sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Resenha - Heretic: Betrayers of Kamigawa

McGOUGH, Scott. Heretic: Betrayers of Kamigawa. Renton: Wizards of the Coast, 2005. 312p. Paperback.


Comprei esse livro nos idos de 2008-2009, na época dos EUA. Naqueles tempos eu já conhecia um pouco do universo de Magic: The Gathering (MTG), mas não tinha noção de sua profundidade ou complexidade. Por conta disso, comprei o Livro II do Ciclo de Kamigawa, sem ter noção nenhuma do que era um ou outro. Na época, comprei-o por 1 dólar.

Eu já começo a review com a verdade: leiam esse livro! É muito muito bom! Sabe aqueles livros de ficção fantástica que valem a pena ler? Que tem magos, ogros, dragões lendários, kamis, cidades flutuantes, fortalezas, cabanas no pântano, mocinhas, vilões, heróis, heróis em dúvida? Pois é, tem tudo isso. Se você não conhece o mundo de MTG, dá uma googlada porque é uma quantidade boa de informação. No resumo: é um universo de magia, monstros e guerreiros. Fantasia.

A mini-resenha non-spoiler é: Uma história cativante de um guerreiro com dúbia lealdade que encontra-se no meio de uma guerra e, mesmo sem querer isso, vê-se cada vez mais levado ao centro dos acontecimentos. A linguagem não é complicada, os eventos são bem encadeados e deixam o leitor curioso para saber o que vai acontecer. Enfim, é como todo livro de ficção fantástica deveria ser. É o tipo de livro que eu leio e penso: caramba, que legal! Um dia eu quero escrever algo assim.

Só uma grande pena: não tem ele traduzido para português. Quem sabe num futuro não tão distante eu me meta a ser escritor mesmo, faça uma especialização em tradução e não traga essa literatura pra português? Quem sabe.

A partir daqui: SPOILERS. Decidi spoilar o livro porque, como não tem em português, há chance de que uma boa parcela de leitores não venha a conhecer essa história, então vamos lá.

Esse livro é o "Livro II" do Ciclo de Kamigawa. Nesse ciclo, somos apresentados à terra de Kamigawa, que remete ao Japão, lá há o Daimyo, seus samurais, ninjas, o mundo espiritual, cachoeiras, montanhas, planícies, pântanos e florestas. Não li o primeiro livro da série, mas pela leitura do segundo percebemos: 1) Toshiro Umezawa, o personagem principal, aparece no primeiro livro, recebendo uma missão para sequestrar Michiko, a filha do Daimyo Konda. No percalço, ele acaba não cumprindo a missão conforme mandado e Michiko é capturada de volta. 2) Toshiro tem um pacto com o ogro Hidetsugu e saiu numa missão com Kobo, o aprendiz de Hidetsugu; na missão, o aprendiz morre e o ogro fica furioso e jura vingança. 3) Toshiro é visitado pelo Kami da Lua Crescente e apresentado à Myojin do Alcance Noturno, um poderoso espírito que auxilia os devotos ladrões e sorrateiros da noite.

Tendo isso aí em mente, só pra dar uma base. O segundo livro (que foi o que eu li), já inicia com Konda em Eiganjo. A grande fortaleza abriga o que restou do vasto império do daymio: o que antes eram 5 milhões de pessoas, reduziu-se a 100 mil.

A Guerra dos Kami já se estendia por mais de 20 anos e foi Konda o maior afetado por essa batalha. Os Kami são espíritos, que habitam o mundo espiritual. Ao leitor não fica evidente qual a razão do conflito, mas vem o spoiler: no dia do nascimento de Michiko, a filha de Konda, o daymio executou um ritual e abriu um portal para o mundo espiritual (Kakuriyo). Lá, ele roubou "O Que Foi Tomado". O roubo desse artefato gerou um desequilíbrio no mundo espiritual, que resultou na Guerra dos Kami, que passaram a adentrar o mundo físico (Utsushiyo) para recuperar o artefato.

Mas onde eles apareciam, eles destruíam tudo. Não se resumia apenas ao império de Konda: as montanhas de Sokenzan, o pântano de Takenuma, a floresta de Jukai, a Academia Minamo; nem mesmo a cidade flutuante de Otawara, onde habitam os Moonfolk.

Konda é, e sempre foi, um desprezível. Ele é um ditador maníaco. Depois que roubou O Que Foi Tomado ficou mais louco ainda. Com suas manias de grandeza, ele usa seu poder para subjugar o povo e construir seu exército. Sob o comando de Takeno, o samurai general, o exército de Konda garantiu que eles ainda não fossem dizimados pelos Kami.

Em Eiganjo, Konda reúne seus súditos para afirmar que eles não teriam mais que se preocupar com as investidas dos espíritos, pois ele havia invocado a força do dragão protetor Yosei para proteger o reino. A multidão inicia um protesto contra as atitudes do ditador, mas são silenciados por ele.

Enquanto isso, a diplomata kitsune Pearl-Ear é expulsa de Eiganjo, deixando para trás Michiko, a filha do daymio, que na verdade fora criada pela diplomata kitsune. Michiko, feita prisioneira na torre mais alta da fortaleza pelo próprio pai, desenha num papel os símbolos mágicos de um feitiço kanji, numa tentativa de chamar Toshiro Umezawa para libertá-la. Sim, o mesmo cara que há poucos meses havia raptado-a. Ele parecia ser sua única chance de sair dali.





Toshiro tem uma espada samurai, mas ele quase não a usa no livro. Seu estilo é mago rogue, com magias para se esconder e usar a furtividade ao seu favor (seu jitte, por outro lado, é uma arma bem poderosa no jogo de cartas). Ele trabalhava para Uramon, a líder do crime organizado nos pântanos de Takenuma. Depois de muito esforço, ele conseguiu não trabalhar mais para ela, seguindo uma vida de mercenário independente.

No começo do livro, porém, ele é chamado à sua presença, sendo escoltado pela jushi (feiticeira) Kiku, que ele já conhecia de outras vindas. Uramon queria que Toshiro fizesse uma missão para ela, mas o rapaz tinha outros planos. Usando a bênção da Myojin do Alcance Noturno, ele assume forma fantasmagórica e, bem no meio de todo mundo, desaparece da vista e deixa de ser forma corpórea. Com isso, ele rouba um anel de Uramon e foge. A chefona, por sua vez, manda seus mercenários em seu encalço, incluindo aí Kiku e o nezumi (homens-rato) Marrow-Gnawer. Toshiro foge para o único lugar onde ele acha que tem alguma chance: as montanhas de Sokenzan.




Em Sokenzan, Toshiro escolhe um caminho amaldiçoado que leva para cima das montanhas. Os nativos da região sabem que não devem entrar ali, mas ele se arrisca. Os seus perseguidores não ficam satisfeitos em ter que segui-lo por ali. O que tem lá é um kami poderoso e sanguinário: Yuki-onna, uma espécie de loura do banheiro sanguinária e com poder de congelar os inimigos. O problema é que mesmo com seus feitiços, Toshiro só pode tentar direcionar ela, nunca pará-la. 

Funciona por um tempo, mas não tem jeito. Yuki-Onna acaba voltando-se contra Toshiro também. Toshiro usa a distância que conseguiu de vantagem (algumas horas a frente de seus perseguidores) e prepara uma armadilha. Na hora H, porém, ele é encontrado em seu esconderijo por Kiku e Marrow, que não haviam mordido a isca. Porém o que eles não sabem é que a armadilha não era para eles, e sim para o kami assassino. Os três são encontrados por Yuki-Onna que está prestes a matar todos, então Toshiro ativa a armadilha.

Porém, a armadilha precisaria do poder dos 3 ali para funcionar. Kiku e Marrow, sem escolha, dão as mãos para Toshiro e juntos ativam o feitiço que prende Yuki-Onna em um amuleto. Mas isso tem uma consequência: a partir daquele momento, Kiku e Marrow eram irmãos de pacto com Toshiro, o mesmo que ele havia feito com Hidetsugu, o pacto dos Hyozan. Com isto, agora eles estão vinculados um ao outro, correndo sérios riscos caso traiam um ao outro. Isto fica gravado neles como uma tatuagem na mão.

Depois disto, eles se encaminham para a casa de Hidetsugu, que fica nessa região. O ogro não é nada amigável e ainda está furioso com a morte de seu aprendiz. A única garantia que Toshiro tem é que como eles são irmãos de pacto, então Hidetsugu não poderia matá-lo. O ogro é um poderoso e sanguinário xamã, que serve ao Todo-Consumidor Oni do Caos (All Consuming oni of Chaos), uma espécie de demônio do reino espiritual que se antagoniza com os kami. 

Ainda encurtando a história, Hidetsugu conta a Toshiro sobre seu plano de ir à Academia Minano matar todo mundo porque eles foram os mandantes do assassinato de seu aprendiz. Movido apenas pelo ódio, Hidetsugu então planeja dizimar tudo e todos. Nessa ocasião, Toshiro entrega a ele o amuleto que contém a Yuki-Onna e recebe dele um outro amuleto que contém um oni poderoso, que depois descobrimos ser o Oni dos Lugares Selvagens.

