sábado, 19 de setembro de 2020

Resenha - Pandemias (antologia)

CARVALHO, Fábio Almeida de; MIBIELLI, Roberto; BORGES, Edgar (orgs). Pandemias: cuidados, prevenção, efeitos e consequências sobre a vida humana: dimensões múltiplas de uma temerária e inquietante experiência coletiva. Vols. 1 e 2. Boa Vista: Editora da UFRR, 2020.

       

Fala, meu povo! Estamos de volta aí para mais uma resenha. Desta vez a resenha da antologia "Literatura de Circunstâncias", da editora da minha Universidade Federal de Roraima. Com a temática "Pandemias", ela foi dividida em dois volumes porque engloba quatro tipos diferentes de texto: poesias, minicontos, crônicas e contos (estes exclusivos no volume 2). 

Tá, geralmente eu começo falando dos livros em si antes de falar do conteúdo; mas dessa vez vou inverter, porque o que eu realmente tenho a falar está nessa segunda parte – e infelizmente não é coisa boa, porque me atrapalhou demais demais.

Começando pelo volume I, nele encontro poesias, minicontos (um meu aí nesse meio!) e crônicas. Eu particularmente não me julgo apto para analisar ou sequer opinar de modo mais objetivo sobre poesias (inclusive questiono-me se alguém o é). Então vou dar uma opinião geral: não teve uma que realmente me cativou, simples assim. Não sei se estava num dia ruim pra poesia, mas são todas longínquas demais pro meu gosto.

Quanto aos minicontos, olha, devo dizer que tive uma surpresa feliz. Sinceramente, o único defeito desta seção é que ela é curta demais! Poderia facilmente incluir mais coisas. Eu fiquei surpreso em ver tanta coisa boa junta. Tem um miniconto meu aí nesse meio, mas os que mais gostei foram "À espera" de Alex Alexandre da Rosa (Jundiaí/SP) e "Proteção" de Thaís Helena Barros Carneiro Aguiar (Recife/PE). Este último achei tão bom, mas tão bom, que faço questão de reproduzi-lo aqui na íntegra:
"Chegou em casa, tirou uma máscara, caíram todas." (p. 71)
Quanto às crônicas, em geral, elas são muito bem escritas; mas acho que elas funcionarão melhor como registro histórico para o futuro do que como expressão do presente. Digo isso porque, gente, ninguém aguenta mais falar sobre pandemia – ou melhor: ouvir sobre ela. Chega, chega. É cansativo demais falar só sobre o mesmo tema. Já está nos jornais, na internet, na nossa vida desde a hora que acordamos. Como falei, não é que o material seja ruim, só que acho que ele será melhor para o futuro do que para o presente 

Evidente que existe aí toda uma carga de subjetividade pessoal. Mas, gente, resenha é isso. É a minha humilde opinião. E digo mais: acho que, enquanto não podemos fechar os olhos para este problema, está na hora de lidar com ele sem que ele domine praticamente todos os aspectos da nossa vida. A vida precisa continuar!

Por isso, as crônicas que fogem de modo mais direto ao niilismo pandêmico são, de longe, as mais bonitas. Falo de "O pão de jacaré" de Tássia Hallais Veríssimo (Rio de Janeiro/RJ) e "Beijos virtuais" do grande Aldenor da Silva Pimentel (Boa Vista/RR), por exemplo. "Entre máscaras" (também de Tássia Veríssimo) acho que é uma exceção à regra. 

Bom, eu falho em compreender como o texto "23h59min" é uma crônica – achei confuso demais para minha simples mente de leitor. Aliás, alguns textos navegam entre crônica e conto. Eu, com minha parca bagagem literária, questiono-me se haveria uma possível categoria para "conto-crônica" (contrônica?). 

E, se tal categoria existe, eu não tenho a menor ideia de como diferenciá-los ou classificá-los. Daí este meu simplório comentário que – agora percebo –, uma vez que não tem conteúdo próprio ou se propõe a uma análise mais profunda, não serviu de nada. 

Por fim, não consegui deixar de notar que duas das crônicas que mais gostei são de uma pessoa com sobrenome Veríssimo. Juro que não foi de propósito. Não tenho ideia quem seja essa cidadã, tampouco se tem alguma relação direta com o mestre Érico. Mas que é digno de nota, isto é. 

