sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Resenha - O racionalista romântico

PIPER, John; MATHIS, David (orgs.). O racionalista romântico: Deus, vida e imaginação na obra de C. S. Lewis. Brasília: Monergismo, 2017.


Eu não ia fazer uma resenha desse livro, porque esse blog é voltado pra registros literários (se fosse pra ter registro da minha vida acadêmica ia ter um horror de fichamento desde a graduação, passando pela especialização e culminando no mestrado). Mas não consegui me aguentar. Tem muita coisa bonita aqui pra falar de Lewis. E eu gosto do cara. Aliás, tendo Piper como editor dessa coletânea de artigos também foi um diferencial.

Primeiro é aquela frase dele que é incomparável: "Se descubro em mim um desejo que nenhuma experiência deste mundo pode satisfazer, a explicação mais provável é que fui criado para um outro mundo." Essa abordagem racionalista dele, pautado por uma lógica clara e clássica, nossa!, isso eu acho muito, mas muito bom mesmo. Ainda mais numa época em que o caos é a nova razão.

Outra coisa que me chamou atenção: Lewis se deparou com dois extremos de pregadores. Ou eles eram os ultrapentecostais que apelavam para a emoção ou eles eram aquele clero ultraintelecutal que explicava, explicava e ninguém entendia. Ao ver isso, Lewis entendeu que sua função era traduzir aquilo que era difícil para uma linguagem simples, que todos pudessem entender. 

Por que isso me chamou atenção? Por que sempre foi isso que eu sempre me vi fazendo na classe dos adolescentes da II IPBV. A minha função ali não era produzir conhecimento teológico novo (pff! jamais!), mas traduzir para a linguagem deles algumas verdades que até mesmo os adultos têm dificuldade de entender. Fiquei impressionado em perceber que, neste único e humilde ponto, eu pareço com C. S. Lewis.

O capítulo que fala das deficiências teológicas de Lewis representa um dos meus maiores temores enquanto escritor: que um dia eu escreva algo achando ser a verdade, mas, na verdade, ser uma deturpação da Verdade. Nada me causa mais temor. Deus, por favor, preserve minha criatividade e minha inteligência, para que eu transpareça apenas a Ti. 

[Em defesa de Lewis, porém: ele mesmo disse que não era teólogo e que ninguém deveria pautar seu entendimento cristão pelas ideias dele -- jamais foi soberbo ou arrogante quanto a uma teologia sistemática própria. Na verdade, em diversos momentos comentou que suas ideias poderiam e deveriam ser submetidas à análise de alguém da área. Além disso, ele estava um passo à frente da sua geração ao interpretar a Bíblia também sob perspectiva literária.]

Do meio do livro pro fim, os artigos parecem ter uma pegada mais devocional/filosófica; na verdade, em determinados momentos, parece um sermão utilizando Lewis como exemplo (isto aconteceu justamente no artigo de John Piper). Acho que isso tirou um pouco o brilho do livro e desviou o foco do livro.

Por outro lado, achei muito interessante mostrar facetas de Lewis e reforçar sua criatividade/imaginação vinculada a Cristo. "Lewis não escreveu histórias para que os leitores pudessem escapar da realidade, e sim para que pudessem experimentá-la -- não apenas a superfície, e sim suas profundezas sobrenaturais." (p. 122).

Vou só deixar anotado aqui um termo que os autores enfatizaram no Apêndice 2 (ao qual farei menção mais abaixo): "bulverismo". Termo baseado num conto onde um menino de sobrenome "Bulver" consegue escapar de um argumento com seu pai apenas defletindo a questão. Esta é uma marca dos nossos tempos: não se discute mais a matéria se pautando em padrões, apenas a processualidade dela ("Você diz isso porque é cristão", "Se você fosse mulher, entenderia", etc.).

Teve um ou outro incômodo na tradução que ficou pra trás (o que é absolutamente natural e esperado) e encontrei também, pelo menos, um erro de divisão silábica. Mas, fora isso, a editora Monergismo está de parabéns e penso que ela veio pra ficar. A qualidade do livro está excelente e se ele chegou nas minhas mãos em Roraima, penso que a distribuição não está ruim.