Para deixar meio confuso e dar o gostinho de quero-mais aos leitores, informo que depois Hidetsugu vai dar o amuleto da Yuki ao bandido Godo, para que ele use contra os soldados de Konda e tente expandir suas fronteiras para além das montanhas de Sokenzan. O bandido vai aceitar a proposta e usa o amuleto nas fronteiras com o império do Konda. Acontece a mesma coisa: no começo funciona, os soldados do Konda começam a ser dizimados, mas depois a Onna se volta contra tudo e todos. Godo se lascou.

Por sua vez, Toshiro vai usar o amuleto com o oni lá na cidade de Otawara, a cidade sagrada dos Moonfolk. Ali na cidade onde nenhum humano sequer tinha pisado antes, ele se infiltra, arranja briga com um dos maiores guerreiros da cidade, dá uma pisa e solta o cachorrão doido pra atacar a cidade e causar o caos. Mas isso acontece bem depois.


Voltando: saindo da casa do Hidetsugu. Toshiro finge estar capturado e volta para a casa de Uramon, em Takenuma, porque ela ainda tem uma coisa que Toshiro quer. Ele chega lá escoltado por Kiku e Marrow, mas claro que é tudo uma armadilha. Quando estão na sala principal, bem na frente da chefona, eles atacam todos ao redor. Uramon rapidamente ativa sua passagem secreta e vai se esconder até a luta acabar.

Era exatamente isso que Toshiro queria. Ele usa a bênção da Myojin e segue ela em forma fantasmagórica. Uramon então vai para seu esconderijo e lá pretende usar um objeto, uma espécie de disco negro que ativa o Shadow Gate (Portal das Sombras), mas infelizmente ela não consegue fazer isso sem o anel que Toshiro roubou. Com a faca e o queijo nas mãos, Toshiro derrota Uramon e ativa o Shadow Gate.

Esse artefato dá ao usuário a habilidade de teleporte ou viagem rápida pelas sombras. Basicamente, com isso, Toshiro pode entrar numa sombra e sair em outra em qualquer outro lugar, não importa a distância. Ele usa a primeira vez logo ali no esconderijo de Uramon, para ver como funciona. Ele é sugado para uma espécie de vácuo, onde não há nada, mas ele sente o movimento. Em determinado momento da viagem, porém, ele ouve uma voz falar com ele: a própria Myojin do Alcance Noturno o chama e leva-o para o seu Honden.

Lá no Honden da Myojin ele se encontra com a poderosa Kami da Noite. Com sua atitude irreverente, Toshiro demonstra estar à disposição da Myojin para alguma missão que ela tenha. Por sua vez, a kami decide deixar suas opções em aberto, porém concede um presente maior e muito importante para Toshiro: ela funde o artefato que dava acesso ao Shadow Gate ao próprio corpo de Toshiro. Pronto. Toshiro agora pode usar o teleporte das sombras a seu bel-prazer, podendo viajar por qualquer sombra (por menor que seja) até um destino onde haja sombra. No começo ele se cansa um pouco e isso o desgasta, mas com o tempo se acostuma.


Com esse novo poder em mãos muita coisa acontece e não vou detalhar muito: Toshiro resgata Michiko de dentro do castelo do Konda (chega até a conhecer brevemente o Isamaru, o cachorro do Konda) e leva-a para a aldeia das kitsune que ainda restavam. A partir deste ponto, a história foca um pouco nas andanças de Michiko com Pearl-ear e sua turma. Eles se reúnem e decidem ir à Academia Minamo para solicitar apoio a Hisoka, o líder da Academia e entender porque Konda é alvo dos Kami e porque essa guerra toda aconteceu (até aqui ninguém sabia ainda).

Se não perceberam ainda, a Academia Minamo vai se tornar um epicentro de acontecimentos: Hidetsugu está indo para lá matar todo mundo, a delegação de kitsune (junto com Michiko) estão indo para lá e tem os interesses do Kami da Lua Crescente e os moonfolk (também chamados de Soratami) por trás disso. Abaixo um exemplo de um kitsune e um moonfolk só pra exemplificar, essas cartas não aparecem na história.



Como já mencionei, os kami são seres espirituais que habitam o mundo deles, mas todos têm relação com o mundo físico de alguma forma. Quando O Que Foi Tomado, então, foi roubado, eles se revoltaram e passaram a ir para o mundo físico para atacar e conseguir o artefato de volta. O problema é que os kami nunca deveriam ir para o mundo físico de maneira tão abrupta, por isso quando eles chegam estão tão deformados e irados que atacam tudo que veem. A descrição do livro é como se eles passassem por um mar de espinhos para chegar no outro lado. Não é que eles não possam atravessar, mas é que isso deveria acontecer de uma maneira específica.

Tanto é que há vários kami que se manifestam no mundo físico sem problemas, um deles é o Kami da Lua Crescente. O gordinho azul, como chamo, tem uma agenda própria em todos esses acontecimentos. A gente descobre depois que ele foi um dos que ajudou para que Konda conseguisse abrir o portal e roubar O Que Foi Tomado. Mas nem mesmo o gordinho azul imaginava a desgraça que isso tudo traria. Aí ele mudou a estratégia: ao invés de impedir a destruição do mundo físico por causa da Guerra dos Kami, ele usaria isso a seu favor.

Há uma série de manipulações aqui em que o gordinho azul está no topo. Ele é adorado pelos moonfolk e dá conselhos a eles. Por sua vez, os moonfolk manipulam a Academia Minamo e Hisoka, o seu líder. O grande plano do azulzinho é, como os moonfolk moram na cidade flutuante, que lá embaixo todo mundo se mate e os moonfolk reinem soberanos em Kamigawa depois disso. E o gordinho é esperto: esse era o plano dele desde o começo da Guerra dos Kami, ou seja, ele já está se preparando para isso há mais de 20 anos.

Ele armou os moonfolk, garantindo que eles criassem um exército e ficassem na surdina, preparando-se para a batalha e a dominação depois. Enquanto isso, os moonfolk manipulavam a Academia Minamo para garantir a segurança em terra, fazendo com que eles se aliassem ao Konda. Assim, os moonfolk mantinham uma rede de controle e conhecimento necessário para ficar só esperando o momento certo.

Em tudo isso o gordinho azul estava criando as condições para o que ele sabia que eventualmente ia acontecer. Vamos voltar para Eiganjo. Está lá o Takeno fazendo a ronda da cidade, ficou sabendo dos ataques de Godo na fronteira e vai falar com Konda pra saber o que fazer. Ele encontra o daymio no estado em que ele fica de uns tempos pra cá: no seu santuário, simplesmente admirando O Que Foi Tomado. Seus olhos vazios, suas palavras às vezes sem sentido, o dia todo ali, feito um boneco diante do seu precioso artefato.

Takeno chama a atenção do mestre e Konda, para tranquilizar Takeno, leva-o ao pátio da fortaleza, para lhe garantir que está tudo bem, que com a ajuda de Yosei eles estavam seguros. Aliás, até decide enviar Yosei pra dar uma pisa em Godo e seus bandidos, seria coisa fácil e... mas... espera... o que é aquele ponto escuro no céu? Takeno, Konda e todo mundo olhando. O próprio Konda diz quem é: O-Kagachi, o Kami Vingativo.


Enquanto o bichão que é a desgraça maior chega em Eiganjo, a delegação das kitsune, e a princesa Michiko escondida, chegam a Minamo (lembrando que Michiko tinha que ficar em off porque ainda era fugitiva da torre do Konda). Lá eles são recebidos por Hisoka e vão lá conversar. As kitsune querem que Hisoka conte o que sabe sobre o início da Guerra dos Kami e o que foi que Konda fez pra dar início a tudo. O velho Hisoka, porém, é um decrépito, ele fica com medo e acaba desmaiando. Aí aparece quem vai contar tudo: o gordinho azul.

Monitorando tudo à distância, ele e os moonfolk estavam esperando a hora de intervir, porque sabiam que Hisoka era mole. Com o velho desmaiado, o azulzinho conta o que nós já sabemos, de Konda roubar O Que Foi Tomado no mesmo dia que Michiko nasceu e que neste exato momento O-Kagachi estava indo para Eiganjo para matar tudo e todos, a fim de recuperar o que lhe pertencia. Mas e o que é esse artefato afinal de contas? O que é isso que levou a toda essa desgraça?

Primeiro a gente tem que entender quem é O-Kagachi. Ele é considerado como uma divindade pelos próprios kami. Esse dragão-espírito tem tanto poder por um motivo: é ele quem guarda a divisão entre o mundo espiritual e o físico. Aliás (e o livro é meio confuso nessa explicação -- penso eu que propositalmente), o mundo físico e o espiritual são tipos de manifestações do próprio O-Kagachi.

