quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

2020: o resumo da ópera

Gente, daria pra escrever muito, mas muito mesmo sobre esse ano que passou, mas acho que esse não é o lugar pra isso. Aqui eu faço uma perspectiva literária do que fiz durante o ano, um padrão que iniciei em 2018 e vou tentar manter. Vai ter a mesma estrutura dos outros, vou focar nisso e vam'simbora.
  

1. Livros resenhados
    Bom, vemos aqui uma ligeira crescente (mas bem ligeira mesmo). Estamos assim:
    2018: 27 livros
    2019: 37 livros
    2020: 40 livros

    Embora eu esteja muito contente de ter alcançado a marca dos 40 livros, acho que alcancei o meu máximo possível, em comparação com o ano anterior. E, olhando para 2020 mesmo, apesar da pandemia e o isolamento, eu não vejo como eu poderia ter lido mais e ainda ter conseguido um bom aproveitamento.

    Pra ser honesto, eu sei que um bom escritor não pode ler da mesma forma que um leitor, ele precisa ter um olhar mais treinado, etc, e eu até tenho em alguns momentos. Mas, e fica aqui o registro, a leitura ainda é um dos poucos prazeres dos quais eu posso desfrutar sem me preocupar com as coisas. Por favor não tirem isso de mim.

    Jan1) A sombra do pai; 2) Classic tales of horror
    Fev3) Príncipe dos drogados; 4) O peregrino 5) Saga
    Mar6) The shining; 7) To kill a mockinbird; 8) Barrabás; 9) Guerra dos mundos
    Abr10) O fantasma da ópera; 11) Eden; 12) Viagem à aurora do mundo
    Mai13) Sarah; 14) Vivendo um chamado; 15) Antes do Éden
    Jun16) Of mice and men; 17) As aventuras de Tibicuera; 18) Os espiões
    Jul19) Gente e bichos; 20) A volta do gato preto; 21) O conto da aia; 22) A revolução dos bichos
    Ago23) Fora de horas; 24) Farehnheit 451; 25) Solo de Clarineta: memórias I; 26) Breve história da literatura brasileira; 27) Se um viajante numa noite de inverno
    Set28) Contos de amor, de loucura e de morte; 29) Good omens; 30) Pandemias; 
    Out31) Guerra fria (conto); 32) Solo de clarineta: memórias II; 32) Vinte mil léguas submarinas; 34) Além do planeta silencioso
    Nov35) Morro dos ventos uivantes; 36) Perelandra; 37) Uma criatura dócil
    Dez38) Lord of the flies; 39) Aquela fortaleza medonha 40) Os três mosqueteiros (adaptação)

    Dessa vez vou inovar e tentar criar um novo costume para essas retrospectivas: a melhor e a pior leitura do ano. Neste caso, posso começar pela última sem medo: Se um viajante numa noite de inverno, foi, tranquilo, a pior leitura que fiz em 2020 (sinto muito, Bianca rsrsrs). Por outro lado, a primeira parte das memórias de Érico Veríssimo, Solo de clarineta: memórias I, me abalou de um jeito que eu sei que não vou conseguir ler isso de novo sem chorar. Foi minha melhor leitura em 2020.

    E eis aqui um gráfico. Não sei o que me deu em Agosto que foi esse tanto, mas a média é de três livros por mês mesmo (o que já é um bocado até).


    Destes 40 livros, 11 foram de autores nacionais. Eu diria que foi uma média muito boa, considerando que nos anos passados foram 9 e 7. Mas este ano teve um diferencial: Érico Veríssimo e sua obra completa na minha estante. Não posso dizer ainda que sou super fã da literatura brasileira.

    Quanto aos gêneros, aí tem de tudo um pouco. Novamente ficaram de fora os livros românticos (que realmente não são a minha praia), mas ainda estão fantasia, ficção científica, drama e terror. Estes gêneros aí com certeza são aqueles dos quais não abro mão.


    2. Concursos literários e produções

    Ai, gente. E nós que com a pandemia achávamos que, estando em casa, íamos render horrores? Quem não se enganou dizendo: "Vou fazer um curso", "Vou aproveitar pra ler mais" ou "Vou escrever mais"? Como somos iludidos. 

    SimConcurso de relato breve (CEBUSAL, Espanha); Revista Lira (1ª e 2ª edições); Antologia “Relatório de Criaturas Extraordinárias” (Mafagafo); Antologia Acid+Neon 2.0 (Coverge)
    NãoPrêmio Castro Alves de Literatura; III Concurso Literário Foed Castro Chamma; Revista Subtextos; 32ª Semana de Letras da UNESP; 32º Concurso Nacional de Contos Cidade de Araçatuba 2019; Jornal Relevo (2x); Revista Tricerata; 
    TalvezRevista "A Taverna"; Prêmio Jorge de Andrade 2020; Outros Brasis da Ficção Científica (Ed. Caligo); Revista Literomancia; Contos Sombrios (Ed. Duende Amarelo)

    Devo confessar a minha surpresa em perceber que neste ano consegui produzir na mesma média dos anos passados. Considerando tudo que aconteceu, não sei de onde tirei cabeça pra escrever. Por outro lado, eu não estou contando aqui nenhum conto do Instagram, onde devo ter mais de 400 textos publicados (entre microcontos, poesias e crônicas). 

    Foram ao todo enviados 18 contos para diferentes concursos. Se vocês olharem a tabela, verão que tem 19, mas estou contando que um já estavam na categoria "talvez" do ano passado. Por outro lado, este ano foi uma surpresa. Pela primeira vez superei a marca de 4 aceites num ano! Sim, neste ano tive um aumento de 25% e fui para 5! Gente, eu estou realmente surpreso.

    Isso só mostra o que eu sempre falo: a gente tem que tentar, tem que enviar os textos. Ah! Neste ano eu ainda tive mais uma honra. Gerei um "filho literário", neto do Aldenor Pimentel. Desculpa, Lucas, sei que o mérito é seu, mas vou citar você nas minhas realizações de 2020, rsrsrs. Lucas S. S. do Nascimento, um roraimense de 18 anos que mal começou e já publicou dois contos nesse ano! Olha lá o blog dele: Contos do Tio Corino


    Gente, é impressionante como esses momentos de retrospectiva fazem a gente reconsiderar as coisas. Eu comecei a escrever isso aqui achando que o ano teria sido um fiasco. Mas não só eu publiquei mais do que nos outros, como também escrevi OUTRO LIVRO. Pois é, ele não foi publicado ainda, mas vem aí Outros personagens não bíblicos e suas histórias!!

    Poxa, esse ano tinha tudo para o primeiro livro, "Personagens não bíblicos e suas histórias", ter bombado. Certeza que eu tinha alcançado, fácil, a marca de 1000 livros vendidos. Ah, mas é a vida. Deus está no comando da situação e os Seus planos são os melhores.

    Sei que 2020 não foi um ano fácil para muitas pessoas, talvez eu só não tenha sido muito atingido. Mas a verdade é que, mesmo nas tragédias, nosso Deus está no comando. Não há plano que você possa fazer, não há ideia que você possa ter na sua cabeça que seja melhor do que o que Ele já planejou. É por isso, meus caros, que eu vivo sem medo. Se Deus é por mim, o que eu tenho a temer?

    #O resumo da ópera
    • Livros lidos: 40
    • Textos escritos: quem sabe algum ano eu mantenha esse controle; mas escrevi outro livro!
    • Textos enviados pra concursos literários: 18
    • Textos aprovados: 6
    Eita, que ano. Mas eu tenho certeza que 2021 será bom, pelo menos no começo. Sabe por quê? Eu vou lançar um terceiro livro! Ele já está prontinho, deve sair em Fevereiro ou Março!! Por essa nem o futuro esperava. E vamo que vamo, meu povo!



    segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

    Resenha – Os três mosqueteiros

    DUMAS, Alexandre. Os três mosqueteiros (adaptação). Cotia: Pé da Letra, 2020.


