domingo, 30 de julho de 2023

Resenha — Daniel

EDWARDS, Jay. Daniel: Poder, negócios e política à luz da Bíblia. Brasília: Palavra, 2022.


Esse é um daqueles livros que eu leio e fico: "Putz! Por que eu não pensei nisso?". Por outro lado, é um dos poucos exemplos de romantização de histórias bíblicas que vejo onde a coisa não cai num proselitismo exagerado ou simplesmente numa utopia de acontecimentos. Me adianto. Vamos à resenha.

Quero começar falando dos problemas. Primeiro que não curti a escolha do editor de usar aspas para destacar os diálogos no lugar de travessões. Não é muito comum no Brasil e não custava nada fazer essa troca, que deixa a leitura mais fluida visualmente, no meu ponto de vista.

A narrativa tem vícios. Há vários momentos de "falar" em vez de "contar" a cena, a coisa fica muito simplificada. Também se verifica algumas opções de tradução meio ruins ("juntamente com", vários "parecia que", etc.), mas aí já não sei se foi opção da tradução ou do próprio texto original. De qualquer forma, se vê uma escrita não muito madura.

Esse talvez seja o principal problema do livro. Vemos uma escrita quase "amadora", ou talvez, em vários momentos, mais próxima de uma escrita acadêmica do que literária. Se por um lado isso é uma abordagem interessante, por outro peca em não ser muito boa em nenhum dos dois aspectos. Não é acadêmico o suficiente para ser desse tipo, tampouco literário o suficiente para ser do outro.

O livro cai na dificuldade de toda a ficção cristã que usa personagens principais da Bíblia: Daniel simplesmente não tem defeitos e não erra. Embora isso não tire o brilho do personagem por conta dos feitos, por outro o torna unidimensional, sabemos que ele nunca vai errar, mesmo que tenha dúvidas em alguns momentos. Isso reforça minha tese de uma escrita meio amadora.
Eu creio que Deus pode nos livrar, mas eu não sei se ele vai. (p. 26)
Embora eu seja suspeito para falar, porque gosto muito de ficção histórica (ainda mais bíblica), nenhum desses problemas eclipsa a história. Tudo isso pra dizer que os problemas desse livro não são suficientes para cobrir a boa leitura que ele proporciona.

Fica evidente que o autor fez um excelente trabalho de pesquisa para não escrever qualquer coisa. Esse esmero dele torna a leitura mais envolvente, a narrativa se torna um misto de curiosidade pelo enredo que envolve o personagem principal e, ao mesmo tempo, uma espécie de documentário sobre uma época que nos deixa fascinados.

Se por um lado o personagem principal, Daniel, é meio unidimensional, por outro a romantização da história de vida dele é muito bem feito. Acompanhamos Daniel adolescente em Jerusalém, sua captura pelo exército inimigo, seu exílio até a Babilônia, e toda sua história naquela cidade, onde ele, com ajuda e capacitação de Deus, se provou ser, quem sabe, o maior estadista que o mundo já viu.

A história é muito boa. E aqui embora seja devido crédito ao autor, ele foi esperto porque a história é boa simplesmente porque a História é boa! Como ele está abordando um fato que aconteceu mesmo e ainda registrado na Bíblia, não precisa inventar muito para que sejamos cativados.

O livro cativa, de fato. Foram mais de 400 páginas que nem vi passar. Mesmo sabendo tudo que ia acontecer, me vi preso nas páginas, querendo saber como Daniel se comportaria, como estavam se adaptando Hananias, Misael e Azarias (também conhecidos como Sadraque, Mesaque e Abede-nego) à sua nova condição, como um escravo hebreu se tornou um dos maiores estadistas de todos os tempos, passando por quatro impérios diferentes e ainda assim mantendo seu status e relevância.

Fantástico, absolutamente fantástico. Um livro que, apesar de todas as suas limitações, quero ter na minha estante. Pra finalizar, se eu puder ser bem sincero, sinto é uma pontada de inveja do autor, por ter escrito uma história que eu mesmo adoraria ter escrito. Mandou bem, Jay Edwards, curti demais. Que Deus use essa história para continuar abençoando vidas por muitas gerações!

domingo, 16 de julho de 2023

Resenha — Annihilation

VANDERMEER, Jeff. Annihilation. New York: FSG, 2018.


Esse é um livro que eu não sei nem por onde começar. Ele é tão diferente de tudo que já vi e a leitura é tão fascinante que... descrevê-lo parece limitá-lo. Vamos ver o que consigo fazer.

Comprei esse livro porque tinha visto o filme na Netflix e achei muito fascinante: uma área secreta de repente começou a brotar com uma biodiversidade que não faz sentido. Por isso, uma agência envia expedições à área para investigar e descobrir o que está acontecendo antes que seja tarde, porque conforme o tempo passa, a área se expande.