Esse ser muito poderoso teve algo arrancado de si no dia que Konda roubou o artefato: seu próprio coração. Porém o azul gordinho explica que não é bem o "coração" dele, mas em termos humanos, é como se o Konda tivesse roubado a filha de O-Kagachi, também no mesmo dia em que ela nasceu. E como o mundo espiritual é parte de O-Kagachi, todos os kami foram afetados e todos então ficaram enfurecidos e passaram a ir para o mundo físico para tentar recuperar o artefato.

Por isso que esse artefato tão poderoso causou todo esse rebuliço. Além disso, é por causa dele também que Konda garantiu sua imortalidade e conseguiu tanto poder para dominar, antes do ápice da Guerra dos Kami, em que ele foi forçado a se retrair cada vez mais. Só que tanto poder deixou o daymio desvairado, sem condições de conseguir governar como convém.

Enquanto o gordinho azul contava isso tudo, Toshiro aparece na sala, questionando as palavras do Kami. Toshiro afirma não confiar nele porque sabia que ele tinha um estratagema por trás. É nessa hora que o leitor fica sabendo do plano dele com as moonfolk pra dominar tudo. E aí vem o que já esperávamos: lá embaixo, Hidetsugu e sua turma chegaram pra destruir geral.

Nessa hora ainda fica ainda mais evidente que o Kami da Lua Crescente serve apenas aos seus próprios interesses. Quando questionado pelas kitsune se ele não salvaria seus aliados da Academia Minamo desse inimigo que estava chegando pra destruir geral, ele se limita a responder: "Que aliados?".

E o Hidetsugu chega pra quebrar mesmo. Antes, ele até tinha desejo de ensinar seu aprendiz, mas depois da morte dele, seu único desejo era sangue e morte. Vingança contra os assassinos de Kobo era a ordem do dia. Ele chega em Minamo sem dificuldades, acompanhado de seus guerreiros Yamabushi. E isso é uma lasqueira para os kami: esses guerreiros são especialistas em guerra contra espíritos e destroem eles com facilidade.

Por algum motivo que não descobri exatamente no decorrer do livro, Hidetsugu tem controle total desse grupo de guerreiros (com ele para o ataque em Minamo vão uns 9 ou 10), eles o obedecem cegamente, sem reação emotiva nenhuma, parecem zumbis mesmo, mas eles são inteligentes, respondem aos comandos e são muito, muito eficientes. Eles lutam de maneira coordenada, fazem estratégias para derrotar os inimigos e são variados: um é mago, outro luta com espada, outro com arco e por aí vai. A Academia Minamo não estava desprotegida, claro, e de cara eles recorrem à sua arma mais poderosa: Keiga.

Sendo um dos dragões protetores (tal como Yosei), Keiga proporciona uma batalha feroz aos inimigos antes mesmo de eles conseguirem entrar em Minamo (que estava lá sobre as cachoeiras). Só que ela não é párea: os Yamabushi são especialistas em lutar contra espíritos, e ela é um dragão-espírito.

Mesmo conseguindo matar alguns dos guerreiros, Keiga cai depois dos ataques dos Yamabushi, auxiliados por Hidetsugu, que, aliás, usa todas as magias de fogo que tem direito. Depois que ela cai, o ogro ainda tem a audácia de ir lá, arrancar um pedaço da sua carne e comer na frente de todos.

O ogro está andando em direção à academia, usando magia para subir e de repente os céus se abrem, as nuvens se afastam, uma lua minguante aparece de maneira não natural. Moonfolk montados em nuvens, empunhando espadas, arcos, cajados. Hidetsugu sorri de alegria com mais uma batalha. Mas não acontece o que ele esperava. Os moonfolk ignoram toda a situação e prosseguem sua marcha adentrando a floresta e seguindo outro rumo. Minamo estava perdida e tremia nas bases com a chegada do ogro.

A Academia, por seu nome, era um lugar de estudo. Havia guerreiros, claro, magos de diversos tipos. Porém, onde é mais fácil encontrar bons guerreiros: num quartel ou numa escola? A resposta é óbvia. Mesmo os guerreiros de Minamo não eram páreos para a selvageria do ogro e seus guerreiros. Muitos até fugiram com medo e vários vários morreram. Uma grande parte dos magos se escondeu e usava suas magias para fazer os alunos da academia fugir para a terra, tentando salvar a vida deles.

Neste ponto, Hisoka acorda do seu desmaio e é informado da desgraça toda. Toshiro dentro da sala ainda informa a todos do plano de Hidetsugu pra matar geral. O velho Hisoka tem uma atitude admirável, mas coitado do velho. Ele achava que seria possível falar com o ogro e conseguir algum acordo. Ele sai da sala e vai descendo as escadas, os corredores vazios, magos correndo e o barulho da batalha ao longe, vê alguns magos tentando conter o ogro, porém suas magias não eram suficientes. (A figura ao lado não aparece no livro, é só pra ilustrar).

Hisoka era um grande acadêmico e um excelente gestor, mas infelizmente não era um guerreiro, sequer era um mago. Ele teve que assistir inerte aos outros magos conjurarem feitiços para auxiliar os estudantes a fugir, nem isso Hisoka sabia fazer, não era sua área. Hidetsugu chega e encontra o velho. Não tem como conversar, Hidetsugu não se satisfaz com nada menos do que o caos e a destruição. Para mostrar isso, o ogro levanta o velho com uma das mãos e abocanha sua cabeça fora.

Depois dessa demonstração macabra de seu objetivo, Hidetsugu mostra que ainda tinha algo pior em mente. Ali mesmo onde estava, num dos pátios da Academia, ele ordena que os guerreiros Yamabushi parem a invasão por um momento. Ele então desenha alguns símbolos no chão e invoca seu Oni: All-Consuming Chaos. O nome já diz tudo. O demônio devagar ergue-se e passa a destruir tudo em seu caminho. Hidetsugu volta a atacar e destruir.

Enquanto isso, lá na sala do Hisoka, estava a turma reunida. Toshiro diz que é pra eles ficarem ali, porque é o lugar mais seguro da Academia. O gordinho azul diz que ele pode sair a hora que quiser e não tá nem aí, até porque ficou assustado ao saber que tem Yamabushi na área. Só que Toshiro joga um feitiço nele e o paralisa. Toshiro some nas sombras dizendo que voltaria para resgatá-los.

A desgraça comendo solta em Minamo, mas não era só lá. A esse ponto, já era possível divisar as 3 cabeças de O-Kagachi e Takeno já havia começado a tomar algumas medidas para garantir que nem todo mundo morresse com o ataque do dragão-espírito.

Ele pegou todos os guerreiros que tinha e preparou a cidade para o combate final, havia samurais, guerreiros montados em mariposas, magos (ainda que em menor quantidade) e um grupo de samurais designados para escoltar a população refugiada pelo portão norte da fortaleza (considerado o único portão seguro para fugir -- também foi por esse portão que Takeno libertou Isamaru para fugir e não morrer na cidade).

Nesse momento o samurai general Takeno percebe a desgraça. Não tem como lutar contra O-Kagachi, Konda estava louco! Não tem como derrotar aquele monstro. Mesmo que Yosei ainda estivesse ali protegendo, Takeno estava certo que não teria como derrotar o monstro. Ele era gigantesco. O livro diz que apenas uma de suas cabeças já era do tamanho da fortaleza do Konda em Eiganjo. Takeno em determinado momento achava que, se quisesse, O-Kagachi poderia simplesmente devorar tudo de uma vez só.

E nessa hora eu sinto raiva e pena do Takeno. Essa lealdade cega dele ao Konda transformou-o num instrumento de maldade. Konda oprimia o povo, lançava guerreiros à morte, subjugava espíritos pacíficos, tinha delírios de poder e glória. E tudo isso era tornado possível com a ajuda do próprio Takeno. Nessa hora ele tem um vislumbre disso. Por causa dessa cegueira, os últimos samurai do império de Konda estavam prestes a morrer com a chegada de O-Kagachi.

Da sacada da fortaleza, Takeno assistia a aproximação do dragão-espírito, empunhando seu arco e flecha para dar as ordens de ataques aos diferentes batalhões. Mas o primeiro a lutar contra o dragão quando ele chegou foi Yosei. Sinto dizer que ainda que o dragão branco tenha conseguido causar algum dano em O-Kagachi, ele foi literalmente torado ao meio. O grande dragão-espírito (que nesse ponto já tinha 4 cabeças) comeu a cauda e uma boa parte de Yosei, que fugiu pelas nuvens, sangrando éter.

Takeno viu tudo aquilo e só teve mais certeza da destruição iminente. O-Kagachi começou a atacar Eiganjo, destruindo as paredes externas. Takeno deu o comando de ataque. Todos morreram. As cavalarias, os feitiços dos magos, os ataques dos guerreiros alados, nada sequer afetou a trajetória de O-Kagachi. Na descrição do autor, eram como "formigas atacando um urso". Takeno se retira da sacada e vai para o santuário onde Konda está, para proteger o Daymio.

Enquanto isso, o grupo de sobreviventes que saiu pelo portão norte era tudo o que restava do império de Konda e as planícies de Towabara pareciam ser a única solução. O grupo de samurais enviou alguns guerreiros à frente para garantir que o caminho estava livre. Pois é, não estava.