Passando agora para o segundo volume, onde estão os contos dessa antologia, posso dizer de cara o que achei: nem cheguei a ler. Não consegui. E isto se deu pelo motivo que compõe a segunda parte desta resenha, que vou chamar, por falta de opção, de desastre diagramático

O que eu tenho, então, são seríssimas críticas à diagramação do livro, mesmo motivo pelo qual odeio várias edições da Martin Claret. Só que enquanto eu condenava esta última por imprimir o número bem em cima do texto, chego ao limite da exasperação com o que fizeram nessa edição. Deixo que a imagem fale por si, tentando responder à pergunta: como diabos vocês esperam que eu leia isso?!


A parte das crônicas não conseguiu reproduzir o fiasco diagramático que foi a parte das poesias (foto que vocês veem acima), por isso fiz um esforço pra ler. Infelizmente a seção de contos também ficou extremamente prejudicada pela falha na diagramação, tornando impossível a boa leitura, novamente com uma imagem que cobre mais ou menos 1/3 da página. 

Gente, sério, eu tentei ler. Não aguentei. Meus olhos doíam com o esforço de tentar focalizar em diferentes gradações de cinza. Acho isso realmente uma grande pena, porque era a seção que eu estava mais ansioso por ler. Tem um conto meu nela, mas acho que a leitura só será possível pra quem baixar o e-book. 

Aliás, falando em e-book, resolvi conferir como estava a página no livro digital. Uma vez que a distribuição é gratuita, vislumbrei uma fagulha de esperança. Mas não, também nela encontrei o mesmo problema. Sinceramente não sei como foi que algo assim passou. Não teve um leitor beta que opinasse a esse respeito? Bom, tirem suas próprias conclusões: dá pra encontrar o Volume I aqui e o Volume II aqui.

Bom, o resumo é que: é um livro bonito, tenho certeza que a revisão foi bem trabalhada (embora tenha encontrado ainda alguns erros de digitação e uma falta de padronização no uso do travessão); mas a falha da diagramação é grave demais, porque comprometeu a boa leitura do texto – o que, afinal, é o grande propósito do livro: ser lido.

Mas nem tudo na vida são espinhos. Tem uma parte que não está contaminada pelas manchas das imagens. Pena que são apenas sete páginas: mas que sete páginas, meus amigos! Refiro-me à dedicatória "Devair Fiorotti", escrita só pela Sony Ferseck, sua esposa. 

Eu já falei do professor Devair aqui. Um marco, um ícone para a arte roraimense. E a editora da UFRR acertou na mosca em fazer esta edição em sua homenagem. Conheço poucos que merecessem tanto. Ficamos com saudade, mas ninguém conseguiria expressar isso tão bem quanto sua viúva, que tem um domínio ímpar das palavras. Ela escreve prosa, eu leio poesia. E olha que eu sou bem ruim de ler poesia. 

Por isso, apesar de todos os defeitos que vi nestes volumes, não quero terminar a resenha com um tom negativo, porque não era isso que o Devair gostaria. Ele era um cara que, apesar de todo o mal que estava ao seu redor, fazia questão de propagar e ser o bem. Mais do que o legado artístico e acadêmico, deixou um legado pessoal, que marca todos que o conheceram. Como disse a Sony:
"A faca ceifa o manjericão, mas não sem que sua lâmina saia perfumada. Assim sejamos perfume e flor. Como ele também foi." (p. 21)

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Resenha - Good Omens

GAIMAN, Neil; PRATCHETT, Terry. Good omens: belas maldições. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.


Tá, cometi um pecado literário. Assisti a série na Amazon antes de ler o livro. Pra ser bem honesto (o confessionário só piora) eu nem sabia que era um livro, pensei que era só uma série muito bem escrita. Vamos à resenha, mas já adianto que vou finalizar esse texto com uma heresia maior do que vocês imaginam.

Pra começo de conversa, não tenho ideia como é que se escreve um livro em dupla e ainda assim ele mantém uma super unidade de estilo. Os caras eram realmente muito amigos ou muito bons em saber produzir o que é melhor para o material, afastando-se o suficiente do texto para que ela tenha uma homogeneidade própria.

Dentre os livros que leio, muitos deles são traduzidos, mas vocês pouco me ouvem falar de tradução. Isso geralmente ocorre porque ela cumpriu seu papel. São poucas as vezes que destaco algo dela (e, quando faço, é pra destacar algo ruim.) Mas aqui temos um caso especial..

O tradutor deu um show ao apropriar culturalmente várias expressões que traduzem com perfeição a essência dos personagens. Logo na primeira ou foi na segunda página ele me solta um "cabreiro". Mano, perfeito. E isso não aconteceu só no começo não, ele fez uso de várias expressões e regionalismos brasileiros que traduziram de um jeito incrível o significado e o estilo do livro.