O filme em si já é cheio de coisas que fazem a gente questionar a própria realidade e racionalidade da coisa. Agora o livro... meu Deus... é muito mais profundo e, por isso, bem mais complicado de explicar.
I was certain no one else left here, not the surveyor, not the psychologist, could see that stirring of the inexplicable. (p. 105)
O livro parece ser de vários gêneros e de nenhum ao mesmo tempo. É uma espécie de ficção científica... mas não tecnológica, e sim biológica. Ficção biológica? Mas tem suspense também. Não chega a ser terror, mas suspense, aquela constante sensação de que tem algo errado. Mas não é um suspense tanto de dar medo, mas de encher de curiosidade pelo que tem naquele lugar estranho. Bioficção? Não sei explicar direito.

O livro fala de uma coisa que está além dos sentidos humanos, mas que, ao mesmo tempo, não é sobrenatural. Pelo contrário, é totalmente natural, biológico, vivo. O ser humano só não consegue compreender. Há uma forte aura de Lovecraft, mesmo não sendo lovecraftiniano
Was I in the end stages of some prolonged form of annihilation? (p. 184)
Dizer que eu li o livro é modo de dizer. Eu engoli. A narrativa é exageradamente fascinante. Resumir a história aqui parece, novamente, ser muito pouco em comparação. De que adianta eu dizer que a expedição era constituída apenas de mulheres, que a personagem principal é a bióloga, que é difícil dizer até que ponto a narrativa dela se mistura com fantasia? Não adianta, é preciso ler o livro.

A história faz a gente sempre querer seguir em frente. São perguntas demais, são mistérios demais pra uma mente curiosa aguentar. Não temos escolha senão devorar o livro pra tentar entender o que diabos está acontecendo lá na Área X.

Detesto terminar essa resenha com uma descrição de Lovecraft, que sempre dizia: "Era um horror indescritível". Mas a verdade é que não vou conseguir traduzir bem o que o livro traz, é uma experiência que eu só consigo incentivar você a ter também.

terça-feira, 11 de julho de 2023

Resenha — At first sight

SPARKS, Nicholas. At first sight. New York: Hachette, 2013.


De repente me vi lendo livro romântico (não me refiro ao período histórico, mas à temática). Se fosse pra já dar um parecer, digo que me surpreendi bem mais do que eu imaginava. Terminei de lê-lo ontem, ás lágrimas. Mas me adianto.

Acho que preciso iniciar falando do autor. Eu já sabia que Nicholas Sparks era um dos maiores autores de romance da atualidade, que livros dele já haviam se tornado clássicos nesse gênero, e que vários deles foram até adaptados pra cinema (com produções bem sucedidas). O que eu não sabia é que de fato ele era bom. Ele é tão bom que, não sei por que, eu achava que "Nicholas Sparks" era mulher, de tão bem que o livro é trabalhado.

Vamos falar um pouco do gênero então. Eu não sou um leitor de livrinhos românticos, eles não me atraem, embora eu curta ver romances de personagens nos meus livros de aventura, ficção, fantasia, etc. Então ler esse livro teve um pouco de descoberta pra mim, que captei alguns padrões dessa área.

Achei interessante como há um foco maior no personagem como pessoa em si. Há uma necessidade de descrevê-los fisicamente, ressaltar traços, e o desenvolvimento deles se dá de maneira principalmente emocional. Em vez de perguntar "O que ele está pensando?", o autor transparece mais a pergunta "O que ele está sentindo?"

O que eu de fato não gosto no gênero são os clichês, acho que é por isso que não me animo com romances: rapaz da cidade grande vai pro interior; mocinho não fala dos seus problemas pra mocinha; mocinha esconde segredos do passado que não são nada demais mas ela tem vergonha de revelar; os dois brigam e eventualmente se reconciliam. Esse é o ciclo de todo relacionamento, e, justamente por isso, é altamente previsível.

Por outro lado, descobri que gosto muito dos dramas e das reviravoltas que esse gênero traz. Nesse ponto, livros de romance são bem parecidos com livros policiais, tudo revolve em torno do mistério: quem fez? Onde foi? Será que ela está falando a verdade? Como fazer pra descobrir? E isso que acaba nos fisgando e tornando a leitura mais dinâmica.
To care for someone unconditionally, for in the end that was what gave life meaning. (p. 315)
Bom, falemos de À primeira vista então, agora. O livro não perde tempo pra mostrar a que veio. É romance que você quer? Então tome. O autor não tem pena de colocar drama logo no primeiro capítulo: amigos, ex-mulher, casamento inesperado, mudança de cidade, gravidez não planejada. Tome drama.