    Ai, gente. Eu sou muito burro. Estou com um ódio ferrenho de mim mesmo agora. Porque eu tive que mudar completamente tudo que escrevi. O que vocês lerão aqui é o que sobrou da rapa. Eu não li "Os três mosqueteiros"! Eu li uma adaptação da obra! Afff. Nossa que ódio. Culpa minha na hora de comprar. 

    O grande problema de ler uma adaptação é que todos os meus comentários aqui têm que terminar com um: "mas será que no original é assim?". Existem algumas questões de estilo que acho que dá pra falar com firmeza, mas o resto... putz... vão desculpando aí, mas é o que temos. Vamos ver o que sai.

    Já que estou de mau humor, vamos começar dizendo que a revisão foi mal feita, tem vários lugares com erros de digitação e ausência de sinais. A tradução tem uns momentos de gafe, do meu ponto de vista. Mantém um contínuo no trejeito de falar dos personagens mas de vez em quando solta umas expressões que parecem não fazer parte daquele mundo (que nem quando a gente assiste um filme e ouve alguém falar, do nada, "macacos me mordam!").

    Esta adaptação é uma mistureba de aventuras. Sinceramente, essa abordagem episódica até não seria tão ruim se houvesse pelo menos uma trama mínima que ligasse todas elas. Não há um ticking clock ou um objetivo claro desde o começo que impulsione a história para frente.  

    As aventuras até funcionam de forma isolada; mas quando elas terminam, a gente fica com a sensação de que o livro deveria ter acabado também. Mas não. Ele se prolonga, se prolonga, e perto do fim a gente só quer que acabe logo. Há um encadeamento quase frio de fatos que desenvolvem os personagens muito devagar.

    Aliás, que personagens? Somos apresentados às figuras de modo bem descritivo logo no começo e eles ficam nessa superficialidade. Por exemplo, os arroubos românticos de D'Artagnan não contribuem, apenas o tornam mais simplório em vez de desenvolvê-lo. Mas... será que o original é assim?

    Bom, pelo menos do estilo eu acho que dá pra falar com alguma segurança, uma vez que tenho algum conhecimento sobre o Romantismo. E ficam claras na obra as questões de honra muito pungentes, de tal forma que sentimos no coração. Tá loco é bonito demais. Coisa que impressiona mesmo. Tem uma tendência ao exagero, mas é bonito.

    Agora é interessante notar que ao falar desse Romantismo e das novelas quixotescas que tanto repercutiram na época, falamos também da honra. Mas, enquanto a honra é muito bem trabalhada e (por falta de palavra melhor) honrada, o mesmo já não se pode dizer da moral. Eita, que aí vira o samba do crioulo doido. É a rainha que tem um caso com um duque, é um mosqueteiro que se apaixona pela esposa do cara, é a mulher casada que dá mole pro outro. Vish. Um balaio de gato só.

    Por outro lado, não dá pra negar que a narrativa tem seus momentos eletrizantes, dignos das aventuras dos mosqueteiros. É ação e intrigas que vocês querem? Pois tome. Com direito a fuga, lutas, donzelas em perigo e tudo que reza a cartilha romântica. Isso sem falar do gosto pela guerra e a batalha honrada. É bem interessante de se ver. No trecho abaixo, imagine os personagens sorrindo jovialmente enquanto falam:
    – Agora está em suas mãos, jovem; talvez nos encontremos no campo de batalha; mas, enquanto isso, seremos bons amigos, assim espero.
    – Sim, milorde, mas com a esperança de nos convertemos em inimigos.
    – Fique tranquilo, eu prometo. (p. 159)
    Olhando com olhos de hoje, porém, me surgem algumas questões pessoais. Vejo, por exemplo, que são histórias onde se mata e morre por muito pouco. Além disso, os cavalheiros tratam como iguais apenas outros cavalheiros, os servos são tratados como pessoas de segunda mão, apesar de todo o esforço que fazem. Se fossem apenas desvalorizados, até dava pra entender (não aceitar, entender). O problema é que eles são até usados e descartados como meras ferramentas para concluir aventuras específicas.

    E aqui eu fico com uma dupla questão: 1) será que no original é assim (tudo me leva a crer que sim, porque é coisa da época); 2) será que eu posso olhar com olhos de hoje sem cometer um anacronismo? Eu acho que não dá. Por isso, por mais que essas questões me incomodem, estamos falando de uma Europa ainda na transição para o Iluminismo, então é evidente que muitas estruturas sociais levariam anos para serem modificadas.

    No fim da história, apesar das minhas frustrações, eu consigo reconhecer que a obra é boa. Eu não sei, como tenho me desculpado até então, se o original é bom ou não. Posso dizer que a adaptação é mais ou menos. Mas, vejam bem, se eu aqui recomendo a leitura até mesmo dessa adaptação como forma de passar o tempo, avalie o original. Vamos correr atrás... e ler!

    segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

    Resenha – Aquela fortaleza medonha

    LEWIS, C. S. Aquela fortaleza medonha: um conto de fadas moderno para adultos. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019.


    É, meu povo. Eis aí o último livro da Trilogia Cósmica, obra de ficção científica cristã (você leu certo), escrita pelo grande C. S. Lewis. Esse é um dos casos de trilogias que eu só li porque vi um monte de gente comentando e resolvi arriscar. Poxa, ainda bem que arrisquei. Aliás, os dois primeiros livros da série são Além do planeta silencioso (resenha aqui) e Perelandra (resenha aqui).

    Falando da estrutura de Aquela fortaleza medonha, pra começar, algumas pessoas comentaram que o começo do livro era chato e cansativo, até o próprio autor pediu desculpas por isso no prólogo, mas eu não achei nadinha chato. Pelo contrário, o desenrolar tranquilo de tramas paralelas cheias de dramas internos e pessoais é o tipo de coisa que eu gosto de ler.

    Por outro lado, embora não tenha achado o começo lento, o último 1/4 do livro se provou ser um pouco arrastado. O autor trouxe algumas questões que não foram bem desenvolvidas durante a trama e de repente aparecem já amadurecidas no final. 

    Além disso, há uma série de acontecimentos muito eletrizantes seguidas por capítulos morosos. Não é que não pudesse ter algo assim, mas a coisa tinha que ser construída com um pouco mais de suavidade, porque o leitor sente o baque.

    E já que mencionamos a trama, essa história – ao contrário dos outros dois livros da série – não se passa em outro planeta, mas na nossa Terra velha de guerra mesmo. E, também diferente dos outros dois, não tem Ransom como protagonista a princípio, mas o casal Mark e Jane. 

    O primeiro, professor universitário que se muda com a esposa para Bracton, onde ganhou uma bolsa de pesquisa. Lá ele se envolve com um grupo intelectual com tendências distópicas de limpeza da humanidade e se envereda por um caminho que (como vemos no final) não dá muito certo. 

    Do outro lado, Jane fica muito tempo sozinha enquanto Mark viaja nas muitas tentativas de se tornar parte do círculo maior do grupo de pesquisa. Nestes tempos sozinha, descobre que ela tem uma função muito maior do que imaginava para os acontecimentos que viriam a acontecer. E, num paralelo, acaba aderindo a uma organização cujo objetivo é exatamente oposto à organização de Mark. É isso.

    Em todos os outros livros eu reclamei da descrição prolixa do autor. Mas esse aqui, de longe, é onde ele mais usa a descrição com potencialidade. Excelentes imersões, transmissão perfeita de estado de espírito, além das escapadas para o lirismo em prosa que funcionam muito bem. 

    Eu achei que ao falar de uma distopia não caberia esse tipo de abordagem, uma vez que eu estava acostumado com a frieza distópica de Orwell, por exemplo. Mas Lewis tem uma sacada genial ao inserir na distopia não apenas o caráter objetivo da humanidade, mas também o subjetivo (ou, pra ser mais exato, o espiritual).