Ao final, penso que meu problema com o livro foi uma questão de expectativa. Na verdade, a falta dela. Por não saber o que esperar e nem me preparar pra isso, deparei-me com uma coletânea de artigos acadêmicos de teologia apontando a visão de Lewis sobre alguns temas e demonstrando como ele transparecia no que escrevia algumas verdades importantes. Agora que escrevi isso, percebo que, na verdade, eu estava interessado no Lewis escritor, enquanto os autores estavam mais interessados no Lewis teólogo entusiasta. Talvez tenha sido essa a grande questão.

E pensando nessa vontade de uma pegada menos acadêmica, acho que foi por isso que gostei tanto do Apêndice 2, que é o registro de uma mesa redonda entre os autores num congresso. Fantástico! Como eles colocam as suas impressões pessoais sobre o autor, suas experiências com os escritos de Lewis. Até mesmo como Nárnia foi importante para cada um deles. Era exatamente isso que eu precisava: eu queria conhecer os humanos, não apenas as ideias deles. E este término, sim, foi fantástico.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Resenha - Cain

MCPHERSON, Brennan S. Cain. Racine: BroadStreet, 2016.


Faz tempo que uma narrativa não me prendia tanto. Faz um bom tempo que não fico tão imerso numa história que esqueço de ver além dela. Nos últimos tempos, toda vez que leio alguma coisa, automaticamente vejo algumas coisas relacionadas à escrita, ao método do autor, a visão vai ficando treinada com o tempo. Mas esse livro foi muito diferente. 

"Cain" conta a história do primeiro assassinato. Essa é uma história que todos conhecemos. Caim e Abel apresentaram suas ofertas diante de Deus; mas Abel deu o melhor de suas ofertas, por isso Deus se agradou dele e rejeitou a de Caim. Isto caminha até o fatídico dia em que Caim mata Abel. Esta é a parte que nós já sabemos, mas... o que acontece depois disso?

McPherson, dotado de uma magnífica criatividade, escreve essa obra de ficção cristã e dá continuidade à história. O cara teve uma sacada fantástica -- tanto que eu gostaria de ter pensado nisso antes -- porque ao escrever sobre fatos do Gênesis, ele consegue preservar a narrativa bíblica sem alterá-la. E como se trata de um tempo em que não há muitos detalhes, ele é livre para transitar na fantasia e criar monstros e demônios sem problemas. 

Mas essa abordagem da fantasia, por incrível que pareça, não foi o que mais me chamou a atenção. Mas a capacidade do autor em descrever os personagens e, principalmente, seus dramas internos foi algo de tirar o fôlego. A gente realmente  sente a dor e a angústia interna do personagem. E eu não estou falando só de Caim não, mas de todo mundo que aparece na história (que, aliás, não é só Adão e Eva não).

Falando em personagens, McPherson (esse miserávi que deve ter a minha idade!) fez uma jogada arriscada que eu não faria: colocou Deus na história e dar-lhe falas. Por outro lado, interessante que, na história esse personagem chama-se Homem. Eu entendi a sacada do autor: o Todo-Poderoso (como é chamado em alguns momentos), quando se relaciona com os seres humanos, é o Deus Filho, o Deus Homem. É Jesus.

Voltando ao enredo, o drama familiar da primeira parte é chocante e intenso, muito bem escrito. O contraste entre o que queremos fazer e o que realmente fazemos -- bem como as consequências disso -- são muito bem exploradas. Todo o enredo é pincelado com fantasia e demonstra uma excelente criatividade do autor; embora, em alguns momentos, as descrições tenham me deixado um pouco confuso na hora de entender as cenas.

Quando a gente chega na parte da Guerra, onde há uma sucessão de nomes e personagens, aí já achei que não ficou tão bom. O texto é bem escrito, mas o leitor se perde nos vários personagens que são apresentados de supetão pra ele; e, pra complicar, se tornam os personagens principais da narrativa, ou seja, o leitor não pode abrir de mão de compreender quem é quem, o que torna bem cansativo.

E, ainda falando dessa parte, não me interessa tanto a batalha ou a guerra quanto as lutas pessoais que travamos e com as quais nos identificamos quando conhecemos melhor os personagens (nossa, como você está mudado, né Gabriel?). Mas eu entendo que isso é um paralelo importante no próprio livro: assim como aconteceu no começo da trama, aqui o autor demonstra o homem buscando com sua própria força estabelecer seu destino, reforçando os fatos anteriores.