Para a surpresa de todos os samurais, ali estava um grupo de goblins Akki, preparando-se para um assalto, liderados por ninguém mais ninguém menos que os irmãos Yamabushi, o braço direito do bandido Godo. A batalha foi feroz e os guerreiros samurai basicamente foram derrotados. Havia alguma bênção sobre os goblins, provavelmente de seu Myojin, que os fazia proliferar-se e alguma magia trazia vários deles de uma vez só.

O pequeno grupo de samurais não estava preparado para aquele tipo de batalha. Só o que salvou eles foi Yosei, que apareceu no último segundo, só o pedaço voando. A última notícia que temos dele é que ele estava todo acabado, sangrando ainda, e se encaminhando para a origem do ataque dos goblins, sendo acompanhado pelos guerreiros samurai.

Em Eiganjo a desgraça estava completa. O-Kagachi eliminou todo mundo e começou a atacar a fortaleza do Konda. Lá dentro do santuário dele, Takeno fazia guarda, olhando para o daymio desvairado. Takeno mais uma vez se decepciona com o mestre, mas mantém seu juramento de protegê-lo até a morte. E ele colocaria isso em prova em pouco tempo. Com os ataques de O-Kagachi, a própria fundação da torre estava ficando em cheque. Em determinado momento uma explosão envia um bloco de pedra bem na direção de Konda. Num último sacrifício, Takeno joga-se na frente do mestre e salva sua vida.

É só com a morte do velho amigo que Konda, ainda relutante, tira os olhos do seu artefato precioso, ele olha ao redor e vê a destruição. Ele caminha para perto de Takeno, vê-o morto e então ouve uma voz zombeteira: "Ah! Então quer dizer que esse é o tal O Que Foi Tomado?". Konda, catatônico, olha pra trás e vê um jovem apoiado no pedestal de seu precioso artefato: era Toshiro Umezawa.

Konda surta. Só a ideia de ter alguém próximo de seu artefato o deixa mais insano ainda. Ele pega a espada de Takeno e vai pra cima de Toshiro. Mas o jovem consegue desviar fácil das investidas. Ele recua das investidas de Konda, até que em determinado momento parece que Konda conseguiu pegar ele, mas no último segundo Toshiro usa a bênção da Myojin pra ficar fantasma.

Isso era uma armadilha de Toshiro. Ele estava atraindo Konda para fora do santuário, numa posição em que O-Kagachi, que já estava atacando a fortaleza, conseguisse ver Konda. Deu certo. O dragão-espírito rugiu ferozmente e foi na direção de Konda, que, por sua vez, louco como estava, ainda chamou pro fight, dizendo que dava conta.

Nesse ínterim, Toshiro pega O Que Foi Tomado e usa seu teleporte das sombras para fugir. Konda dá um urro de raiva, acompanhado por O-Kagachi. Konda sai correndo para fora da fortaleza, enquanto o grande dragão dá meia volta e voa novamente, em busca do seu artefato precioso. Konda então olha ao redor e vê a destruição total. Eiganjo acabada, apenas alguns soldados de pé, tentando se recompor. E aí sua surpresa: uma forma fantasmagórica de Takeno aparece ao seu lado, todo distorcido, empunhando sua espada perguntando; "Quais são suas ordens, daymio?".

Konda olha para aquilo intrigado e vê a cena se repetindo por toda a extensão de Eiganjo. Os soldados levantam-se, todos deformados, mas empunhando armas fantasmagóricas também e repetindo frases de lealdade ao ditador, que, com um sorriso cruel, afirma que irá retomar O Que Foi Tomado. (Imagem meramente ilustrativa, não estava exatamente presente no livro).

Como já falei, os kami nunca deveriam ter vindo ao mundo físico da forma como vieram e o mesmo vale para O-Kagachi, ainda mais ele, de quem o mundo espiritual faz parte e o mundo físico é reflexo. Quando o dragão-espírito matou os soldados do Konda, o espírito deles também foi dilacerado e eles não puderam entrar no mundo espiritual, ficando atrelados ao mundo físico mas sem forma corpórea, ligados ao seu antigo líder, Konda.

Vimos que Toshiro pegou o artefato e fugiu com ele pelo Shadow Gate, mas no meio de sua viagem ele ouve novamente a voz da Myojin do Alcance Noturno chamando ele pro seu Honden. Lá ela diz que estava vendo o que ele fez. Toshiro, irreverente, diz que se ela quiser o artefato é só falar de uma vez que ele dá sem problemas, o que não quer é estar com ele de boas e depois ela pedir.

A Myojin responde que não tem interesse nenhum em O Que Foi Tomado, porque onde esse artefato estiver, também estará O-Kagachi. Inclusive, foi por isso que ela chamou ele ao Honden: ele estava proibido de usar o Shadow Gate para transportar o artefato, nunca mais deveria tentar usar o teleporte das sombras enquanto tivesse aquilo em mãos. Toshiro diz que sem problemas.

A intenção de Toshiro nunca foi ficar com o artefato, porque ele tinha o mesmo pensamento da Myojin: ele não quer atrair O-Kagachi. Então ele se despede da Myojin e corre para fazer o que havia planejado. Ele volta para Minamo. Hidetsugu ainda não tinha terminado de destruir e não tinha ainda alcançado a sala onde estavam as kitsune e Michiko, além do gordinho azul, ainda congelado.

Ele pega O Que Foi Tomado, joga no chão do lado do azulzinho e diz que vai levar todo mundo para algum lugar seguro. Michiko faz menção de pegar o artefato mas é impedida, ela sabia que aquilo era o artefato do pai e queria entender a sua relação com ele, mas precisava fugir. Também, Toshiro não sabe até que ponto o gordinho azul está congelado mesmo ou só disfarçando, mas também não se importa e leva todo mundo para um lugar seguro.

Por fim, a cena final nos mostra Toshiro de volta em sua caverna, no pântano de Takenuma, onde uma última revelação ocorre. Lá, ele recebe uma visita da Myojin do Alcance Noturno, que requer dele mais uma demonstração de lealdade: ao lado de uma fogueira, Toshiro executa um ritual que remove da sua mão a marca dos Hyozan. Ele não é mais companheiro de pacto com Hidetsugu, Kiku ou Marrow-Gnawer.

Pra finalizar, a Myojin dá a ele uma visão do futuro, que é o spoiler do terceiro livro: ele aparece lutando contra os ex-companheiros de pacto; Godo é visto nas montanhas, seus soldados congelados; e, as duas principais revelações.

O-Kagachi é visto lutando contra o Oni All-Consuming Chaos, o mesmo invocador por Hidetsugu. Achei que faria mais sentido mesmo que a batalha final não fosse contra Konda, mas sim contra outro ser espiritual que, aparentemente, é o antagonista do O-Kagachi (kami) no mundo espiritual.

A outra importante revelação é que ele vê Michiko segurando O Que Foi Tomado, empunhando-o com lágrimas nos olhos. A meu ver, isso aponta para a relação que Michiko tem com o artefato e, deduzo eu, no terceiro livro ela vai pegar o artefato e se sacrificar, devolvendo O Que Foi Tomado a O-Kagachi e colocando um fim à Guerra dos Kami (sem alguém souber não me fale!).


Pois é gente, essa aí foi a história do livro. Eu confesso que achei muito bacana, eu nem vi as folhas passarem, quando menos esperava já estava pra terminar. A leitura é fluida, tem alguns vocábulos japoneses no meio que tive que googlar e uma ou outra palavra em inglês que não conhecia. Mas a linguagem é bem acessível e o encadeamento muito bom, sempre tinha alguma coisa acontecendo.

Porém, neste meu projeto de escritor ao acaso, tenho algumas críticas literárias sobre o livro. A primeira delas talvez nem seja tão relevante, mas tem personagens que não fazem diferença nenhuma, nem mesmo como complementação. Pelo que entendi, algumas dessas eram personagens no primeiro livro e apareceram no segundo por uma questão de continuidade, mas talvez tenha-se dado caracteres demais para eles quando se podia focar em outras coisas.

Sempre tem algo acontecendo, mas nada é muito denso. Já li outro livro de MTG sobre Mirrodin e nele acontecia muita coisa, bem mais do que nesse. Mas pensando bem o livro não peca por isso, apensa sofreu um pouco por causa da minha expectativa de comparação. As duas próximas críticas é que são mais sérias e acho que elas são relevantes.

A primeira foi a morte de Takeno: não tinha como ser mais clichê? Se jogar na frente do mestre e morrer? E porque o medo do autor em explorar mais a dúvida no coração de Takeno? Porque fazer ele voltar à lealdade cega no último segundo? Impulso por causa da vida de servidão? Talvez. Mas isso também é minha expectativa com Takeno, que tinha tudo para ser um grande personagem, mas viveu à sombra do infeliz do Konda, a quem tanto se dava importância, e quem menos a merecia.