Quanto aos personagens, se em alguns pontos os achei bem clichês (o homem desinteressado por romance, a mulher chorosa e bem mulherzinha, etc.), por outro lado preciso tirar o chapeu pro autor, que não colocou nenhum princúipe encantado ou princesa mágica, mas personagens bem humanos. A gente constantemente vê como eles são de fato e não tardamos a criar simpatia ou, no mínimo, curiosidade por suas histórias.

A cereja bolo, porém, pra esse livro, é que ele não é um romance clássico no sentido de conquista, estando mais próximo de uma história sobre família. E aí sim. Quando o livro de fato dá essa guinada, a história ganha uma força colossal, é como se finalmente estivéssemos encarando a alma do livro.

E as reviravoltas são muito boas, boas daquelas de provocar uma explosão de sentimentos na gente. Rios de lágrimas e olhos incapazes (in-ca-pazes) de tirar os olhos das páginas. Absolutamente grudados nas letras, tentando absorver tudo e sabendo que isso é impossível ao mesmo tempo. E nesse momento não dá pra ter outro pensamento: que livro! Que livro!

Não sei se gostarei de fato de livros de romance, o gênero ainda me dá um pouco de tédio e não me anima muito. Mas não tenho como negar que esse livro aqui vai ficar na minha estante, e até bateu uma curiosidade em ler mais obras desse autor. Se livros românticos em geral são bons eu não sei, mas esse aqui é.

sábado, 1 de julho de 2023

Resenha — We

ZAMYATIN, Yevgeny. We. New York: Dover Publications, 2021.


Será que existe alguma espécie de sexto sentido para livros? Sei que não faz o menor sentido, mas essa é a única explicação. Como pode eu estar simplesmente passeando numa livraria, ver um livro aleatório, do nada, e resolver comprá-lo, só pra depois descobrir que estava diante de uma obra-prima? Sei lá, difícil de explicar.

Estamos aqui diante de uma obra que julgo desconhecida, mas que precede quase todas as distopias que marcaram o século XX. Sim, "Nós" é uma distopia sensacional escrita em 1921 (10 anos antes do clássico "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley — resenhado AQUI), no olho do furacão da Revolução Russa.

O autor tem um nome difícil: Yevgeny Zamyatin e, nesta obra descreveu uma distopia 500 anos no futuro, onde todos vivem sob a poderosa mão do Estado Uno (ou Estado Unido), que rege a sociedade com mão de ferro, tudo pautado pela lógica, pelos números, pela eficiência. Não por acaso, o autor foi considerado um pária pelo regime socialista russo e findou exilado com sua família em Paris.

Falando da obra em si, que contraste com o livro anterior! Enquanto naquele eu encontrei uma narrativa bem água com açúcar, nesse aqui cada parágrafo é cheio de informações e conceitos muito interessantes! Um Estado Único, onde as pessoas não têm mais nomes, são apenas Números, onde as relações sociais são guiadas por lógica, onde tudo é reto e quadrado... fascinante!

Para as pessoas daquela época, "liberdade" seria o mesmo que um "estado de natureza primitivo e desorganizado". Conceitos como "inspiração artística" eram considerados uma forma de epilepsia que não existe mais.
There are no more fortunate and happy people than those who live according to the correct, eternal laws of the multiplication table. (p. 51)
A capacidade de descrição do autor me surpreendeu, quase no nível que me impressionam as descrições de Érico Veríssimo. É uma atenção a detalhes e ao mesmo tempo um desapego a eles. Além disso, autor é muito bom em representar a confusão mental do personagem por meio da própria narrativa, hora abstrata, hora real, hora um pouco dos dois.

Mas o autor é bom demais nisso, de modo que fica confuso e por várias vezes precisei consultar de novo pra de fato entender o que havia acontecido — e ainda assim não ficar claro algumas vezes. Isso se dá também porque o livro é cheio de simbolismos e metáforas sinestésicas, que misturam realidade com fantasia numa mescla tão homogênea que nem sempre dá pra entender o que tá acontecendo.

O livro prende a gente do começo ao fim. Será que o personagem principal, D-503, ele que ama o Estado; ele que é o idealizador e construtor do primeiro foguete, o Integral; será que ele vai mesmo ser seduzido a se voltar contra o regime? Como vai enfrentar os dilemas morais que incorrem disso? Como vai terminar essa história?

Distopias de modo geral me fascinam. Não sei dizer direito o porquê, mas há algo nelas que me deixam com medo, talvez porque, várias vezes, elas trazem aspectos tão próximos da nossa realidade que deixam uma eterna pulga atrás da minha orelha: "E se?"

"Nós" é um livro sensacional. Honestamente acho que nem absorvi todos os simbolismos que o livro proporciona, de tão denso e interessante que ele é. Eu gostei tanto que me deu vontade de saber russo, só pra traduzir esse livro pra português e dar chance de mais gente conhecer essa obra sensacional.

Leitura mais que recomendada e com espaço vitalício na minha estante.