalidades formadas) e assim permanecem até o fim.

O mais impressionante: isso não prejudica a história! Nós continuamos animados e torcendo para que o trabalho daqueles homens dê certo! Nós nos importamos com eles, ficamos apreensivos com eles, nos alegramos com eles. E, repito, não há jornada do herói. Não há grande transformação interna. Há tão somente uma história bem contada.

Fica um aprendizado sobre o que deveras importa, e talvez nem seja tanto os moldes literários que os livros ensinam.

Concluo porque a resenha tem que acabar. E concluo dizendo que foi um livro muito bom de se ler e – descobri só depois que terminei – ele tem continuação. O jeito é catar pra ver o que acontece, porque, devo dizer, aquele final ninguém esperava. Não se encha de expectativa, mas, se puder, leia este livro.