O último problema que vejo é um pouco grave, porque afeta toda a trama da história, do começo ao fim: perceberam que tudo que o Toshiro quer fazer, ele consegue? Roubar Uramon? Conseguiu. Desviar da Yuki-Onna? Deu certo. Prender a Yuki-Onna com auxílio dos outros? Bem-sucedido. Voltar pra Uramon e consegui acesso ao Shadow Gate? Tá na mão.

Tudo que ele faz dá certo, ele não tem empecilhos. Ele é cauteloso e tal, mas nunca faz uso de um plano B. E dar a ele o Shadow Gate de forma embutida é um truque literário desleal: o personagem simplesmente tem poder demais e faz tudo o que quiser, não tem dificuldades reais. O autor talvez não tenha percebido essa armadilha, porque até mesmo em O-Kagachi colocou algumas restrições sábias, mas não em Toshiro.

Cara, Toshiro foi até a cidade dos moonfolk sem ser visto! Ele entrou na fortaleza do Konda, protegida por mil feitiços só com o teleporte. Depois ele entra na Academia Minamo com o teleporte de boas também, mesmo ela sendo protegida por trocentos feitiços. Tudo bem que isso era a bênção da Myojin, mas outros personagens têm seus Myojins também (até os goblins!), tinha que ter balanceado melhor o cara. E esse é o problema sério: Toshiro consegue fazer tudo que quer, seus planos sempre dão certo e o personagem perde verossimilhança, mesmo para uma obra de ficção fantástica.

Ele não tem oponente real em nenhum momento do livro: no começo parecia ser Uramon e Kiku, mas ele facilmente os engana; Hidetsugu que era perigoso, perto de Toshiro era uma beleza, conversava e tudo, dava pra negociar de boas; depois ele entra em atrito com o Kami azul gordinho, mas sequer sofre ameaça do kami da lua crescente e consegue até mesmo enganar o enganador com um feitiço que o deixa congelado, bem na hora do ataque do Hidetsugu! Que conveniente! A mana de Toshiro nunca acaba, ele nunca tem fome, ele nunca tem sono, ele nunca é pego de surpresa completamente, seu jitte nunca cai, ele nunca encontra um oponente que consiga bater de frente com ele, e, mesmo usando feitiços que precisam desenhar símbolos, ele sempre consegue.

Infelizmente do ponto de vista literário isso enfraquece a obra. Talvez porque o livro esteja apoiado por todo o universo de Kamigawa presente nos card games e o próprio contexto de MTG, o escritor tenha achado que podia escrever como bem entendesse o personagem, para fazer a história encontrar a expectativa do leitor informado, que é: ver seus personagens favoritos ganharem vida numa história. Porém fora desse contexto, o livro peca gravemente em falta de verossimilhança do personagem principal e deslealdade literária ao criá-lo incontestável. Uma tentativa de fugir à "Jornada do Herói"? Quem sabe. Não obstante, faltou essa profundidade.

Mesmo depois dessa crítica, eu reitero: vale a pena ler o livro! Já faz muito anos desde que eu li um livro de literatura fantástica tão bom, daqueles que dá gosto mesmo, que te deixa pensando e imaginando, curioso pra saber o que vai acontecer, desenhando cada acontecimento na imaginação.

É justamente para isso que serve a ficção. E esse livro cumpriu seu papel.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Resenha - Ragnarök: o fim dos deuses

BYATT, A. S. Ragnarök: o fim dos deuses. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. E-book.   


Em cento e poucas páginas, Byatt traz uma narrativa quase autobiográfica: uma menina magra, em tempos de guerra, busca alento nas histórias da mitologia nórdica. Lá ela conhece os famosos Thor, Odin, Loki, mas também tem a oportunidade de saber um pouco mais sobre o Freixo-Mundo, as aventuras de Hel, e, claro, o fim dos deuses, o Ragnarök.

Em determinados momentos da leitura a gente acha que o livro era para ser classificado como infantil: longa e extensas enumerações de tipos de árvores, animais, biomas, entre outros. Parece aquele tipo de literatura que quer ao mesmo tempo ensinar o infante sobre a natureza enquanto conta uma história.

Mas não deixa de ser interessante conhecer uma mitologia não contaminada pela construção Marvel-Hollywoodiana destes personagens. Como a própria autora diz, os mitos não têm necessariamente a função de dar um final feliz, ou de contar uma alegoria, e isto vê-se presente em diversos momentos do livro.

Particularmente, esperava uma narrativa mais linear, porém o que encontrei foi uma expressão multiforme de mitos e suas origens em diferentes contextos, porém isso foi mais uma questão de expectativa mesmo. Não raro, a autora compara com sua experiência cristã na infância, classificando-a apenas como uma construção mitológica também. 

A autora usa essas comparações para tentar identificar semelhanças ou criticar diferentes referências à mitologia nórdica. Mas é complicado para a própria autora afastar o mito da sua própria interpretação dele, portanto, acaba sim utilizando o mito para argumentar em um ou outro sentido que lhe pareça mais próprio.

Não obstante, vale a leitura para adquirir mais conhecimento.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Deslocados

Atroz competição;
Do egoísmo a epítome,
Do interesse desmedido,
A última lesão.

Corre, se deita e se abaixa!
Não olha pra cima
Abraça e olha pra sua amada:
A hora final se aproxima.

Da janela vejo minha cidade
Nos escombros reconheço
Meu pai, minha mãe,
Toda minha verdade.

No refúgio busco reconstruir
A custos altos o que perdi.
Os olhos vorazes me perseguem
Não são mais meus inimigos
São os habitantes do lugar...
Tenho medo que me carreguem.

Minha casa está destruída e só essa vida me resta
Busco um abrigo, que não essa existência funesta.
_______________________________

Victoria, minha filha, tem fome
Pego o pacote de biscoitos
Só tem dois
Dou metade de um pra ela
Como as migalhas.

Hoje faz muito sol
Nossa água está quente.
Vejo um posto policial,
Mais à frente.

Nele me tomam o pouco dinheiro que tenho
Só me resta continuar andando.
Victoria está cansada, pego-a no colo.
Sigo caminhando.

Foram cinco dias nesta batalha
Minha filha hoje tomou uma sopa
E eu estou contente
Mas tem essa dor latente...

Consegui uma matrícula pra minha filha
Ela disse que consegue contar minhas costelas
Eu finjo que acho graça.
_______________________________

Quando o furacão chegou
Todos correram, todos caíram
Tinha um navio, de um amigo
Me carregou.

Minha irmã morreu na viagem
Cheguei numa terra estranha
Todos me olhavam e não me viam.
Uma miragem.

Consegui um emprego
Vendo gelado no palito
Aí levaram todo meu dinheiro
Porque tanto mal comigo?

Aqui faz sol, mas já estou acostumado
Alguns dias até vendo uns bocados
E me resta essa existência.
_______________________________

“Extra! Extra!
Tomaram-lhe a vida!
Extra! Extra!
Quem foi?
Só pode ser…
Foi por causa da bomba
Que ceifou sua família.”

“Últimas novas do dia:
A primeira delas morre no nosso hospital
Sua filha chorava alto, incomodava a todos!
Os médicos disseram que havia outros
Que já estava saindo do normal.”

“No noticiário de hoje
Anunciaram um assalto:
Foi um homem
Que falava engraçado.”
_______________________________

E deslocados, seguem
Por falta de opção
A vida que lhes foi imposta.
Viver não é mais diversão
É buscar alento nos pequenos momentos
Sobrevivendo no locus destas idas.
Quem sabe não exista ainda quem os acolha?
Que entenda o sofrimento, essa falta de escolha?
E assim seria muito melhor
Ter um amparo, em tempos de mal a pior.


Poema publicado na 148ª edição da coluna Rede Literária, no blog Cultura de Roraima.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Corrida noturna

Corria todo dia na praça Ayrton Senna. Às 19h saía de casa, estacionava o carro ali perto do cinema, e dava uma boa corrida, desde a Praça das Águas até ao aeroporto. Nunca contou a quilometragem, sempre ficou de baixar o aplicativo no celular e sempre esquecia.

Mas aquela noite não foi igual às outras. Era época de chuva, havia chovido a tarde inteira e poucas pessoas estavam na rua a noite. Mas ele, religiosamente, seguia sua rotina para manter a forma. Já estava na altura do Ginásio “Totozão” quando ouviu um grito. O grito vinha de dentro do ginásio abandonado.

Pensou ser impressão sua. Diminuiu o passo. Ouviu de novo! Uma mulher! E agora? O que fazer? Pensou em ligar pra polícia, mas lembrou que certa vez ligara e eles informaram que só poderiam investigar se houvesse visto alguma coisa concreta: economia de gasolina. Olhou para os dois lados da rua, não vinha ninguém. Os poucos carros estacionados indicavam que ali estavam apenas os donos dos quiosques. E agora? Ouviu de novo o grito!

Não teve outra escolha: pulou as grades e correu para dentro do ginásio. O matagal escondia alguns buracos antigos. O pé já calejado de tanto correr nem sentiu a diferença do terreno quando conseguiu alcançar a entrada do ginásio. Lá dentro um silêncio. 