Há alguns poucos momentos de muito tell e pouco show, mas isso é tranquilamente eclipsado pelo enredo e o encadeamento muito bem feito. Aliás, o dilema moral do Sumo Sacerdote Calebna é, no mínimo, intrigante. E é muito legal como alguns personagens quebram estereótipos. Vou falar só do Mason, porque gostei muito. 

O autor explica a diversidade genética da humanidade logo nos primeiros filhos de Adão e Eva. Ele diz que toda vez que Eva dá a luz, o filho ou filha sai com características bem distintas. Então hora ela deu à luz uma ruiva e o próximo filho foi um negro, outro foi pardo e mais um loiro, e por aí vai. O mesmo se dá com as filhas de Eva. Mason, portanto, seria filho de Caim.

Mason é um gigante. O autor diz que o punho dele é do tamanho da cabeça de um ser humano. Ele é grande, forte e tem um diferencial: nasceu deficiente. Mason é mudo, incapaz de se expressar com palavras. Mas isto não significa que ele seja menos inteligente ou capaz, pelo contrário, a narrativa demonstra que ele era um dos mais fervorosos. 

Enquanto seus irmãos estava com sede de violência, ameaçando seus próprios familiares, Mason ficava ao lado da mãe, cuidando dela e -- no silêncio que ele tão bem compreendia -- orando ao Deus Todo-Poderoso pela segurança de todos. O gigante bruto e mudo era o mais fiel de todos os seres humanos. 


Como falei, faz um tempo que não fico tão imerso numa história. Há referências a fatos que se desenrolariam no decorrer da narrativa bíblica e isso aumenta a sensação de pertencimento -- especialmente nas partes que se referem a Jesus. Talvez o livro choque alguns leitores por conta das cenas de violência, às vezes um pouco pesadas, mas isso é pouco se comparado ao resto do livro.

A única coisa que me deixou realmente com um pé atrás (além de usar Deus como personagem) foi o retrato de Caim no final. Acho que o autor deveria ter segurado o desejo de redenção. Tudo bem que ele não explicita e deixa na cabeça do leitor, mas a inclinação é clara pra tentar mostrar um Caim redimido quando, nas Escrituras, não temos referência a isso, é bem o contrário.

De qualquer forma, Brennan McPherson teve uma sacada genial, escreveu o tipo de ficção cristã que só agora, em 2019, eu começo a fazer no Brasil; embora, penso, eu esteja num estágio embrionário se comparado ao trabalho dele. Eu falo de personagens não-bíblicos, do Novo Testamento e na forma de contos. Ele fala de personagens bíblicos, do Velho Testamento, na forma de romance.

A sacada dele foi tão boa que ele produziu mais três livros baseados nesse mesmo estilo, todos parte da série "A Queda do Homem": Adam, a história de como foi dada a Vida ao primeiro homem, mas ele escolheu a Morte (este está disponível gratuitamente no site do autor!);  Flood, a história de Noé e a família que o criou; e, o mais recente, Babel, a história da Torre e a rebelião do homem. Não satisfeito com isso, teve uma outra iniciativa, a "Salmos", com o livro "O Caçador e o Vale da Sombra da Morte", uma parábola inspirada no Salmo 23.

Eu não sei vocês, mas taí um cara que vai entrar pra minha estante definitivamente se continuar assim. Mal posso esperar para ler todos os outros livros! 

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Resenha - Livrinho da Silva

PIMENTEL, Aldenor. Livrinho da Silva. Boa Vista: Catarse, 2017.


Considero o Aldenor Pimentel um dos principais escritores roraimenses contemporâneos. Vou falar um pouco mais dele no final, então, por enquanto, basta lembrar que foi este cidadão o "culpado" por eu ter ingressado no mundo da escrita literária. Foi num concurso organizado por ele em 2016 que eu me descobri um Escritor ao Acaso. Não por isso serei menos sincero nesta resenha. Perdoai-me, mestre. Seguimos a ela.