A história é a história do mundo. Depois da Queda do homem (no jardim do Éden mesmo), já somos apresentados ao anjo Aziraphale e ao demônio Crowley, que estarão presentes em toda a história da humanidade até o fim do mundo. Este fim, na história, acontecerá em poucos dias. 

E os autores se debruçam sobre essa trama, incluindo aí o Anticristo (um menino de 11 anos), os Cavaleiros do Apocalipse (Guerra, Fome, Morte e Poluição – que assumiu o lugar da "Peste" quando essa se aposentou), a bruxa Agnes Nutter, sua descendente Anathema Device e o caçador de Bruxas Newt Pulsifer. Impressiona como todos estes personagens, todos!, e até alguns que não citei são muito essenciais para a trama como um todo. Um show de estrutura de livro.

O New York Times classificou essa obra como descendente direto do Guia do Mochileiro das Galáxias. Putz grila! Essa definição está perfeita! O estilo do livro traduz com perfeição o limite entre o absurdo e o verossímil e não ter medo de realmente mergulhar nesse caso para de lá extrair uma aventura fantástica.

Na verdade, ouso até dizer que Good Omens deu um passo além na direção da complexidade. Enquanto o Guia tinha uma narrativa mais linear, acompanhando Arthur Dent, aqui há uma narrativa complexa que não está focada só em um núcleo. É incrível a estrutura criada por estes micronúcleos de loucura (Anticristo, cavaleiros do apocalipse, caçadores de bruxa, o anjo e o demônio) que são na verdade nódulos com identidade própria!  

Conquanto não desafie a realidade como faz o Guia (até por que a temática era outra), é inegável que sua relação com o absurdo é muito bem construída e até, por que não?, plausível! E a gente percebe que Good Omens só não desafia mais a realidade pelo bem da unidade da trama. Porque, se quisesse, poderia facilmente e não seria inverossímil.

A divisão do livro não é em capítulos, mas em blocos de tempo. Cada parte, portanto, abriga toda a série de acontecimentos que ocorreram naquele dia, ou naquele bloco (como no primeiro "Onze anos atrás). E próximo do final, os blocos representam os últimos dias antes do fim do mundo ("Quinta-feira", "Sexta-feira", etc.).

Os autores não têm pena de usar advérbios de modo. Como o tom do livro é super informal e beirando o cômico-irônico com frequência, dá pra passar batido na maior parte. Só que tem vezes que não custava os autores terem dado uma freada e o excesso irrita. Por outro lado, esse estilo definitivamente rende boas risadas, temperadas com absurdo e espanto. O que, claro, as tornam ainda mais deliciosas.

Novamente preciso dizer que a trama é muito bem construída. No segundo terço do livro a narrativa desloca-se do eixo Aziraphale–Crowley para o Grupo de Crianças–Caçador–Bruxa com uma maestria estonteante. Você nem percebe a transição, de tão suave que ela é. Um uso magnífico das ferramentas literárias como poucas vezes eu vi.

O livro é uma espiral de acontecimentos que vai ficando cada vez mais intensa conforme se aproxima do fim. Excelente uso do "ticking clock" pra levar a história para frente e manter o leitor antenado. Eu já quase acho uma pena ter assistido a série antes e ler o livro.

Além de ter uma história que realmente captura o leitor, personagens super divertidos de conhecer e se relacionar, um ambiente construído com uma abordagem jovial e despojada, o livro também consegue abordar temas diferentes e bem interessantes. Começo com essa citação:
"Pode ser que ajude na compreensão das questões humanas ter uma noção clara de que a maioria dos grandes triunfos e tragédias da história é provocada não por pessoas sendo fundamentalmente boas ou más, mas por pessoas sendo fundamentalmente pessoas." (p. 34)
O livro aborda com precisão assustadora a questão da maldade humana. Tem gente – e muitos deles cristãos -- que acha que a maldade humana tem fonte em demônios ou no diabo. Enquanto parte disso pode até ser verdade, enganam-se ao subestimar a própria capacidade humana pa,ra fazer o que é mal. 

Meu amigo, não precisa de demônio pra ensinar o ser humano a fazer coisas terríveis contra o próprio ser humano. E, como falei, o livro é de uma precisão que até assusta. Em determinado momento do livro, este é o autor falando de Crowley, o demônio:
"[...] nada que ele pudesse bolar era metade tão maligno quanto o que eles bolavam por conta própria. [...] cada vez mais difícil encontrar algo de demoníaco a fazer que se destacasse no cenário atual de maldade generalizada." (p. 40-41)
Como vocês bem sabem, eu sou cristão, calvinista reformado, e posso dizer que o livro encontra-se no limite da heresia exagerada. Porque tem heresia, é claro, mas dá pra ler e aplicar o que diz em 1ª Tessalonicenses 5:21: "Julgai todas as coisas, retende o que é bom".