– Tem alguém aí? – ele falou alto, ouvindo apenas o seu eco em resposta.
De repente uma risada bem atrás dele e uma voz no seu ouvido que o fez arrepiar-se:
– Agora tem você.

Ele foi empurrado de supetão por duas mãos frias, desequilibrou-se e rolou arquibancada abaixo. 

Seu corpo nunca foi encontrado. Alguns dizem que na verdade ele fugiu naquela noite com uma mulher, outros dizem que ele foi sequestrado (ainda que nunca tenham exigido o resgate).

Agora outros, especialmente os corredores mais experientes, dizem que se você passar por ali nas noites frias de chuva, aquelas em que as nuvens escondem a lua cheia, é melhor apressar o passo quando chegar perto do ginásio, senão corre o risco de ainda ouvir a voz de um homem dizer:

– Socorro!


Conto premiado, 2º lugar na categoria "Conto", II Concurso Literário Internacional Palavradeiros. Consta na antologia do referido concurso, que pode ser encontrada aqui.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Prevaricação

Do corruptor, a pena
Vê, alma nobre, que pena!
A estranha cantilena
Na vil e fragosa arena.

Estranhos subterfúgios
Que rompem eloquentes
Nas horas em que, quentes,
Surgem os sacrilégios.

Porém, também, pudera!
Que tanto se espera
Do venal desta era?

Árvore infrutífera
Fruto do velho povo
Que vive na mentira


Poema selecionado para o blog Enchendo Estantes, em 2017.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Vaga devagar

Ele caminhava pelas ruas. O clima estava festivo. Vagava. Devagar caminhava pela extensão negra do asfalto, devagar. Olhava para as pessoas caminhando, vem e vai, mais e mais. A noite estava quente, ninguém olhava para ele. Até que o vento chegou.

Foi quando seu cheiro espalhou-se e alguns olharam para ele, finalmente. Porém os olhares o deixavam ainda mais aflito. Melhor teria sido deixado de lado mesmo. Esquecido. O vento novamente, passa pelos seus cabelos, ele gosta da sensação. Lembrou-se de Bianca.

Bianca.
Sim. Lembrou de sua casa.
Casa.

Palavras que há muito ele não recordava. Cada vez que as mencionava, sua mente sucumbia um pouco mais, perdendo a esperança, vagando devagar na sua própria esquizofrenia. Mas naquele momento, deixou que as lembranças o conduzissem.
______________________________________________

– Acorda, Eustáquio – disse a moça de olhos sorridentes – tá tarde, amor. 
– Tá não, linda – ele disse com voz arrastada, mas feliz – Deixa eu dormir um só mais um pouquinho, bobinha.
– Eustáquio, tu vais chegar atrasado no trabalho de novo e... ai! Hahaha!

Ele a puxou para junto de si na cama, abraçou aquele corpo macio, friozinho. Era muito bom estar ali, não queria sair nunca mais. Ela ria, boba, linda. Não precisava de mais nada, era curioso, era simples, era perfeito. Passava a mão em seus cabelos.

Foi para o trabalho e ela pra faculdade; estudava Administração. Saiu do trabalho e foi pegá-la. Saudades. Conduzia seu carro pela avenida que levava ao seu bairro, várias pessoas voltando para suas casas também, dia cansativo, noite agradável, bem que podia sair pra comer. Foi tudo tão rápido.

Era um cruzamento. Na esquina tinha uma pizzaria. Um carro grande tapava a visão de Eustáquio. Ele estava na principal, o cara cruzou de uma vez. Não dava tempo. Ele estava dentro do limite de velocidade, mas não tinha o que fazer. Bianca estava de cinto, mas sentada de mau jeito, o impacto fez com que seu esterno fraturasse. Uma lasca entrou no coração. 

A pior parte foi que ela ainda estava consciente. E suas lembranças vagavam em direções agora extremamente perigosas, porque foi ali que sua mente começou a ficar cada vez mais devagar. Foram para o hospital. A ambulância demorou pra chegar. O outro motorista era um jovem, não estava bêbado, só fora imprudente. Sabia que estava errado. Na hora não quis dar o braço a torcer, mas depois propôs um acordo. E cumpriu.

Eustáquio lembrou-se de estar com o dinheiro em mãos na concessionária pra comprar as peças. E começou a pensar do que adiantava. Bianca não estaria mais no carro com ele. Quando voltava pra casa, ela não estava lá. O batom deixado no banheiro. No espelho um bilhetinho, ela fazia isso pra se lembrar dos compromissos.

Como foi que sua vida mudou? Sua mente fizera questão de apagar os detalhes. Aliás, sua mente. Sim. Quanto mais ela vagava, mais ele deixava. Devagar ela o foi levando para longe. E longe era justamente onde ele queria estar. Era melhor fugir da própria mente.

E devagar ele foi deixando os amigos, foi deixando o trabalho de lado. Chegava atrasado, vivia de atestado. No psicólogo não conseguia falar nada. Foi afastado. Vendeu o carro. O dinheiro caiu na conta no mesmo dia. Não fazia diferença, deixou lá mesmo. 

Um dia estava em casa. Era de noite. O vento devagar fazia sua mente vagar mais longe. Ele foi seguindo o vento. Aquela noite não estava quente. Caminhou, caminhou. Então era dia. Ele não sabia mais voltar, não queria mais voltar. Tinha dinheiro no bolso. Foi pra rodoviária e pegou um ônibus pra Curitiba. Vagando, vagando.

E devagar ele deixou sua mente vagar cada vez mais longe. 


Conto selecionado para o blog literário Enchendo Estantes, em 2017.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Do ímpeto criativo

E a vontade louca de fazer tudo?
De escrever o que nunca foi escrito
De romper a barreira do conhecido.
E ainda assim permanecer, contudo.

Ei-la! Louca!
Impulsiona-me!
Carrega-me
Até que eu não seja mais.

Não me resta mais a mim
Sou fruto da coisa escrita
E, ao mesmo tempo, seu autor.

Que singular agonia da arte!
Em que a ordem é parte
Do meu interior maluco.


Poema selecionado para a 2ª Edição da Revista LiteraLivre, p. 29.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Resenha - The Judgement of Paris

VIDAL, Gore. The Judgement of Paris. St. Albans: Panther Books, 1976. 317p. Paperback.


Há livros com tamanha erudição que é preciso todo um contexto intelectual para se encontrar nele. Não gosto desses livros. Essa aguçada intelectualidade expressa no uso de diferentes idiomas, referências aos gregos clássicos e diversas paráfrases de grandes filósofos ou autores clássicos não faz meu estilo. Nem como leitor, nem como escritor.

Gore Vidal, por um lado, é sensacional. "The Judgment of Paris" é tipo um "Keep up with the Kardashians" dos anos 1950: não fala nada, não tem nada, não acontece nada, mas você fica preso nele sem nenhum motivo aparente e se deixa levar pela narrativa.

Na primeira parte do livro somos apresentados ao jovem Philip Warren, um americano de 20 anos que deixa os EUA por 1 ano para passear pela Europa, numa tentativa de se redescobrir e desfrutar dos prazeres mundanos. Hedonismo na sua essência, mas disfarçado com a busca constante pelo "algo maior", que ele sempre procura nos lugares errados. Começa em Roma, passa pelo Egito e termina na França, sempre se deparando com gente muito intelectual, ou rica, ou poderosa: a socialite do pós-Segunda Guerra, com todos seus benefícios e seus podres escondidos.

Envolvendo-se com uma ou outra, e sendo convidado por um ou outro para diferentes aventuras, depois de um ano inteiro passeando, a gente fica que nem Warren no final do livro: tanto tempo gasto e ainda não sabemos onde chegamos. Essa foi minha maior sensação, mesmo que no último capítulo Vidal ainda finalize as pontas soltas e dá um último detalhe a cada uma das principais personagens.

No fundo, não é meu tipo de literatura, sinceramente se eu quisesse ler um livro de filosofia, simplesmente o faria. A narrativa prende o leitor nem tanto pela descrição ou pelas falas, mas pelo encadeamento das ideias nas frases. Ao fim, porém, lia movido apenas pelo misto da esperança de um final que valesse a pena e da necessidade de dizer que terminei-o.

Eu não conhecia Vidal e alguns dirão que há outros exemplos melhores dele, mas pra mim já deu pra ter uma noção da tônica. Há quem goste, só não é o meu caso.

Segunda-feira

A rua estava lotada. Era gente demais. Mas também pudera, né? Oito horas da manhã, todo mundo querendo chegar no trabalho e todos atrasados. Ponto de ônibus lotado. Ele olhou para aquela situação com uma coragem danada... Mas era o jeito, segunda-feira é o dia.

Depois de meia hora em pé na fila, após o menino ter espirrado no seu sapato mocassim, a mulher atrás dele ter tossido umas três vezes no seu cangote e ainda o jovem com aquela música de celular nas alturas, conseguiu finalmente entrar no ônibus. Não conseguiu lugar pra sentar, é claro, mas eis que seu telefone toca. “Ai, ai. Não consigo uma folga.”, pensou.