Livrinho da Silva é uma antologia de 24 contos recheando 72 páginas com histórias sobre livros e a literatura. A temática dos contos gira em torno do universo da própria escrita literária, do ato de escrever, do leitor, do livro ou, claro, do próprio escritor, não raro ambientadas em livrarias ou mundos em que a literatura causa impactos diferenciados. Vou iniciar da pior maneira, falando daquilo que não gostei tanto -- mas isso é só pra tirar logo do sistema, porque mais à frente tem coisa boa pra se falar.

Por mais que seja um livro de ficção, algumas vezes parece livro didático, cuja intenção é mais (in)formar do que transmitir uma ressonância literária per si (falo da "ressonância" tal como citada por King e Cassill). Tem uns diálogos que não soam nadinha verossímeis pra mim, mas este são principalmente estes contos que eu penso serem mais didáticos (como em "Da Luz").

Tem uns contos que, do meu ponto de vista, na verdade são crônicas do escritor. Algo interessante sobre estes: todos são tão bem escritos, que dá um pouco de frustração o fato do escritor não tê-los desenvolvido mais. Quando a gente está bem absorto e interessado no tema, puf!, já acabou o texto e a gente fica com aquele gostinho de quero mais (o que, deduzo eu, era justamente o objetivo do autor).

Por outro lado, em alguns momentos sinto falta de deixar espaço pro leitor descobrir as coisas. Talvez fosse interessante minimizar os adjetivos. Por exemplo, em vez de dizer "moleque arteiro", bastava dizer "moleque" e mostrar com as atitudes como ele era arteiro -- talvez sem nem mesmo dizer diretamente, mas usar a entonação (lembrando de Cassill) pra criar isso na mente do leitor. Em resumo, algumas vezes teve mais "tell" do que "show".

O conto "Olhar", penso eu, é o mais profundo em simbolismo e ressonância. Já o havia lido em outra ocasião (acho que foi até no blog do autor -- que, por sinal, encontra-se listado aqui à direita) e a premissa, bem como o desenvolvimento da história são muito bons. Eu imaginava que este aí seria o meu favorito, mas tive uma agradável surpresa: "Divino plágio" foi uma epítome de um bom conto, transmitindo o máximo, utilizando o mínimo. Poucos contos conseguem me fazer rir e me entusiasmar com tão pouco. Reli-o mais de uma vez, amando-o em todas.

E falando em contos curtos e eficazes, "Fantástico" deve entrar pra essa lista. Só o que me fez falta nele foi diálogo. Claro que também não sei as circunstâncias em que ele foi escrito (algumas vezes tento limites de caracteres em mente), mas visto que tanto King quanto Cassill elencam o diálogo como um dos pilares da escrita, apego-me a eles. Neste ponto eu me questiono se não estou ficando muito "manualista" nessas minhas leituras. Hum... A pensar.

Voltando a falar dos contos bons, cara, não tem como não falar de "Teu futuro te condena". Só de escrever na segunda pessoa do singular e narrada no futuro já é um feito tão singular e notável que o conto já teria mérito só disso. Mas esse conto vai além ao trazer um enredo muito bem escrito, força o leitor a (re)ler tudo com canto de olho. Acho isso fenomenal. A sacada do autor foi muito boa.

E, algo que não deveria ter me surpreendido tanto: o melhor conto ficou para o final. Interessante notar que tantas outras histórias vieram antes dele, mas nenhuma chegou perto da capacidade de expressar. Finalmente, neste, contemplei um pouco daquela matiz do escritor que a gente só conhece quando lê os textos dele. Enquanto revela muito do escritor, esta experiência serve para enriquecer o leitor. Um belo, belo conto.

Por fim, só quero destacar, mais uma vez, que o Aldenor é, hoje, um dos maiores "agitadores" culturais de Roraima. Promove concursos literários, palestras, vende livros, ajuda colegas a vender, corre atrás de patrocínio público e privado (o que não significa que ele consiga), enfim, "agita" a cena literária roraimense sem perder a pose.

Aliás, não sei como ele consegue escrever estes contos pequenos com tanta eficácia. Eu, no meu livro que é justamente de contos, não consigo escrever histórias menores do que o triplo do tamanho dos contos do Aldenor. E justamente pelo tamanho, estes contos são um gancho fatal: você termina o livro todinho no mesmo dia (que foi justamente o que aconteceu comigo).