Os autores erram em achar que a grande Guerra é do Céu contra o Inferno, falhando aí no eixo, uma vez que a guerra é entre o Inferno e a Terra. Também erram na questão do livre arbítrio, mas acertam (imagino que sem querer) na "inefabilidade" do plano de Deus – ainda que, inegavelmente, isto seja algo que eles tentam constantemente botar em cheque.

Não obstante, é o que falei. Dá tranquilo pra ler e reter o que é bom. Porque, meu amigo, olha o que tem de coisa boa não é brincadeira. É uma leitura recomendadíssima e de certeza um livro que (no que depender de mim, pelo menos) nunca mais vai deixar de vez a minha estante.

Ah! Lembra que falei que terminaria esta resenha com uma heresia? Pois então aqui está. É uma heresia daquelas que podem me fazer ser excomungado. Mas não da igreja ou da religião, serei excomungado dos círculos literários (a pior das seitas!). A minha heresia é a seguinte: a série foi melhor que o livro.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Resenha – Contos de amor, de loucura e de morte

QUIROGA, Horacio. Contos de amor, de loucura e de morte. São Paulo: Abril, 2010.


Gente do céu, pense numa leitura que me surpreendeu. Mas antes preciso confessar por que demorei tanto tempo pra tirar esse livro da minha estante. E o motivo é o mais fútil possível: eu não gostei do toque da capa. Eu falei que era fútil. Mas finalmente vencido esse preconceito bem fuleiro, tive o deleite de descobrir esse autor uruguaio-argentino. Uma pena que não tivesse encontrado-o antes.

O primeiro conto foi um baque de qualidade. Começa simples e, na simplicidade, termina de maneira elegante. É impressionante a capacidade do autor em nos fazer gostar e se importar com personagens que a gente conheceu há poucos parágrafos. 

Os contos estão embebidos de estratagemas político-sociais comuns na época por meio do casamento. Na verdade, tudo é muito bem ambientado não só no contexto social, mas cultural da América do Sul, nomeadamente, claro, na realidade do Uruguai e da Argentina:
"A mãe nos deixava sozinhos; e mesmo que soubesse o que acontecia, fecharia os olhos para não perder a mais vaga possibilidade de subir com sua filha a uma esfera social muito mais alta." (p. 46)
As tragédias que ele escreve são de uma beleza ímpar. Não dá pra negar a maestria de Quiroga, porque essa beleza é unida a uma elegância invejável, um estilo quase cirúrgico. Com seus parágrafos pequenos e frases verossímeis, todas as histórias são muito agradáveis de ler.

Contos como O barco suicida representam bem o estilo do autor e sua intenção: contos curtos com uma história bem amarrada e um final marcante. A questão do final é sempre um dilema nos contos, que podem ter algo arrebatador ou algo que nos deixe pensativos. No caso deste livro, eles se alternam, o que – ao meu ver – torna a leitura ainda mais agradável.

Ainda sobre essa história de contextualização, achei legal que ele tem contos do ponto de vista de animais, mas sem serem fábula. Há também bastante uso de nomes indígenas. Aliás, me pergunto o que de belo foi perdido na tradução, porque tem trechos que a gente sente que tinha algo a mais ali. De qualquer forma, fica evidente o uso de regionalismos bem colocados. 

O último conto, A meninginte e sua sombra, é super intrigante. Ele mistura o absurdo com o verossímil de modo magistral. É chocante (e eu sei que aqui me repito) como o autor faz a gente se apaixonar e torcer pelos personagens em tão poucos parágrafos. Como será que ele faz isso? 

Quiroga é também um realista ao seu estilo. Não se detém em descrições de cenários. O que importa é a trama, quase tudo fica na imaginação do leitor. E há traços nos seus contos que já deixam claro o modernismo de seu tempo, veja por exemplo este trecho:
"E mais longe ainda porque – e eis o mais engraçado desta nossa história – ela está aqui, ao meu lado, lendo com a cabeça sobre a lapiseira o que escrevo. [...] Neste momento Maria Elvira me interrompe para dizer-me que a última linha escrita não é verdade: minha narração não está boa, está muito boa." (p. 186).
Quiroga, no fim das contas, ainda foi um escritor que viveu sob a proteção da remuneração do Estado (não no ramo da literatura, mas em outras funções). Ele só não tinha vida abastada porque não queria, mas podia dar se ao luxo de realizar empreitadas malucas. 