    E, neste tópico, mais uma vez a intersecção entre fantasia e ficção científica é bri-lhante. A explicação dos "macróbios" foi uma sacada de gênio, que serviu com perfeição não só pra estabelecer verossimilhança, como até para a densidade da trama.

    Nas outras resenhas eu sempre tive algo a comentar sobre a tradução e nem sempre era algo bom. Mas, este livro aqui deu um show. Não sei se o tradutor estava mais inspirado ou se o texto era mais tranquilo que os outros. Mas o que eu tiro o chapéu foi a capacidade de adaptar significados e o uso de expressões como "pra boi dormir" e "churumela". Além disso, achei sensacional a redação de diálogos verossímeis com uso de "tá", por exemplo.

    Agora, meus amigos, nem tudo na vida são flores. Sim, eis a terrível verdade da vida. Este livro não está livre dos seus problemas e, infelizmente, o fato de eles terem se concentrado no final do livro abalou um bocado a experiência pra mim. Veja bem o parágrafo abaixo, que eu redigi logo após ler um trecho no último 1/4 do livro:
    Como assim manoooooo??? Justamente numa das partes mais esperadas do livro, o autor resume a ação toda em uma linha??? Naaaaoo! Ele descreve a chegada de Vitrilbia, Perelandra, Lurga, Malancandra e Glund-Oyarsa, mas não descreve a ação deles??? Ah manoooo! (vejam que eu já estava desvairado)
    No final vários personagens sofrem uns surtos de mudança de personalidade que deixam claro que o autor estava com pressa de terminar a história. Um Mark que foi a vida inteira medroso, do nada se torna firme e decidido; um Ambrosius que era quase prepotente e incapaz de se relacionar com os da era atual, de repente consegue se disfarçar e ir pro olho do furacão! Ah, cara...

    Além disso, as últimas páginas forçam uma temática que não foi bem trabalhada no decorrer do livro – embora tenha sido citada. Sinceramente, por mais que Jane e Mark fossem os protagonistas desde o começo, já nos últimos 2/3 do livro, ouso dizer, ficaram bem esquecidos e apagados. Por isso, no final nós queríamos ter ouvido falar de outro personagem, um que, pelo menos pra mim, era bem mais significante.

    O que eu imaginei que seria o confronto final, a grande batalha aguardada desde que ficou claro o conflito, provou, na verdade, ser uma vitória sem luta, bem anticlimático. Ah, e foi impressão minha ou houve algo de patriótico? Ele tenta se desvencilhar disso, mas a história é muito vinculada ao folclore histórico britânico.

    Tá certo que talvez isso tenha sido uma questão de expectativa. Mas expectativa que o próprio autor criou! Eu não conhecia aspectos da obra fora dela, então todas as minhas experiências foram pautadas pelas propostas que o autor inseriu no texto. A culpa no final, não é só minha.

    Apesar de tudo isso, e voltando àquelas últimas páginas do livro, eu sei que há certa sabedoria do autor neste sentido. As escolhas dele dão ar de completude à saga sem dizer tudo certinho. Ou seja, aumenta o que Stephen King chama de "reverberação" do texto. O que aconteceu com o diretor? Como foi a experiência? Admito que isso é salutar na literatura – embora no momento esteja com ódio de Lewis por ter silenciado isso (risos).

    Preciso admitir, à guisa de conclusão, que o livro me emocionou no final. O que acontece é que depois de acompanhar toda essa saga, ninguém quer se despedir. A gente não só se acostuma com a presença dos personagens como até quer desenvolver essa relação. Mas como podemos nos relacionar se nos afastamos deles? Ah, aí a tristeza invade o coração. 

    Sinceramente não fossem esses defeitos no final (são defeitos sim, vai), este teria sido fácil fácil o meu livro favorito da trilogia. Ainda não estou bem certo que não é. Perelandra também teve seus deslizes e não consigo avaliar com clareza qual dos dois é melhor (embora penda bastante para o segundo).

    A simples verdade é que Lewis foi um grande mestre da literatura. Não creio que já tenha lido algo que se compare. É um nível de ficção cristã que – tenho certeza – todo escritor cristão desejaria alcançar na sua geração. Sim, eu incluso. Alguns autores nos marcam. Ah, como eu gostaria de ter a habilidade que Lewis tem com as palavras. 

    Senhor, me capacita, para que eu possa te servir com a plenitude das minhas forças. Para que como teu servo Lewis, as palavras deste escritor ao acaso possam ser úteis. Não preciso de amplitude, preciso da graça que o Senhor derramou, na certeza de que o caminho que o Senhor escolher será o melhor. Só não permita, meu Deus, que isto seja para mim; mas para Ti somente. A Ti toda a glória para sempre e sempre. 

    Urendi Maleldil!

    quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

    Resenha - Lord of the Flies

    GOLDING, William. Lord of the Flies. New York: Penguin Books, 1988.


    Comprado por humildes três dólares, eu me vi novamente diante desse livro. Li-o a primeira vez lá pelos idos de 2008-2009 e, por algum motivo, minha mente havia apagado uma boa dose da história. Eita, que, conform eu reli o livro, descobri o motivo. Arre de livro doloroso.
    "They were black and iridescente green and without number; and in front of Simon, the Lord of the Flies hung on his stick and grinned." (p. 128)
    Lembrando que essa é a história de um grupo de garotos britânicos (tendo por destaque Ralph, Jack, Piggy e Simon) que, após um acidente de avião, no período da II Guerra Mundial, cai numa ilha deserta. Lá eles precisam achar um jeito de se organizarem para sobreviver à ilha. O que eles descobrem, porém, é que o pior não são as intempéries ou quaisquer perigos que a ilha possa oferecer. O maior problema é quem chegou na ilha: eles mesmos.

    Essa não vai ser uma resenha longa, até porque já tem muita coisa escrita sobre esse livro (e muito melhor do que eu tenha a dizer, com certeza). Então vou me limitar a uns dois ou três comentários, mergulhar no que considero ser o âmago do livro, e concluir. 

    Pra começar, às vezes eu acho que é melhor o silêncio do que falar besteira. Sei que é muita audácia falar isso de um Nobel de literatura. Mas essa descrição aqui poderia ter sido omitida sem prejuízo nenhum do texto: "Somehow, they moved up." (p. 23). Ah, mano. Assim até eu.

    O autor tem a capacidade incrível de nos fazer mergulhar na história. A gente sente a tensão no ar, cada pequeno acontecimento ou fala contribuir pra construção do clima e as reviravoltas (que pareceriam bestas se vistas isoladamente) são o cimento que une tudo de maneira fantástica. 
    "In his other life Maurice had received chastisement for filling a younger eye with sand. Now, though there was no parent to let fall a baby hand, Maurice still felt the unease of wrongdoing." (p. 55)
    Sobre tantos assuntos que podem ser discutidos, a essência do livro está aqui. E a essência do livro se chama pecado. Aliás, o próprio autor chamou esse livro de um "estudo sobre o pecado". Há uma forte carga de conteúdo teológico aqui e isso é inegável (a começar pelo título).

    Longe da autoridade, os meninos podiam dar vazão à maldade dentro deles, vivendo num estado de natureza anárquico que logo se degenerou para a lei do mais forte (nosso velho e conhecido estado de natureza hobbesiano – e já que estamos nesse tópico, o autor ataca sem medo o estado de natureza rousseauniano)

    Neste trecho específico, vemos os últimos momentos antes do começo da queda. Os meninos, deixados à sua própria natureza, mergulham cada vez mais no que há de mais inerente ao ser humano: o mal. E quando vemos isso, há um paralelo magnífico para fazer com a própria Escritura Sagrada:
    "Quando, pois, os gentios, que não têm a lei, fazem, por natureza, o que a lei ordena, eles se tornam lei para si mesmos, embora não tenham a lei. Estes mostram a obra da lei gravada no seu coração, o que é confirmado pela consciência deles e pelos seus pensamentos conflitantes, que às vezes os acusam e às vezes os defendem," (Rm. 2:14-15)
    A verdade, meu povo, é que há leis gravadas na própria essência do ser humano. Em qual sociedade é preciso ensinar a criança a fazer o que é errado? E quando ela erra, é preciso ensinar-lhe a mentir para encobrir o erro? Se não há verdades e leis que são naturais a todas as sociedades, em qual delas o ato de matar por matar é visto como aceitável? Qual delas subsiste na sua essência sem noções de justiça, família, direito, e tantas outras coisas que a mente limitada do homem ocidental insiste etnocentricamente em defender como criações suas?