É, meus caros, não tem jeito, ainda tenho um bom caminho a percorrer. Obrigado por me abrir as portas Aldenor e, agora, obrigado por me ajudar a caminhar. Continue a produzir a boa arte roraimense e a abrir portas para as novas gerações de escritores. Continue a agitar. 

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Resenha - Writing fiction (V): Concepts of fiction

CASSILL, R.V. Writing fiction. 2nd edition. New York: Prentice Hall Press, 1986.


Enquanto em todas as outras partes do livro o autor, Cassill, vai abordar de maneira mais prática como escrever ficção, nesta parte do livro ele é assumidamente teórico e vai falar de elementos que são intrínsecos à ficção, aqueles que não há prática no mundo que resolva se você não tiver uma boa base teórica. Os elementos que Cassill ressalta são: enredo, personagens, entonação e significado.

Embora o título que ele tenha dado no original seja "conceitos" da ficção, optei por utilizar elementos por entender que isso traduz melhor a ideia. Porque Cassill utiliza o termo "conceitos" pra falar num sentido acadêmico da coisa; só preferi "elementos" porque penso que isto está mais relacionado aos componentes mais intrínsecos da ficção (o que, acho, é justamente o que ele quer dizer). Mas chega de me justificar, vamos ao que interessa.


PARTE V: ELEMENTOS DA FICÇÃO

O elemento primordial da ficção é a unidade que deve perpassar todo o trabalho, pra que ele não seja apenas um amontoado de ideias, mas realmente traduza a essência de um corpo coeso. Enquanto isto é interessante para o leitor, este é um aspecto primordial para o escritor. 

Cassill entende que, em última instância, a arte serve para imitar a vida com outras nuances. Só que tem um problema nisso. Como é que vamos expressar com propriedade a vida quando ela mesma não é uma experiência una? Isto deve ser aplicado ao trabalho do escritor, porque há uma infinidade de distrações e outras experiências que constantemente se sobrepõem umas às outras:
"Life is a constant flux, and even one man's experience is full of chaotioc diversions, inconclusive fadings away, and reappearances that seem more like new beginnings than ends." (p. 142)
Por isso, neste caos de possibilidades, o escritor deve impor alguma ordem. Ele precisa fazer um recorte e dizer: minha história vai daqui até aqui. Mas esse começo, segundo Cassill, não pode ser necessariamente lógico, pelo contrário: deve ser irracional e emocional, para depois ser seguidos de uma série de ações frias e racionais que darão continuidade ao que foi escrito. Foi o que falei em outra resenha deste mesmo livro: na Literatura, a performance antecede o ensaio:
"This passionate wish to make experience yield a particular meaning is the heart of the creative art, the initial selection from which subsequent choices flow with an increasing rational justification." (p. 144). 
No começo da história, se o escritor conseguir ver o conflito e souber pra onde encaminhar tudo, que ótimo! Mas isso não precisa ser a regra. Aliás, é até comum que o escritor comece a história usando a si mesmo como personagem, pra dar um senso de unidade logo no começo.

Existem algumas histórias cuja unidade é natural. História de romance que terminam com o casal junto, jornadas e aventuras ao desconhecido, um concurso ou jogo, uma festa ou celebração, etc. Não precisamos ter medo dessas estruturas só porque elas já estão pré-montadas: "Whenever there is an easy way to do something -- and do it right -- by all means prefer the easy way." (p. 144)

No processo de escrita, ora é o material que determina o caminho, ora é o escritor que deve se impor. E aí mais na frente é o material de novo e depois volta pro escritor. Esse constante vaivém cria boas histórias, quando escritor e material caminham para a mesma unidade. E agora, passamos então a tratar dos elementos que ajudam a formar essa unidade.


ENREDO

Há aqueles que são contra o enredo, porque dizem que ele congela o texto; e há aqueles que são tão a favor do enredo que, se ele não estiver bem delineado, condenam a obra como um todo. Ambos os lados estão corretos e errados em parte, argumenta Cassill.  Ele define o enredo desta forma: "[...] plot is no more and no less than a causal sequence of action." (p. 147). Simples assim. 

Notem que o enredo não é uma sequência apenas, mas uma sequência causal. Um mero delineamento de informações não é um enredo a não ser que elas estejam ligadas por algum nexo causal. Claro que, quando você estiver escrevendo, esse nexo não estará explícito no texto, mas será a estrutura basilar onde acontecerão todos os fatos que concatenam esta sequência.