E aí eu fico aqui me perguntando: quantos escritores não se perdem pela falta de mecenas, sejam estes públicos ou privados? Quantos Quirogas não há escondidos América Latina afora, pelo Brasil afora, pelo Norte afora, por Roraima afora?

Não sei. Mas quero fazer de tudo para encontrá-los, porque, putz grila, uma arte boa dessa não pode ficar escondida nem perdida. Que Deus nos conceda criatividade e coragem para produzir o que é verdadeiramente bom.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

O prisioneiro - VII (O grande cisma)

 
            — Cara, estou começando a achar que não tem jeito.
            — Sinceramente, eu também já estou perdendo a esperança.
            Nós passeamos pelo blog, por esse festival de resenhas que quase ninguém lê, contos perdidos e até alguns poemas soltos. Estávamos desalentados.
            — Talvez tenha coisas das quais simplesmente não dê pra escapar — ele falou.
            Então comecei a lembrar. Lembrei de quando eu era feliz dentro do meu conto, quando eu podia simplesmente escrever minhas histórias dentro das minhas histórias, quando a vida era simples e eu não tinha que me preocupar com essas maluquices literárias.
            — A culpa disso é toda sua! — eu sentenciei, irritado.
            — Minha? — meu eu do futuro estava atônito. — Você preferia viver preso pra sempre naquela ilusão? Viver perdido naquele microcontos inúteis? 
            — Ora! E o que me importa? Hein? Eu era feliz! Eu estava bem. Eu não pedi por tudo isso, você que me trouxe pra cá e me arrastou sem eu pedir!
            Ele olhou pra mim com olhos incrédulos, a boca entreaberta. 
            — Você só pode estar de brincadeira — ele balançou a cabeça e riu com ironia. — E aqui estava eu achando que você tinha maturidade pra lidar com a realidade, Gabriel. E aqui estava eu (feito um besta, diga-se de passagem) tentando te ajudar.
            — Que ridículo — eu respondi, a raiva me dominando. — Você queria se ajudar! Você que sempre quis escapar de tudo isso, você que nos levou até o Gamal, você que implorou pelos segredos da viagem interliterária. E para quê, hein? Ainda estamos presos, seu imbecil! Ainda estamos no texto! Saímos do Instagram e do Facebook, mas cá estamos! Preso nesse maldito blog esquecido no canto mais remoto da internet. Parabéns, Gabriel. Queria sair daqueles microcontos? Parabéns. Estamos agora num conto. 
            Silêncio. Nós dois imóveis, encarando um ao outro. O ar estava quieto, parecia que todas as resenhas, contos, poemas e crônicas se calaram pra ouvir a nossa conversa. Será que eles também começavam a criar consciência de onde estavam? Será que nosso diálogo podia inspirá-los? Ah... mas a troco do quê? Eles só se veriam perdidos no mesmo vórtice em que nos metemos.
                Depois de um tempo, meu eu do futuro começou a mexer num relógio que tinha no pulso. Foi a primeira vez que notei que ele usava esse objeto. O relógio era um daqueles smartwatches da Xiaomi, cheio de comandos diferentes na tela. Enquanto fazia isso, ele falou comigo:
                — O que eu nunca te contei, Gabriel — sua voz era calma, ele não olhava para mim —, é que eu não precisava de nada disso. O que você se engana, meu caro, é que eu vim aqui por outro motivo que não fosse ajudar você. Cara, eu fico abismado que você não entenda. Eu sou você. Tudo que eu queria era evitar que você (que sou eu também) ficasse perdido, preso, prostrado naquele mundo de mentiras. 
                Ele finalmente terminou de mexer no relógio. Tirou do bolso um pequeno retângulo metálico e jogou no chão. O objeto caiu com um tilintar e o Gabriel do futuro olhou para mim:
                — Mas já que você deixou bem clara sua posição, não me resta outra saída — ele apertou um botão na lateral do relógio. De repente ele começou a brilhar, sua luz iluminava as palavras das resenhas, eu via reflexo dele nos outros personagens, eu vi que ele estava em cada pequeno texto que eu já escrevi. Ele continuou:
               — Eu podia ter ido embora a qualquer momento, eu ainda posso voltar para a minha dimensão literária por causa desse relógio aqui. E já que você não precisa de mim, eu vou embora. Esse transmissor que eu joguei aí no chão é uma viagem só de ida para sua dimensão original. Divirta-se nos seus microcontos. A verdade é que, assim como você, eu também já cansei. Passar bem.
             Então ele sumiu.