    É por isso, minha gente, que o texto bíblico é tão enfático em dizer que as pessoas são indesculpáveis . Conquanto a consciência humana e a natureza não revelem as verdades específicas sobre Deus, elas inequivocamente apontam para Ele. A partir daí, basta a pessoa buscar alguém que possa explicar ou falar das verdades especificas. E uma coisa digo ainda: quem quer que esteja lendo este texto não poderá dizer que faltou oportunidade.
    "Porque os atributos invisíveis de Deus, isto é, o seu eterno poder e a sua divindade, claramente se reconhecem, desde a criação do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que Deus fez. Por isso, os seres humanos são indesculpáveis." (Rm. 1:20)
    O livro é muito intenso. Não foi à toa que minha memória bloqueou boa parte das sensações que o livro evoca. A constante e crescente decaída rumo à selvageria é assustadora... porque ela é verossímil. Mesmo agora eu percebo que minha mente se nega a lembrar de muitos detalhes. E isso porque eu acabei de terminar. 

    Gente, não é à toa que um livro ganha Nobel de Literatura. Essa obra é incrível do começo ao fim. Veja quanta coisa tem pra dizer – e isso porque eu abordei só um detalhe. Essa é uma leitura que todo mundo deveria fazer em algum momento da vida. Por minha conta, pode ler o Senhor das moscas.

    quinta-feira, 19 de novembro de 2020

    Resenha - Uma criatura dócil

    DOSTOIEVSKI, Fiódor. Uma criatura dócil. São Paulo: Via Leitura, 2017.


    Fala, meu povo! Vou confessar que tenho um fraco por Dostoievski. Deve ser porque ele também fala de dramas sociais e, claro, porque ele tem a habilidade absurda de mergulhar no psicológico de seus personagens de um jeito que eu me pergunto se um psicólogo conseguiria. Bom, mas vamos à resenha.

    Este livro trata de uma história simples. Um narrador sem nome, um homem dono de uma loja de penhores, conta um pouco da sua história, especialmente seu relacionamento com uma jovem (bem jovem mesmo) que se torna sua esposa e que tem um fim trágico.

    Agora, como classificar esse livro? O próprio Dostoiévski chama de "conto" essa história e eu mesmo tenho dificuldade em chamar de romance. Mas... nunca vi conto dividido em capítulos (e estes com títulos ainda por cima!). Seria, então, uma novela? Ou seja, uma história curta mas com vários capítulos mesmo? 

    Eu acho que não. Embora eu não entenda nada de teoria literária, pra mim uma novela precisa ter um aspecto mais seriado ou episódico, em vez de uma história tão una. Por isso que, conforme a leitura foi passando, fiquei cada vez mais convencido que era um conto mesmo. Estranho, mas é um conto subdividido em capítulos. Já vi contos grandes, mas nunca algo assim (talvez seja só minha falta de leitura falando). 

    Ainda que a história realmente seja centralizada num único personagem, nós temos aqui uma boa dose de psicologia e elucubrações da mente dele que não seria comuns em contos, uma vez que nestes não são necessariamente os personagens, mas a trama que os tornam únicos e, bem, contos. 

    Achei bem legal ter encontrado no texto expressões como um "hehehe!", "Hummm..." (p. 14) e até "A-ha!" (p. 18). Digo isso porque às vezes a gente acha que alta literatura não pode ter coloquialismos ou expressões simplórias; mas isso faz parte da nossa linguagem e, portanto, não devemos menosprezá-las.

    E por causa disso a tradução está de parabéns. Aliás, acho que essa foi a primeira vez que li Dostoievski de maneira tão fluida. Trabalho incrível da tradutora Natália Petroff, que tornou acessível esta obra e traduziu não só as palavras, mas o estilo também. 

    Aqui eu percebi algo que mencionei na resenha de Morro dos Ventos Uivantes. Novamente temos aqui uma narração repleta (re-ple-ta) de "shows" em vez de "tells". E mais uma vez eu percebo que esse "pecado literário" pode até ser útil quando serve a uma função da história. Vou dar um trecho aqui de exemplo (mas reforço que isso acontece em vários e vários momentos do texto):
    "Mais à noite, ela acabou perdendo por completo as forças; eu a convenci a dormir e ela adormeceu na hora, profundamente." (p. 78-79)
    E já que estamos agora entrando na história, é preciso lembrar que Dostoievski sempre escreveu personagens detestáveis (coisa que até muitos críticos apontam como uma impressão negativa do povo russo) e neste livro não é diferente, só que dessa vez o personagem é abertamente odiável e deixa isso bem claro:
    "... Simplesmente informei então, sem nenhum constrangimento, que em primeiro lugar não sou muito talentoso, nem sou muito inteligente, talvez nem mesmo muito bondoso, um egoísta bastante contumaz..." (p. 23-24)
    Fica muito, mas muito evidente, que o personagem principal faz toda a narração carregada de uma tentativa de se justificar ao leitor e a si mesmo dos atos cometidos. Isto torna evidente como ele é cheio de contradições e ironias. O personagem se confessa mal porém não exista em acusar a outra quando esta não obedece os caprichos:
    "...essa doçura, essa criatura dócil, esse céu, era uma Tirana, uma tirando insuportável, torturadora da minha alma!" (p. 40)
    Ao ler a história, chamou-me atenção na história como se tratava de uma época onde muita coisa era movida na base da honra. E, justamente por isso, como a honra de um homem pode ser destruída pela fofoca. Sim, pela fofoca. Numa época em que a palavra era algo valioso, a quebra dela era o maior pecado.

    Na verdade a história toda é uma tragédia anunciada – o próprio autor dá o spoiler antes mesmo de iniciar a narrativa. Mas a tragédia maior, penso eu, não está no que aconteceu. A tragédia maior é o arrependimento pelas más escolhas, pelas palavras mal ditas, pelas oportunidades que passaram. 

    Foi assim no passado do personagem principal, quando ele era um hussardo; foi assim no presente quando ele tratou a esposa do jeito que tratou; e é com isso que ele vai precisar lidar no futuro, porque, também nesta história, ele perdeu a oportunidade – ou pelo menos é como ele se justifica para o leitor e para si mesmo:
    "Tivesse chegado cinco minutos antes, e o momento voaria como uma nuvem, e isso nunca mais viria a sua mente." (p. 92)
    A verdade é que a maldade e a hipocrisia estão constantemente buscando desculpas para seus atos maus – porque sabem que seus atos são maus. É nessas coisas que a gente vê com Dostoievski é brilhante em retratar as contradições da condição humana. A gente julga o personagem, mas quantas vezes não agimos de modo similar ou, pelo menos, somos coniventes com situações parecidas?

    É, minha gente. Se tem uma coisa que vale a pena ler nessa literatura doida é Dostoievski. Talvez eu colecione toda a obra dele agora, por que não? Vale demaaaaais a leitura!

    quarta-feira, 11 de novembro de 2020

    Resenha - Perelandra

    LEWIS. C. S. Perelandra: viagem a Vênus. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2019.


    Preciso parar. Porque neste exato momento – em que eu acabei de terminar o livro – não tenho a menor condição de escrever esta resenha. Eu preciso digerir, pensar. Minto. Eu preciso me recuperar dessa leitura. Volto em breve, com a mente mais clara.

