sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Resenha – A lua na sarjeta

GOODIS, David. A lua na sarjeta. Porto Alegre: L&PM, 2005.


Este livro está naquela categoria dos "li quando era adolescente, gostei, e resolvi ler de novo porque não lembro mais de absolutamente nada da história, então é como se eu estivesse lendo pela primeira vez." O nome da categoria é exatamente esse. À resenha.

Tá, não tem como começar sem falar dessa edição de bolso da L&PM. Ah, mano. Não sei por que eu simplesmente amo, amo esses livrinhos de bolso. Tem alguma coisa de prático e quase mágico. Um objeto tão pequeno mas ainda assim tão cheio de aventuras (tá, eu sei que todo livro é assim, mas quando ele é pequeninho...). Essa capa também ficou excelente! Traduz muito bem o tom do livro. E já que mencionei o tom do livro, saca só:
Na entrada da ruela que dava para a Vernon Street, um gato cinza esperava que uma ratazana grande saísse de seu esconderijo. O rato tinha corrido para dentro de um buraco na parede do barraco de madeira e, agora, o gato estava inspecionando todas as fendas estreitas e se perguntando como o rato conseguira se espremer para passar por ali. O gato esperou, na escuridão grudenta de uma meia-noite quente, por mais de meia hora. Quando foi embora, deixou a marca de suas patas no sangue seco de uma garota que tinha morrido ali na viela uns sete meses atrás. (p. 5)
Perdoem a citação grande, mas é que poucas vezes vi um autor conseguir imprimir tão bem, já no seu primeiro parágrafo, todo o tom, peso e estilo da história que ele vai contar! É de ficar boquiaberto com a capacidade de Goodis – repito, já no primeiro parágrafo! – de imprimir de modo tão certeiro o estilo da história que quer contar.

E esse estilo nada mais é do que a literatura noir. Em francês "preto", este termo se refere, via de regra, a uma literatura policial em que se destaca a sujeira, a miséria, os vícios e doenças, em suma, a podridão escondida da sociedade. É o mesmo estilo de Max Payne, por exemplo. Noir me lembra aquele cinema em preto e branco, cheio de vielas, crime e pesares. David Goodis deve ter sido um mestre disso, porque não é possível. O cara é um absurdo de talentoso.

Neste livro companhamos a história de William Kerrigan, um estivador que mora numa casa miserável, tem uma família desastrosa, vive uma vida deplorável de vícios e violência. Ele quer descobrir o que aconteceu com sua irmã, essa cuja morte é mencionada no primeiro parágrafo (citação acima). No meio do caminho, ele vai lidar com o que a sociedade tem de pior, tudo para tentar resolver esse problema que fica martelando sua alma, sem nunca lhe dar descanso.

Kerrigan, eu diria, me soa quase como um personagem de Dostoievski. Cheio de contradições e inundado por um complexo de inferioridade, ele não apenas julga impossível mudar sua condição, como também se rende a ela. Por causa disso, ele não só está preso numa realidade como também se recusa a sair dela.

O enredo é muito, muito bom. Claro, o estilo carrega a gente pra frente. E aqui não falo só do noir, mas também da habilidade de Goodis em misturar narração, descrição e diálogo de modo adequado, pra que a gente nunca fique cansado demais de nenhum deles. O destaque que quero fazer é, na verdade, para as reviravoltas que o livro traz. Mais de uma vez arregalei os olhos e exclamei para mim: "Mentira!".

Isso sem falar de algumas cenas que são tão bem escritas que eu literalmente conseguia assisti-las na minha cabeça, como se um filme estivesse acontecendo. Eu conseguia ver a cena certinha, eu conseguia sentir como os personagens se moviam, respiravam, o que eles sentiam, o que eles faziam. Meu Deus, como pode um livro ser capaz de me transportar tão completamente para uma outra realidade? 

Para fins de registro, cito a cena em que Kerrigan visita o quarto de seu amigo, o pintor que agora não lembro o nome, falo da cena do quarto e a da pintura. Quando terminei de ler aquela cena, fechei o livro e fiquei olhando para o vazio, abismado com a qualidade do que tinha acabado de ler.

Por fim, só me resta concluir dizendo que este livro é muito, muito bom. Não foi à toa que, na adolescência mesmo, eu comprei todos os livros de David Goodis que consegui encontrar. Creio que ainda não encontrei todos. Mas este certamente será um autor que vou revisitar num futuro não muito distante. Bom demais. De-mais.

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