Olhou para a tela: “Número desconhecido”. Ficou intrigado. Resolveu que não atenderia, não gostava dessas coisas. O ônibus estava tranquilo no engarrafamento, não movera quase nada. O calor humano começava a aumentar, sua camisa de mangas compridas não auxiliava em nada sua refrigeração corporal.

O celular tocou de novo. “Número desconhecido”. Não atendeu, não estava tão seguro de atender o celular bem no meio daquela multidão, mesmo por questões de segurança. Mas agora o danado do celular não dava descanso. O jeito foi atender:

– Alô?
– Aristovaldo? É você?
– O quê? Como você sabe meu nome?
– Ari, seu bobo, aqui é a Joélia!

Ari pensou, num milésimo de segundo: “Quem?”

– Ah... sim... – disfarçou Ari – Como você conseguiu meu número?
– Ué, a Fê me passou depois da balada, lembra? Mas deixa eu te perguntar, vamos sair de novo, né?

O ônibus começou a se mexer, Aristovaldo precisou se segurar rapidamente, enquanto raciocinava furiosamente para tentar entender o que estava acontecendo, respondeu por reflexo:

– Claro, vamos sim, é que agora não dá pra conversar, mais tarde te ligo.
– Tá bom! Té mais.
– Até.

Desligou o celular. Olhou para o relógio. Nove e uns quebrados. Quem liga pra outra pessoa antes das onze? E ainda mais pra falar de sair? Aristovaldo não teve dúvida: a mulher era louca e ele tinha era que dar um jeito de não sair com ela. Com alguns rápidos deslizes do indicador, bloqueou o número dela no celular. Por mais que tentasse, não conseguia lembrar em que balada conhecera a tal “Joélia”. 

O ônibus parou, ele desceu. Mal começou a andar e um carro passou sobre uma poça de lama próxima, respingando água na sua calça social preta. Segunda-feira era o dia. Era um carro escuro, vidro fumê, freou rapidamente, alguns metros à frente de onde estava Aristovaldo.

Este andou um pouco mais, quando passava ao lado do carro, uma porta se abriu, era um Fusion, de lá dois braços musculosos agarraram o homem e puxaram-no para dentro do carro, rapidamente o encapuzaram e amordaçaram. Pronto. Segunda-feira era o dia. 

Sentiu o carro sacolejar durante um bom tempo. Ele sem o celular não tinha a menor ideia de tempo, se bobear não saberia dizer nem que dia do mês era. Quando finalmente conseguiu enxergar de novo, estava numa cadeira de ferro, algemado por trás e com os pés firmemente amarrados à cadeira.

– Preste bem atenção – disse um homem vestido de terno, mãos enormes e olhos pequenos, bem à sua frente – Eu vou lhe perguntar só uma vez. O que você sabe sobre esta pessoa?

Na mesa à sua frente (só agora Aristovaldo reparou que havia uma mesa ali), o homem depositou uma foto que ele reconheceu ser a tal Joélia. A forte luz branca (a única iluminação do ambiente escuro) fazia reflexo na foto e no metal da mesa. Aristovaldo não conseguiu raciocinar direito. Babuciou nada e alguma coisa. 

POW! O homem desceu a pesada mão fechada na mesa. 

– TU ACHA QUE EU TOU BRINCANDO AQUI, MANO VELHO?
– De-de-desculpe! Eu só saí com ela numa balada e…
– Como é que é? Balada?
– Pois é, nem conheço essa Joélia direito!
– “Joélia?” Do que você tá falando? Tu num tem medo de morrer não é? Tá começando a me irritar de novo, camarada.
– Pela mor de Deus! Não faça nada comigo! Eu nem conheço ela direito, ela me ligou hoje de manhã, foi só isso.

O homem afastou-se da mesa para confabular com duas outras pessoas na penumbra. Uma mulher aproximou-se da mesa, tinha uma cara linda de morrer, só não combinava com a voz de homem que saía da boca:

– Olha, parceiro, qual é teu nome?
– A-a-ristovaldo.
– Hum… Tu trabalha com o quê?
– Sou técnico de TI, trabalho no centro.
– Pois é, rapaz, houve um engano aqui ó. – parou um instante para pensar e continuou – Vamo fazer o seguinte. A rapaziada vai te deixar lá nesse teu trabalho e tu vai ficar pianinho sobre isso aqui, tá ligado?
– Claro, claro!

Encapuzado mais uma vez, Aristovaldo sentiu o sacolejar do carro diminuir conforme ele parava. Tiraram o capuz, desceu do carro que logo partiu em disparada. Estava na porta do trabalho. 

Subiu as escadas sem pressa, pensando no que falaria pro chefe pra justificar estar chegando tão atrasado. Bem podia culpar o trânsito, mas sabia que não ia dar muito certo; a justificativa podia ser boa como fosse, Seu Francisco não ligava, só queria saber de serviço feito. Segunda-feira é o dia. 

– Eita, Aristovaldo, bonito hein?
– Olha, Seu Francisco, deixa eu explicar…
– Olha, nem vem, não quero saber. Conserte a impressora do financeiro, aproveita e já vê com a Fernanda quem é essa tal de Dalila que passou aqui perguntando por ti.

Aristovaldo caminha para a sala desconfiado. Fernanda o vê:

– Oi Ari! Mas que cara é essa?
– Hunf! Você nem imagina.
– Ah, deixa eu te apresentar. Essa aqui é a Dalila, gêmea da Joélia.


Uma das 5 menções honrosas no IV Concurso Literário Icoense (CLIC) Poeta José de Oliveira Neto (2017). O resultado ficou salvo aqui.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Obtusa obra

Podia pôr por perto
Para poder pegar,
Permanecia parado
Pestanejava,
Parou, postulou.

"Quero quitar
Quando qualquer questão,
Qualificável,
Quiser queixar."

Rapaz raquítico
Rojando rabugices
Raciocínio risível
Refluxo, retina ressecada.

Saiu soturno,
Sereno
Sem saber
Se seria saciado.

Trabalhou tenazmente,
Tentou tocar. Terminou.
"Típico."
Triste, tremulou.

Urdia-lhe uma úlcera,
Usualmente.
Ulteriormente,
Um ultimato.

Viveu vazio,
Vanglórias verbais,
Vontade volúvel,
Valiosa vida virulenta.
Voando... vai vento...


Poema classificado no 6º Concurso Literário de Itaporanga, porém nunca publicado.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Inferno

Morreu.
Olhou para o lado.
“Não!”, pensou, aterrorizado.
Sua sogra o esperava,
Sorrindo.


Microconto premiado na categoria "Humor", no III Concurso Cultural de Microcontos da Biblioteca do IFSP - Câmpus Araraquara (2016), dá pra ver o post deles aqui.

P.S.: é só pela piada, viu? Minha sogra é excelente! (Não, não é psicologia reversa).

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Conversas

Há dez anos ele vem para o mesmo bar na esperança de encontrá-la de novo. Todo dia vinte e cinco do mês, lá está ele. Tinha que ser nesse dia, porque era aniversário dela. Só que ele esquecera o mês. Não importava, ele poderia esperar.

– Boa noite, Dr. Haroldo. O de sempre?
– Hoje um duplo, por favor.

Chamavam-no “doutor”, não sabia o porquê. Não era advogado, não era médico, não tinha doutorado, nem se vestia tão bem assim. Mas sempre fora conhecido por “doutor”. Verdade seja dita: ele gostava, era bom o reconhecimento – mesmo que não merecido. 

Olhou ansioso para a entrada do bar, entrou uma senhora quase idosa, acompanhada de outra. Ficou desconfiado. Detestava que gente velha o abordasse, pensava que isto poderia denegrir sua imagem. Aliás! Agora sim, este é âmago da questão: sua imagem, não havia nada mais valioso. Pense só você, conheci o homem durante tanto tempo e só agora começo a compreendê-lo.

O barman trouxe a bebida. Haroldo pegou o copo com as mãos mas apenas ficou balançando o líquido amarronzado, sem levá-lo à boca. A senhora que entrou falava alto, também não gostava de gente que falava alto. Ela e amiga conversavam, sentadas numa mesa próxima ao balcão:

– Então, Cassandra, como foi sua viagem?
– Você nem acreditaria! Encontrei com o Fernando.
– Nossa! E como vai ele?
– Ah, parecia bem, não quis falar muita coisa. Mas aí encontrei com a esposa dele depois, ela me disse que ele está com depressão.
– Hum... mas isso não é nada demais, né? É só uma fase.
– Pois é, também acho.

Haroldo ouviu a conversa por alto. "Depressão". Ele sabia que não era só uma fase. Enfrenta este problema há muitos anos já, tem dias que são mais fáceis. Outros nem tanto. Já tentou o suicídio duas vezes, numa delas quase conseguiu. Mas ninguém desconfiava. 