    [No dia seguinte]

    E aí, meu povo! Agora sim, com a mente um pouco mais calma, acho que consigo escrever essa resenha sem me deixar arrebatar pela inundação de sentimentos que surgiram ontem por conta deste livro incrível, Perelandra, o segundo livro da Trilogia Cósmica de C. S. Lewis.

    Como já comentei na resenha anterior, esta trilogia surgiu (reza a lenda) por conta de uma aposta com Tolkien, amigo de Lewis, que propôs que ambos escrevessem livros de ficção científica, sendo que Lewis ficou com viagem no espaço. E, depois de Além do planeta silencioso, temos novamente o personagem Ransom viajando a outro planeta: Vênus, um mundo em surgimento. Ah, em determinado ponto desta resenha HAVERÁ SPOILERS, mas não se preocupem que vou deixar bem claro.

    A ficção científica no começo do século XX ainda caminhava para sua maturidade. Não eram muitos os nomes que criavam este gênero de maneira séria; mas os poucos que fizeram deixaram sua marca. Uma das características deste tempo era o cientificismo dos livros. Comentei algo sobre isso na resenha de Vinte mil léguas submarinas e no começo de Perelandra, vejo Lewis pincelando algo assim.

    Mas isto se dá por pouco tempo, porque também aqui vemos traços do estilo de Lewis, que cria uma obra cujo foco não é o conflito homem-tecnologia (como é clássico na ficção científica), mas entre homem-homem. Por isso, o livro pende muito para fantasia, num misto interessante de gêneros que poucos conseguem fazer.

    Algo que começou no primeiro livro agora ganhou mais forma. Lewis cria um idioma fictício chamado Solar Antigo, que seria o idioma falado por todos em todos os planetas, uma vez que apenas na Terra teria acontecido a maldição de Babel, em que as pessoas foram dispersos por muitos idiomas. E isto é interessante porque tem outro autor que conhecemos e que adora criar idiomas: Tolkien.

    Na outra resenha não comentei nada da tradução porque nada me chamou a atenção; mas nesse aqui vi algo preocupante: um erro. Não preciso ter lido no original pra saber que ali deveria ter sido "pistas" em vez de "dicas":
    "Como se deu uma viagem num caixão celestial Ransom nunca descreveu. Ele disse que não podia. Mas umas dicas estranhas sobre a jornada acabaram aparecendo aqui e ali, [...]" (p. 42)
    Do meu humilde ponto de vista, a palavra "dicas" aponta para o caminho que o autor quer e talvez até seja a tradução literal mais correta (presumo que a palavra em inglês seja "hints"); mas quando estamos falando de entendimento do texto, não basta apenas traduzir do modo mais literal, é necessário ver o contexto e adaptar para o melhor entendimento. É, eu repito, um humilde ponto de vista.

    As descrições, novamente. Lewis é muito bom pra descrever um mundo onde a mente não saberia bem dizer o que é o quê. Infelizmente ficou bagunçado demais e tudo muito repleto de "então ele não sabe como mas estava" ou "de repente, ele se viu em". Isso me soa como preguiça ou incapacidade de descrever. E olha só essa citação (Poxa, Lewis! Falei descriçãozinha barata kkkkkkk): 
    "De alguma maneira, ele conseguiu subir nela e se grudou em sua superfície..." (p. 246)
    A descrição inicial de Perelandra (ou Vênus, para os terráqueos) não me agradou nadinha. Não só as descrições são exuberantes e pomposas em demasia, não há senso de urgência na ação do personagem e, assim como ocorreu algumas vezes no primeiro livro, parece que ele está passeando e é chato pra caramba ler isso.

    Por outro lado, não posso negar que Lewis tem um exímio domínio do tempo na narração quando diz coisas do tipo: "eles ficaram três horas conversando" ou "a escalada não durou mais que vinte minutos". Parece besteira, mas quando a gente está escrevendo é meio complicado encontrar um meio termo entre narrar cada pequena passagem do tempo e narrar de modo suficiente e agradável para o bom entendimento do leitor. Lewis encontrou esse equilíbrio e isso não é um pequeno feito.

    [A partir daqui haverá pequenos SPOILERS, mas, se eu fosse você, continuava, porque eles são leves e não vão estragar sua leitura tanto assim – a não ser que você seja um daqueles puristas radicais. Eu vou falar basicamente dos aspectos da obra mais relacionados diretamente à ficção cristã]

    O livro traz uma interpretação do autor sobre vida fora da terra: existiam seres inteligentes nos planetas. Planetas mais antigos podiam ter qualquer tipo de forma humanoide ou até mesmo animalesca; mas depois que Maledil (que é um nome que ele dá pra Jesus) tomou a forma de homem, todas as novas raças passaram até aspecto humanoide porque esta seria a melhor representação da imagem e semelhança dele. Não sei se é o que o autor realmente acredita, mas é o que foi apresentado no livro.

    Aqui há um limite que nós sempre vemos quando lemos ficção cristã: criar um ser que não tenha pecado. Nossa própria estrutura de pensamento é marcada pelo pecado, não temos como evitar. Embora a Mulher em Vênus não tenha a mesma proibição que os humanos da Terra quanto ao pecado, fica evidente em vários momentos que ela já tinha o conhecimento do bem e do mal – não necessariamente porque tivesse, mas porque é impossível para o autor (ou qualquer ser humano) se desvencilhar dela.

    Vou ser honesto e dizer que em determinado momento, Lewis quase chegou no limite da minha paciência. Aquele papo teológico no meio da história me pareceu sem sentido, não fosse aquela subida reviravolta no final do capítulo eu até diria desnecessária. 

    Mas isto foi um engano, porque o livro é deveras bem intrigante e o que eu achei que seria só uma divagação do autor, era na verdade o começo do que se tornaria o âmago de toda essa aventura: a história da Queda, mas acontecendo em outro planeta, com outros dois seres criados. 

    CA-RAM-BA! Que diálogo absurdo de fascinante sobre a obediência! O que parecia um tratado de filosofia solto no meio do texto é na verdade um estudo brilhante (eu repito, brilhante!!) sobre a primeira obediência. Olhe esse trecho:
    "Ah, quão bem eu entendo isso agora! Nós não podemos andar fora da vontade de Maleldil, mas Ele nos deu uma maneira de andar fora da nossa vontade." (165)
    Eu escrevi esse parágrafo acima logo depois que li e me deparei com o que Lewis realmente propunha no livro: um estudo avançado da condição humana e do pecado. Parece loucura falar destes temas num livro de aventura; mas eu vi que é justamente o contrário: é essa profundidade que dá ao livro uma dimensão mais completa e à própria história um significado a mais, uma reverberação que vai além dos feitos dos personagens ou suas falas.

    Lewis é muito competente em mostrar a capacidade do inimigo de perverter a verdade, todo o seu método ardiloso para enganar (método esse que não precisa ser elegante, podendo até ser infantil, não importa. Desde que ele atinja seus objetivos). E não só a capacidade, mas as estratégias, como a subversão da ordem natural de Deus, tal como aconteceu na Terra.

    [Fim dos SPOILERS mais fracos que eu já vi na vida – sério, se você ler não vai nem sentir depois]

    Assim como aconteceu no primeiro livro, o autor tem seus momentos de genialidade com as palavras – que é o que, convenhamos, foi um marco seu para toda a obra da literatura cristã (e eu não me refiro apenas à ficção). Além da citação que eu mencionei na seção acima, veja também este trecho abaixo:
    "O silêncio interior é uma conquista difícil para a nossa raça. Existe uma parte tagarelante da nossa mente que continua em ação até que seja corrigida, tagarelando mesmo nos lugares mais santos." (p. 196)
    O nome "Ransom"!!! (eu ia colocar isso aqui na parte dos spoilers, mas resolvi deixar assim solto mesmo porque vale a pena ler essa parte – se eu pudesse esquecer e ler de novo eu faria... aliás, quer saber? Acho que vou ler de novo mesmo lembrando, de tão bom que é).