O primeiro passo nesta sequência, via de regra, está na reação de um personagem a algum conflito inicial; esse estímulo provoca uma reação chamada de motivação, que guiará outras atitudes do personagem conforme o enredo se desenvolve, desta forma construindo-o. Cassill ressalta que tem gente que quer analisar a obra só pela "qualidade" dos motivos dos personagens. 

Embora isto seja relevante, não pode ser determinante, uma vez que as motivações são algo muito pessoal. Assim: "Their best usage is in serving as the link between character and action." (149). A questão mesmo é quanta motivação o escritor deve apresentar para que o enredo avance.

Um bom enredo, Cassill destaca, é aquele que parece ao leitor "inevitável". É evidente que nada é inevitável na ficção, uma vez que -- como já vimos em outras resenhas -- tudo é um ato de escolha para fazer a história caminhar. Para que o escritor alcance essa ilusão de inevitabilidade, ele deve considerar a unidade do texto conforme a história avança.

Isto quer dizer que ele deve respeitar as escolhas dos personagens baseado não apenas no que já passou, mas no que talvez aconteça no futuro: se meu personagem fizer isso agora, ele conseguirá passar por isto caso aconteça? Ele vai querer fazer isso? Isto vai levar minha história para onde eu quero chegar? Eu consigo guiar a história para este outro rumo? Tudo deve ser considerado.

Aqui é um ponto interessante: os personagens devem ter vontade própria sempre ou o autor deve ditar cada um de seus passos? Cassill dá uma resposta que me agrada: nenhum dos dois. Assim como disse antes, deve ser um constante jogo de vai e vem entre os dois, de forma a garantir a organicidade, mas também a unidade, do texto:
"One requirement is pitted against another, and the story grows the way a vase rises on a potter's wheel, with one hand inside and one outside, both helping to determine the form." (p. 151 -- e que frase bonita!)

PERSONAGENS

Que há muita inspiração para personagens tirada da vida real, isso há. Mas ficção e realidade não são a mesma coisa. Cassill também já havia mencionado algo neste sentido: que, por mais que se pegue gente real como modelo, a ficção é necessariamente uma criação, um artífice. Logo, apenas criar uma foto realista de uma pessoa não é suficiente. 

O que mais importa não são características físicas, mas o que o leitor compreende quando o personagem diz "Eu sou". A identidade deste elemento é o fator mais importante. E, naturalmente (olha o sociólogo/antropólogo falando), esta identidade não é una tampouco. Mesmo que alguém sirva de modelo para um personagem, ainda assim haverá elementos retirados de outras pessoas que contribuirão para a formação daquele elemento.
"A fictional character -- and particularly one who occupies a central position in a sizable work -- is a composite, then, like so many of the other elements of fiction." (p. 154)
Enquanto o enredo certamente guiará um pouco a ação e a própria essência de alguns personagens, estes não devem ser mutilados só pra se encaixarem no enredo. O leitor percebe e isso estraga tanto o personagem quanto o enredo, é característico da escrita pobre. 

Pelo contrário, um bom desenvolvimento de personagem deixará o escritor tão envolvido que em vários momentos ele pensará: "Ah, agora que isso aconteceu eu vou fazer aquilo", como se ele fosse o personagem. Depois disto feito, o bom escritor voltará ao texto com olhos racionais para identificar se e o que está adequado ao enredo.

Para Cassill, é o diálogo a mecânica indispensável para o delineamento do personagem: "Fictional dialogue can be made to render very sensitively the mental and emotional ingredients in characters whose general outlines have already been counted for." (p. 159). É por meio do diálogo, especialmente, que o personagem poderá ganhar mais profundidade.

E falando em profundidade, ela não pode se resumir a boas qualidades do personagem. Um personagem bem "redondo" é aquele que tem delineado suas motivações e paixões, mas também seus medos e hesitações. Ou seja, é tornar o personagem mais parecido com alguém de verdade. 