Ele era o “doutor” na empresa, todos lhe tratavam com respeito. Era contador, mas trabalhava na gerência há muito tempo, o chefe não confiava em mais ninguém. Haroldo gostava do respeito, tornava-lhe mais vaidoso. Em casa, morava sozinho. Bonito apartamento, tudo novo – ele detestava coisa velha. 

Em outubro de 72 ele perdeu a mãezinha. Pobre criatura. Analfabeta, casou por obrigação com um homem que entendia que ela deveria ser sua empregada e ainda lhe satisfazer os caprichos. Para a sorte (ou não) da moça, o homem não viveu muito tempo, saiu numa viagem de serviço e não voltou mais. Morreu, diz-se. Diz-se. 

Hoje, com 45 anos, Haroldo pensa que foi lá que tudo começou. Era-lhe mais confortável deixar os sentimentos guardados. Satisfazia sua necessidade por mulher com o dinheiro e a de amigos com o rádio, depois com a televisão, e por fim com a internet. Muito eventualmente um livro, mas nunca terminava. 

Balançou o copo, não bebeu nada. Algumas pessoas chegavam no bar, nada dela. As senhoras ao lado continuavam sua conversa. O barman ligou a televisão, jogo do Barça. “Nada demais”, pensou Haroldo. Detestava os estrangeiros, e mais ainda os brasileiros que denegriam o Brasil. Amava a pátria, mas tinha sérias dúvidas se a recíproca era verdadeira. 

Talvez a pátria se sentisse traída, na verdade, porque contava com um admirador tão ferrenho, mas tinha dúvidas quanto a sua lealdade. Isto porque o homem se dizia tão patriótico, mas seu celular era de Taiwan, a camisa era importada da Itália (ele fazia questão), o jeans sabe-se lá de onde, os óculos de grife brasileiros é que não eram. Talvez a pátria também o amasse, mas não sabia se a recíproca era verdadeira. 

– Mas tu não sabes que a Gertrudes foi traída?
– Mas também pudera né, a pobre se chama “Gertrudes”!
– Ô Cassandra, mas ela é gente boa.
– Pois é, mulher, mas homem não pensa assim né?

Haroldo captava trechos da conversa das duas senhoras. Fingindo-se ensimesmado, na verdade não encontrava nada dentro de si. Fugia de seus vazios internos, deslocava-se ao máximo para o exterior, temendo e tremendo com o que encontraria em seu interior quando finalmente tivesse que lidar com ele.

Porque essa hora sempre chegava. 

Ele saía cedo de casa, chegava cedo na empresa. Trabalhava bem. Almoçava num restaurante próximo. De noite era que se dava ao luxo de fazer alguma coisa diferente. Não gostava de cinema, não gostava de teatro. Gostava de tomar uma de vez em quando. Mas nem sempre. Desconfiava que era uma necessidade interior de buscar contato social, só desconfiava. Foi numa dessas que conheceu ela. 

Devia ter seus quase trinta anos, não tinha corpo escultural nem formosura que a destacasse. Mas aqueles olhos. Eles olharam para Haroldo e pareciam encontrar o que estava dentro. Haroldo lembra como ficou arisco, tentando ao máximo desviar-se da mirada que insistia em encontrá-lo. Como ímã, ele mesmo não conseguia evitar. 

Ela entrou naquele mesmo bar e sentou-se numa mesa. Pediu apenas um copo d'água pra beber e ficava olhando pro relógio. “Esperando alguém, na certa”, pensou Haroldo naquele dia, decepcionado, mas, ao mesmo tempo, satisfeito em saber que ali não haveria futuro – um prazer misterioso que ele cultivava secretamente.

Porém ninguém chegou. Ele a olhava de canto, esperando para ver o que aconteceria. “Como era direta”, lembrou-se. Foi ela mesma quem tomou a iniciativa: após um tempo esperando, levantou-se da mesa e sentou-se ao lado de Haroldo, no bar. Haroldo nervoso, apenas fez um meneio com a cabeça.

Ele não tem a menor ideia como foi que começaram a conversar. Não lembra quem falou o quê, mal lembra do assunto. Porém recorda claramente de algo: era seu aniversário, e ela ficou de encontrar uma amiga ali para comemorarem juntas. Morava sozinha, natural de Minas Gerais, estava ali procurando emprego. 

O que tinha ela de diferente, que conseguira arrancar tanta coisa dele naquele dia? Ele mesmo não sabia dizer. Talvez tivessem sido aqueles olhos. Conversaram amenidades, ele falou tanto que ficou surpreso ser capaz de tal coisa. Em determinado momento, ciente de sua tagarelice, emborcou um copo e ficou calado, envergonhado. Ela, ao contrário, o incentivava.

Mas ela foi embora. Trocaram números de telefone, mas ele perdeu o dela, deve ter caído do bolso quando tirou as chaves em algum lugar; não seria primeira vez que ele perderia coisas assim. Chateado consigo mesmo, passou os próximos dias, irritado, tomando um pouco mais do que deveria. 

Foi numa dessas que tentou a primeira vez o suicídio. Olhou para um cinto, amarrou-o em volta do pescoço, mas não teve coragem. Passada a crise, resolveu que voltaria àquele mesmo bar e esperaria que ela aparecesse de novo. Mas nada.

O tempo foi passando. Ir para o bar se tornara um hábito e, desconfiava ele (só desconfiava) era o que ainda lhe mantinha preso ao fio da mente sã. A esperança de reencontrá-la e ao mesmo tempo a decepção de nunca ver isso cumprido nutria nele o sentimento misterioso de alegria em falhar. 

– Cassandra, mas vamos falar sério.
– Diga.
– Tu chegou a falar com o Francisco sobre aquele assunto?
– Hum... Olha... falei...
– Que cara é essa, Cassandra?
– Vou te falar logo: ele não quer fazer negócio.
– Ah, não acredito! Mas por quê?
– Ele disse que tem outras propostas e...

“Conversas fúteis”, pensava Haroldo. Gostava dessa palavra “fúteis” e sempre que podia fazia uso dela. Pena que não tinha pra quem falar. Era sozinho mesmo. Olhou para o relógio: já iam dar onze horas. Olhou para a entrada do bar novamente, com ainda um fiozinho de esperança para romper. 

Nada dela. “É, hoje não foi o dia”. Jogou uma nota de cinquenta no bar, o barman agradeceu e viu o “doutor” se levantar pesadamente do banco pequeno demais para aquele corpanzil flácido. Ele trabalhava naquele bar há um bom tempo, foi seu primeiro emprego aos dezoito anos e foi ficando. No começo não ligava muito para os clientes, gostava de ganhar dinheiro, mas depois que viu que esta não seria sua realidade, satisfazia-se em ler as histórias das pessoas em suas faces.

Foi numa dessas que viu Haroldo entrar de vez em quando no bar, pedia sempre uma cervejinha, ia ficando por ali. Lançava olhares lânguidos para a televisão, não falava com ninguém, não parecia esperar por ninguém. A princípio não ligou muito pra isso. Chamou-o “doutor” uma vez apenas por acidente e o homem gostou, dava-lhe uma gorjeta generosa. Foi deixando acontecer. 

Hoje ele acha que fez mal em apiedar-se do homem, melhor teria sido mesmo se tivesse só feito seu trabalho. Mas tinha coração mole, ô diacho! Teve uma ideia: contratou uma atriz pra conversar com ele um dia, só pra ver o que  aconteceria. Era uma amiga sua de faculdade, já tinham dormido juntos algumas vezes e ela estava precisando descolar uma graninha. Resolveu a questão.

Agora lavando o copo que Haroldo deixou no balcão, ele pensava que jamais poderia imaginar que dez anos depois o mesmo homem ainda estaria lá. Pensou mais de uma vez em dar-lhe o telefone mesmo da moça, só para que ele pudesse seguir em frente. Mas era cinquentinha toda vez que ele vinha... 

Haroldo pegou o metrô, dentro de pouco estava em casa. Abriu a porta, acendeu a lâmpada, jogou a chave na cestinha junto com outras. O silêncio. Este era o pior. Às vezes pensava que se morasse num lugar mais “popular” talvez fosse melhor, daria pra ouvir o barulho dos vizinhos, teria com quem reclamar. Mas queria vida boa, os vizinhos eram tranquilos, cumprimentos no corredor, e só.

Talvez se tivesse alguém pra conversar as coisas tivessem sido diferentes. Ele sempre gostou de ter aquele sentimento corroendo-lhe por dentro, alimentava-se dele. Mal sabia que na verdade, neste caso, a recíproca era verdadeira. Aquele sentimento mau se alimentava dele, até que não havia mais nada para consumir.

Neste nada, Haroldo percebeu que podia fazer o que deveria ser feito. O inimigo sorrateiro venceu; na verdade, Haroldo nem sabia se estava lutando, ou se algum dia lutou, mas, no fundo, tinha certeza que mesmo que quisesse, não conseguiria lutar sozinho. Talvez se tivesse alguém para conversar.

Foi no apartamento mesmo, no silêncio.


Publicado originalmente na 12ª edição da Revista Avessa, 2016, p. 58-62.