    Gente, pra concluir, vou dizer que poucos livros me fazem chorar. Mas fazem. Eu choro porque me emociono com os personagens, com os acontecimentos, com as lutas e as vitórias tão almejadas. Mas, no fundo, eu choro por algo que é ficção. Eu não sei explicar como, mas Lewis me fez chorar pela Verdade. Não. Eu chorei pela falta da plenitude da Verdade e isso dilacerou meu coração, porque eu lembrei de onde estava e para onde eu deveria ir. Eu quero viver na perfeição da Verdade e da Vida.

    O Eduardo Ribeiro do Instagram @paragrapho_cristao havia comentado que este era seu livro favorito da Trilogia Cósmica. Eu geralmente penso bastante antes de concordar com alguma opinião assim, pra não ser influenciado; mas dessa vez talvez ele tenha completa razão, porque eu me peguei pensando aqui: "Como é que Lewis vai superar esse aqui?". É tão bom que eu tenho minhas dúvidas se dá. 

    Mas isso eu vou dizer depois que vencer Aquela fortaleza medonha. Nos vemos em breve, meu povo!

    terça-feira, 3 de novembro de 2020

    Resenha - Morro dos ventos uivantes

    BRONTË, Emily. O morro dos ventos uivantes. CAMARA, João Sette (trad.). Jandira: Ciranda Cultural, 2019.


    São poucas as vezes que eu posso chegar aqui e dizer: eu li a obra completa de autor tal. É verdade que já fiz isso com Érico Veríssimo. Mas agora posso dizer que também fiz com Emily Brontë. Talvez tenha ajudado o fato de que ela tenha escrito apenas um livro. Talvez.

    Este livro aqui me surpreendeu mais do que eu esperava. Pra ser bem honesto, eu estava até com um pouco de preconceito antes de pegar a obra. Graças ao trauma que foi ler Jane Austen (ô coisa chata!), eu temia do que pudesse vir da literatura inglesa do final do século XIX. Mas devo confessar que o livro é muito interessante.

    Quanto à trama, logo no começo eu pensei: "Ah, essa vai ser mais uma daquelas histórias de amor." O mocinho chega, tem uma mocinha que ela não é bem tratada numa casa, todas as peças estavam ali. Mas, para minha grata surpresa, autora explora com muita elegância as histórias subjacentes e o contexto tanto do lugar quanto dos outros personagens. É aí que percebemos que a história é de outro mocinho e outra mocinha.

    Em vez de ser a história do jovem Lockwood, que chegou ao Morro dos Ventos Uivantes (que é o nome da fazenda no interior da Inglaterra que é o centro da história), na verdade trata-se de uma rememoração da história de Heathcliff e Catherine e todos os antigos ocupantes da casa, contados pela voz da empregada doméstica Ellen Dean.

    Caramba, é impressionante como a autora consegue captar nossa atenção, a gente realmente fica vidrado – e não tenho ideia de como ela fez isso. outra coisa que me impressionou é que tudo, tudo, acontece no Morro dos Ventos Uivantes. Sequer foi necessário mudar o cenário e mesmo assim o livro prende a gente! Não é que não existam outros cenários, eles até existem. Mas o jeito como a autora escreve os torna supérfluos.

    Enquanto eu lia as repetidas interações malucas entre Catherine e Heathcliff eu não consegui evitar o pensamento: "Mas que diabos de 'amor' é esse entre os dois?". Uma coisa muito no limite entre paixão e ódio (bem pouco de "amor", pra falar a verdade). E aí eu lembrei: era o século XIX. O Romantismo está aí, bem aos moldes de Byron – que marcou toda aquela geração.

    De modo geral, a história realmente nos prende, mas eu percebi alguns problemas nisso. Voltarei a eles lá no final. Por enquanto, gostaria de abordar algumas questões referentes ao estilo da autora (se é que eu tenho algum cacife pra analisar isso né).

    Eu estava prestes a reclamar que o livro tem um excesso de descrições, o que é característico da época (tempos em que não havia televisão e até fotografias não eram tão comuns); mas foi logo fisgado pela exime a capacidade narrativa da autora, que nos prende aos personagens logo no começo. Esta é uma marca que será mantida durante todo o livro.

    Brontë fez uma coisa que eu adoro. Aliás, foi exatamente isso que Érico Verissimo fez quando eu percebi que o cara era genial: ela insere informações no texto que não contribuem direto para a trama; mas são de tal modo tão deliciosos, que ficamos gratos à autora por tê-lo feito. Você pode abrir em qualquer capítulo e identificar isso. Longe de ser descartável, estes pequenos acréscimos trazem um sabor a mais.

    Este livro me fez repensar a máxima da literatura: "show, don't tell." Conquanto eu compreenda que esta é realmente uma máxima que não deve ser menosprezada, agora eu fico em dúvida se ela deve ser evitada por completo. Digo isto porque eu percebi vários momentos deste "problema" no texto (eles eram até bem óbvios); mas, sinceramente, eu deixei passar e nem me prejudicaram, porque esse tell ajudava na fluidez do texto e isso foi muito bom.

    Agora eu preciso reservar um espaço aqui para falar da tradução. Num primeiro momento, tive a impressão que havia algumas coisas que poderiam ser traduzidas de outra forma, não sei. Confesso que me deu uma agonia danada quando li a palavra "selvagemente". Mas a verdade é que achei a tradução bem trabalhada. 

    O tradutor teve sabedoria em manter um linguajar equilibrado entre a expectativa linguística do povo (algo mais fácil de compreender) e a característica dos romances de época traduzidos (com palavras complicadas e expressões que pouco ressoam em português, até porque não fazem parte do nosso uso comum, tampouco da nossa cultura). Eis um exemplo:
    "Ele bateu a cabeça contra o tronco nodoso e, erguendo os olhos, gritou, não como um homem, mas como uma besta selvagem sendo espicaçada até a morte com lanças e facas." (p. 177)
    Dou ainda mais um pouco de crédito para a tradução ao adaptar não somente a linguagem falada dos personagens – que soam ao mesmo tempo históricos e atuais –, mas também pela grafia escolhida. Refiro-me aqui diretamente ao trecho onde o tradutor colocou: 
    "Hahaha! Ele tirou vocês de lá direitinho! Hahaha!" (p. 267)
    Esta edição contou ainda com algumas notas do tradutor no rodapé da página. Olha, eu geralmente não gosto destes adendos ao texto, mas eles foram feitos de modo tão pontual que eu não tive escolha senão julgá-los de extrema valia para a compreensão do texto. Realmente valeram a pena todos eles.

    Bom, agora eu preciso caminhar para o que considerei um problema no livro. Acho que há uma falha estrutural no comportamento de alguns personagens. Por mais que eu entenda que tem gente que realmente é má e cruel, acho bastante implausível que essa crueldade sádica possa se estender de maneira tão contínua para todos que estão ao redor. 

    Eu notei esse problema no começo do livro, mas perdoei porque estava ainda dentro do contexto e não fora exagerado. Mas conforme me aproximava do final, ficou cada vez mais evidente que não faz sentido que que todos aqueles que entram em contato com Heathcliff sejam cruéis, e não somente ele – chegando até mesmo à governanta da casa. Isso só pode ser explicado por uma falha no roteiro, que está forçando os personagens a um comportamento destes para criar a atmosfera que precisa.

    E saliento que é forçado mesmo. Há uma outra falha no comportamento dos moradores do Morro dos Ventos Uivantes. Conquanto Heathcliff seja um imperador cruel e ardiloso, isto é verossímil. Agora que todos, absolutamente todos, se submetam a este reino de impiedade sem revoltas, ahhhh, aí já não dá. Foi Jean-Baptiste Duroselle que postulou de modo muito claro: "Todo império perecerá". 