Por outro lado, e esta dica eu não imaginava ouvir, não são todos os personagens de uma história que devem ser profundos. Cassill diz que personagens rasos também são essenciais. Detalhe importante, porém: não é só porque eles são rasos que devem ser personagens entediantes ou chatos. É necessário que eles também sejam bem descritos, para que contribuam bem com a história.
"All fictional characters are made up of words. Observation begins the process. Identification -- acting out the part -- carries it along. But finally it is choice of language, the artifice of design and relationship to other fictional elements, that makes the character live for the reader." (p. 161)

ENTONAÇÃO

Quando nós conversamos, o jeito como nós contamos determinados assuntos muda conforme a nossa entonação; na verdade, isto muda até o significado do que estamos falando, dependendo do modo com o fazemos. Na literatura, é trabalho do escritor fazer uso das palavras para criar uma atmosfera que encaminhe o leitor ao significado que o autor quer expressar. A questão é: como fazer isso? Cassill nos dá algumas dicas.

Primeiro: apelo aos sentimentos. Algumas palavras naturalmente nos levam a imaginar alguém ou algo como gentil e delicado ("Bianca era uma flor"), outras evocam suspeição ou nojo ("Roberto, aquele verme!"). Isto é uma manobra até "teatral" para levar o leitor a pensar determinadas preconcepções sobre personagens -- mesmo que o autor resolva mudar isso depois.

Este uso da retórica tem um perigo: encher demais o texto com a percepção do escritor e não deixar espaço pro leitor descobrir. Além disso, pode gerar um efeito do tipo "falou, falou e não disse nada", em que o escritor abusa de mil e um termos pra tentar criar uma subjetividade sem abordar o que realmente importa.

Outra possibilidade seria justamente o contrário: não apele. Escreva de um jeito tão simples que o leitor fica de orelha em pé, buscando compreender o que está por trás, o que ele não consegue captar de imediato. Se o escritor não for simplista, ele é capaz de utilizar esse mecanismo objetivamente para controlar bem as expectativas do leitor.

Um exemplo desses dois é como um escritor pode se referir a uma enxada. Aquele que usa a retórica poderá descrevê-la como "um instrumento para o cultivo da terra" enquanto o segundo pode se referir a ela só como "coisa". Há, com certeza, algo entre esses dois estilos; mas tendo estes extremos em mente fica mais fácil se encontrar.

Naturalmente, o enredo também ajuda a dar a entonação final para o texto. O que acontece com os personagens ajuda a guiar o modo como eles se comportam e como o escritor utiliza estes momentos para descrevê-los. Não é raro, incomum nem errado que escritores ajustem o enredo para dar a entonação necessária.


SIGNIFICADO

Aqui eu precisei fazer uma adaptação, porque Cassill utiliza o termo "theme" pra designar esta seção. Mas não dá pra traduzir por "tema" (ainda que autor admita que há uma relação com o tema que já vimos em outra resenha), porque o que ele quer dizer, na verdade, é o simbolismo que está por trás da história. Não é a unidade em si da obra, tampouco a temática do enredo, mas o que surge da unidade da obra depois que nós a lemos. Eu já havia lido em Stephen King uma referência a algo assim e, fato curioso, Cassill utiliza o mesmo termo (vou negritar): 
"Properly speaking, the theme is what is left, like a resonance, in the reader's mind after he has recovered from the emotions and sympathies he felt while reading and even after he has forgotten the shape of the plot and the illusion of life contributed by the characters." (p. 172)

Um bom autor precisa ter cuidado para não trabalhar com significados superficiais ou simplórios. É interessante que o escritor analise seu trabalho depois de terminado e se pergunte: "Isto significa alguma coisa?". Pode ser que o escritor não consiga responder satisfatoriamente esta pergunta e precise voltar no texto para melhorá-lo -- algo natural do processo de revisão.


CONCLUSÃO

Que livro FANTÁSTICO. Olha, eu não conheço muito de livros sobre escrita e é deveras suspeito que eu fale tão bem do livro, justamente pela falta de background. Mas, gente, olha o tanto que esse livro rendeu! E veja que as resenhas não foram só encheção de linguiça, pelo contrário!, foram repletas de ensinos muito valiosos, ainda mais pra um Escritor ao Acaso feito eu!

Entendam: um livretinho de 170 páginas, das quais 68 são só textos de terceiros, trouxe muitos ensinamentos. Não resta sombra de dúvida que este livro é um clássico e me pergunto se não há até edições mais recentes. Eu mesmo faria questão de comprá-las. Fim da ópera: valeu a pena cada leitura e cada resenha. Mais do que recomendadíssimo!