    Não tem como. Quando eu cheguei naquele capítulo que foi a grande reviravolta, a cartada final de Heathcliff (quem leu entenderá); não pude deixar de sentir uma exasperação com a atitude passiva das personagens. Tudo bem que naquele capítulo eram praticamente só mulheres e enfermo, aí dá pra perdoar. Mas quando a gente volta na memória e considera que pelo menos três homens fortes viveram naquela casa e deixaram Heathcliff dominar sobre eles de tal forma, cara... não fecha a conta. 

    Nenhum reino desse subsiste por tanto tempo sem aliados internos, por mais poderoso que seja. Avalie a História e me diga que estou errado. Porque nestes meus anos de graduação e especialização em Relações Internacionais, se teve uma coisa que eu aprendi com clareza é que Duroselle estava mais do que certo: todo império perecerá.

    Este problema torna-se ainda mais acentuado no final, que foi extremamente mal explicado. Na verdade, pense num finalzinho borocoxô. Uma súbita e inexplicada mudança de pensamento (ou até personalidade!) e atitudes que vêm do nada. Fica tudo exageradamente subentendido e nada fica claro, como se o roteiro quisesse apenas terminar a história de um modo mais "feliz" à custa do comportamento de personagens que acompanhamos desde o primeiro capítulo.

    Mas, apesar destes problemas, não posso concluir dizendo que o livro é ruim. Estas são apenas algumas notas destoantes se comparadas à sinfonia do livro. É importante até destacar a capacidade da autora para criar personagens odiosos. Tem várias cenas que nos deixam enervados com a tensão da situação. 

    Gente, livros não se tornam clássicos à toa. Vale muito a pena a leitura, que não é cansativa e ainda pode ser extremamente atual. Ali no final do Romantismo, ouso dizer que Brontë já caminhava num meio termo em que não se deixa dominar demais por ele e propõe uma maneira até mais sóbria de encarar uma história de amor. Vale a leitura com certeza.

    quinta-feira, 29 de outubro de 2020

    Crônicas musicais – I

    Hoje estive conversando com um maestro, digo, um regente de São Paulo e ouvi uma coisa que me fez refletir. A conversa era pra ser uma pesquisa, mas em determinado momento acabou se tornando um bate papo sobre as agruras e os causos da vida musical no Brasil. E isso foi muito legal, nossa, como foi legal!

    Mas a coisa à qual me referi é a seguinte: música totalmente perfeita, sem erros, sem desafinações, sem problemas de entrada, sem absolutamente nada de imperfeito, bem, essa música não existe. Ela até existe, mas não é real. Se você ouve isso em CDs, shows gravados ou filmes, conscientize-se de que você está ouvindo uma edição.

    A vida é assim. A gente erra e, poxa!, como dá vontade de voltar atrás e editar um errinho, gravar de novo e masterizar o som com aquela nota bem afinadinha. Mas não dá, né? E, de certa forma, é isso que torna a vida... a vida, oras!

    Eu falo isso porque já faz algumas semanas que tenho gravado eu mesmo tocando cello. Olha, convenhamos, não é nada super profissional (até porque eu estava há meses sem tocar absolutamente nada, então já viu, né?); mas, pelo menos, é algo com o qual eu me divirto.

    Existe na indústria da música – na indústria da arte, for that matter – o culto ao perfeito. Sem erros, sem mácula, a arte "pura". Cara... me diz quem é que faz música sem o elemento humano? Dá pra fazer, claro. Mas na hora que você bate o ouvido você sabe: tá faltando alguma coisa ali. 

    Eu já tinha percebido isso há um tempo, inclusive foi o que me motivou a gravar meus vídeos de cello e postar eles no Youtube mesmo quando eu errava. Claro, eu não ia postar qualquer porcaria; mas chega um ponto em que a gente precisa aceitar que não dá pra acertar toda vez. E fazemos nosso melhor. Por isso eu toco e gravo. Não porque é perfeito. Mas porque é algo que eu gosto e – mesmo não sendo impecável – é bom.

    O que me animou tanto em conversar com esse regente (dane-se, vou falar maestro mesmo) foi perceber uma outra coisa. Conquanto eu tivesse chegado a essa conclusão sozinho, meu ânimo foi perceber que havia outros que pensavam como eu. Céus, foi perceber que eu não estava só. Que ainda há gente por aí que ama fazer o que faz e não se limita a fazer só porque as condições não estão perfeitamente adequadas.

    Nós lutamos para que estejam, claro. Mas nem sempre dá. E boa parte da maturidade está em aceitar isso e seguir em frente. 

    É bom quando a gente vê que há outros por aí como nós; ver que, embora estejamos sozinhos nas nossas lutas particulares, não estamos realmente sozinhos. Às vezes é só questão de olhar pra cima, ver o movimento da batuta e sentir a orquestra fluindo como um todo para criar algo diferente, algo maior que ela, na plena consciência de que jamais poderia fazer isso sozinha. 


    Pro caso improvável de alguém querer ver esses vídeos de cello, eles estão aqui.

    quarta-feira, 21 de outubro de 2020

    Resenha – Além do planeta silencioso

    LEWIS, C. S. Além do planeta silencioso. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019.


    E aí, meu povo! Vamos então para mais uma resenha. Eu descobri faz um bom tempo que sou muito fã de Lewis. Depois de ter lido e resenhado as Crônicas de Nárnia (aqui, aqui e aqui), O Grande Abismo, Cartas do Inferno e o compêndio que o classificou como O Racionalista Romântico, entro agora numa nova empreitada de Lewis. 

    Enquanto nos outros era bem evidente sua temática cristã vinculada à fantasia ou mesmo textos religiosos per si, aqui nós estamos diante de uma ficção científica! E não de qualquer tipo, uma space opera. Neste livro vamos acompanhar a jornada do professor Ransom ao espaço sideral e a mundos fantásticos, mais especificamente: para Malacandra.

    Antes de começar, eu preciso falar dessa edição lindíssima que foi a da Thomas Nelson Brasil. Olha... estão de para. Parabéns! Capa dura, corte das páginas de uma cor que combina com a capa. Folhas de gramatura daquelas que a gente pega sem medo, editoração, tudo. Excelente trabalho. É daqueles livros que dá gosto de ter a coleção completa. 

    Bom, prosseguindo, eu achei o começo lento, não dá vontade de continuar a leitura. Mas no capítulo 3 somos fisgados de maneira exasperante. O choque de realidade é grande – embora alguns leitores e cinéfilos contemporâneos possam não achar nada demais (especialmente depois de alguns filmes space opera que temos por aí). Vale lembrar que este livro foi escrito em 1938.

    As descrições de Lewis nunca me chamaram muito a atenção, especialmente pelo lugar-comum que elas ocupam na minha estante mental de autores (ou seja, ele lembra de mais outros). Mas tenho que abrir aqui uma exceção para a descrição que ele faz de Malacandra, inclusive com as pérolas que ele deixa no caminho como: 
    "Além disso, não sabia de nada para o qual valesse a pena olhar: não se pode enxergar as coisas a não ser que se tenha pelo menos uma ideia do que elas são." (p. 55)
    Ainda nessa questão, Lewis faz um exímio trabalho em descrever o que não se sabe como descrever! Ou seja, a sensação de estar num mundo estranho onde não se sabe o que pode ser uma árvore ou um animal, ou objetos cuja forma não fazem sentido para uma mente terráquea. Eu fico pensando que foi assim que o apóstolo João se sentiu ao escrever o Apocalipse!

    Via de regra eu critico textos com poucos diálogos ou cujos diálogos são espaçados demais, ficando com longos trechos de narração ou descrição. É exatamente isto que acontece aqui, mas eu não consigo reclamar, porque é muito interessante! A jornada do humano perdido em outro planeta é fascinante demais pra gente sequer sentir falta de diálogos – o que, diga-se de passagem, seria inverossímil no começo, pois com quem ele conversaria?