Resenha - Writing fiction (IV): Finger exercises

CASSILL, R.V. Writing fiction. 2nd edition. New York: Prentice Hall Press, 1986.


PARTE IV: EXERCÍCIOS, CADERNOS E LISTAS

Na resenha de hoje, Cassill resolve ir pra prática e dá algumas dicas ainda mais diretas de como aplicar tudo que já tem ensinado até então. Antes de seguir, entretanto, vale uma ressalva que ele mesmo disse: "Your waste basket is the right and proper destination for everything you turn out as an exercise." (p. 36). Não se preocupe, apenas treine. Agora sim, prossegumos:
  • Descrições
    • Pratique descrições → curtas, médias e longas
    • Lembre-se que as descrições se tratam de observações → isso implica em optar pelo mais relevante 
  •  Narrações
    • Aqui já é o contrário da descrição → não deve focar em detalhes
    • A narração consiste em generalizar ou sumarizar um período de tempo extenso 
  • Cenas
    • Pegue uma cena do seu cotidiano e corra pra escrever
    • Chegando na mesa, você tem duas opções (ambas válidas)
      • Escreva tudo o que você conseguir lembrar: ações, diálogo, aparências, etc.
      • Faça uma seleção econômica e traga a essência da cena 
    • Você deve testar sua capacidade de observação e lembrança: quanto mais treinar, melhor ficará.
      • Mas o escritor não deve registrar as coisas igual uma câmera
      • Por causa disso → as ocasiões mais valiosas para treinar são aquelas em que o escritor é um personagem e não uma mera testemunha
  • Imitação → Não tenha medo de praticar um pouco de imitação 
    • Não há demérito nenhum em praticar utilizando conhecimento e técnicas já conceituadas
    • Quando você imita diretamente um texto escrito, você aprende a identificar o que é válido para ser imitado 
      • Não dá pra imitar sem compreender bem o que se está fazendo
      • Além disso, não há nenhuma obra que não utilize, ainda que pouco, a imitação
  • Transposição → este é o nome que Cassill dá para este exercício
    • Assemelha-se muito à transposição na Música → tirar de uma tonalidade e colocar em outra
    • A ideia inicial é: se um texto está em 1ª pessoa, reescreva-o na 3ª pessoa
      • Isto obriga a adaptar diversas coisas no texto
      • Mas não é só reescrever → é também justificar as escolhas e ações sem utilizar os insights da personagem que estaria narrando.
    • Mas essa é só a ideia inicial → pode fazer transposição de diversas maneiras
      • Reescrever uma história triste em forma de comédia
      • Reescrever uma história de fantasia como realismo (e vice-versa)
      • Pegue um texto, recorte (literalmente!) parágrafos e os reorganize em outra ordem → agora escreva todas as transições necessárias para justificar o texto 
  •  Sobre cadernos (lembrando que Cassill escreveu isso na era pré-celular)
    • Os cadernos onde escritores anotam suas ideias deveriam ser como cadernos de pintores
      • Não é só um amontoado de palavras soltas
      • Mas elas devem estar constantemente sendo reorganizadas e montadas
    • Não é qualquer coisa que deve entrar no seu caderno
      • Não deve ser "mais ou menos" interessante
      • Deve ser como um sonho → estranho e familiar ao mesmo tempo
    • Cadernos devem ser pensados como incubadoras de ideias 
  • Sobre listas
    • Em determinado momento, as anotações viram listas → material pré-organizado
      • Esse material deve ser constantemente RE-organizado
      • Experimentação com diferentes possibilidades
    • As listas podem ser de qualquer coisa → lista de verbos numa página, por exemplo
      • Esse tipo de coisa pode ajudar a formar o "macrocosmo" de uma história
      • No fundo, isto é um exercício de criatividade

O que Cassill está fazendo aqui é apenas instrumentalizando a máxima da qual não temos como escapar: é preciso treinar. Todas estas dicas só serão úteis se as colocarmos em prática. É como ele mesmo diz: "Write something every day, even if it must remain a homeless fragment, doomed to the waste basket. Write it as well as you possibly can." (36)