    Mas, invariavelmente, isso cansa. Tem horas q o excesso de descrição dá sono. Seria isso uma característica da época? Seria uma influência do seu contemporâneo Tolkien com o descritivismo supérfluo? Não sei. Só sei que teve mais de uma vez que eu dei uns bocejos bem grandes, tentando aguentar a leitura.

    O personagem principal, Ransom, é muito passível pra alguém que foi sequestrado. Fica evidente que sua inércia serve ao propósito da trama, e isso é muito ruim. A trama em si não é ruim, mas falta um bom gancho que realmente carregue o leitor adiante.

    Falta mesmo é um senso de urgência. Em alguns momentos a narrativa é como um passeio. E é justamente por isso que as descrições se tornam tão cansativas, por que não entendemos de modo claro o propósito delas senão o de deslumbrar o leitor com paisagens – algo que até funciona por algum tempo, mas, como falei, depois cansa.
    "O amor ao conhecimento é uma espécie de loucura." (p. 74)
    Ca-ram-ba! Que capítulo foi aquele do primeiro encontro? Gente, não dá pra negar que o livro tem seus momentos de genialidade. Daqueles que fazem valer a pena a leitura. O primeiro encontro entre um humano e um malacandriano foi incrível, tanto que precisei deixar registrado aqui. Ainda nisto,  foi fascinante ler aquela conversa sobre a luz como limite do visível e do transponível.

    Lewis trata como uma espécie de fantasia um cenário que tinha tudo pra ser ficção científica (afinal estamos falando de viagem a outro planeta). Mas longe de der algo ruim, isso cria um tipo de aventura que poucos escritores são capazes de criar. Me vem a cabeça o filme John Carter, que vai nessa leva do meio termo.

    O autor provou-se muito inteligente naquele final, usando o post-scriptum como forma de corrigir alguns erros que ele mesmo encontrou na construção da história (verossimilhança, principalmente) e enriquecendo com algumas ideias ou cenas que ele não conseguiu (ou não quis) inserir na história principal. É trapaça? É, mas a gente perdoa porque também tava curioso, hehehe.

    Embora parte de uma trilogia, o livro não deixa gancho para o próximo, sendo até bem redondinho no final. As pontas soltas que sobram, ficam à guisa de "reverberação" do texto e não necessariamente de necessidade de continuidade (a frase ficou meio complicada, mas é isso mesmo).

    Nem por isso significa que eu não queira ler o próximo volume. Não só eu sei que é Lewis, mas agora eu já estou imerso neste universo e curioso pra saber quais outras aventuras virão nos próximos acontecimentos. Perelandra, me aguarde.

    Resenha - Vinte mil léguas submarinas

    VERNE, Júlio. Vinte mil léguas submarinas. Curitiba: Hemus, 2000.


    Fala, meu povo! Eu esqueci de postar essa resenha (por que já li o livro faz um tempo). Quem é que nunca pegou um livro de Júlio Verne? Pois eu garanto que até quem nunca leu, pelo menos já assistiu algum filme baseado na sua literatura. Este aqui é um clássico e tenho algumas coisas a comentar sobre esse.

    A primeira característica que salta aos olhos é o cientificismo do livro, que foi alvo de críticas na época de Verne. Os literatos achavam os livros mais "ciência do que literatura"; por outro, os cientistas chamavam as descrições científicas de Verne como "ciência barata". Para mim, isto também foi um problema, porque em alguns momentos parece que eu estou lendo uma aula e não literatura. Pra mim isso é perda de foco.

    Mas veja bem, isto precisa ser inserido no contexto em que o livro foi escrito. No século XIX não havia televisão, internet. As notícias estavam nos jornais, nas rádios e havia não poucos que não tinham acesso nenhum à informação. Por isso o livro é algumas vezes informativo demais. Para muitos leitores, aquilo era o mais próximo que teriam de acesso a uma ciência, ainda que "barata".

    Isso é relevante porque o livro está realmente numa época de transição. Quem pegasse o livro pela primeira vez, talvez pensasse se encontrar numa ficção naturalista. E é muito bem trabalhada a transição para ficção científica por parte do autor. É ao mesmo tempo uma transição suave e impactante, que prende o leitor com força.

    Ah, e não recomendo que vocês leiam nesta edição que peguei. Comprei-a na adolescência e, agora, com um olhar mais atento, vi alguns erros de português na edição. Deixei passar o primeiro e o segundo, mas quando chegou no terceiro erro de digitação (com "senhnor") aí eu achei que era digno mencionar. Isso sem falar em alguns problemas de diagramação do texto.


    Pra finalizar as coisas "ruins" do livro (porque depois vocês verão que só tem coisa boa pra falar), preciso abordar a estrutura do livro por meio da trama. Porque eu acho que ela tem um problema no segundo ato (embora o livro não seja dividido claramente numa estrutura de três atos). Mas penso que isto está ligado ao modo como o livro foi publicado.

    E, se em alguns momentos há descrições demais com aspectos do cientificismo, em outros as descrições são de menos e partes interessantes são negligenciadas, como em: "O combate durou um quarto de hora. Os monstros, derrotados, mutilados, feridos de morte, abandonaram o local e sumiram sob as águas." (p. 151)

    Aliás, é importante lembrar que Vinte mil léguas submarinas e vários outros livros naquela época não surgiam como um livro pronto, mas como publicações seriadas em jornais da época. Imagine que você acesse algum jornal e lá tenha uma seção de "literatura" com uma historinha que você pode ler toda semana, cada vez saindo um capítulo novo. Foi assim que este livro foi publicado originalmente.


    Isto traz algumas vantagens ao livro: por ser publicado em jornais, os capítulos não podiam ser longos. Isto ajuda bastante o leitor a continuar a história, porque todos os capítulos são curtos e bem escritos dentro deles mesmos. 

    Por outro lado, percebi que os capítulos do meio só cumprem tabela ou, pior, enchem linguiça. Eles não contribuem em nada para a trama de maneira direta, apenas enriquecendo a mitologia em torno do Nautilus e do capitão Nemo. O livro perde o senso do ticking clock e acaba patinando, chegando em pontos que o leitor perde a imersão.


    Pronto, agora podemos falar das belezas que o livro tem. 


    Cada vez mais tenho construído um apreço todo especial por primeiras frases. Quando a coisa tem um começo bom, parece que eu posso relaxar e dar uma chance para a leitura. Não é sempre que isso traz bons resultados, mas, na maioria das vezes, sim. É preciso lembrar que Júlio Verne não foi um marco na literatura da época à toa. Olha só como ele realmente é um mestre. Olha a primeira frase do livro:

    "Em 1866, deu-se um fato inexplicável que provocou muitos comentários entre a gente do mar." (p. 11)

    Nesta pequena frase ele estabeleceu: 1) a época, pela informação do ano, inserindo num contexto histórico que salta à mente com facilidade; 2) pelo menos dois ganchos (ou um único ganho com intensificação): que fato inexplicável? Por que provocou comentários? Aliás, por que foram muitos comentários? E veja só, os comentários não aconteceram a esmo; porque ele aponta para 3) a direção da história: a gente do mar. Fantástico. Simplesmente fantástico o uso da primeira frase. 

    Com esta simples frase o autor cria uma atmosfera de curiosidade e a intensifica, convidando e quase intimando o leitor a continuar a leitura. Talvez essa atmosfera de mistério possa parecer simplória para alguns de nós. Digo isto porque poderíamos olhar hoje e dizer: "Tá, tudo bem, tem um monstro marinho nos oceanos." Mas vejam o contexto, meus caros!

    Naquela época o mar era o principal meio de locomoção e de circulação da vida. Estamos falando não apenas de passeios, mas de viagens intercontinentais, de comércio, de sobrevivência de muitas pessoas. Falar de 20 mil léguas submarinas era falar de um aspecto da vida que impactava todo o mundo. E ainda colocar neste oceano um mistério como esse era dizer: não podemos mais fazer comércio e estamos isolados da sociedade. Note como isto fala de maneira tão direta ao imaginário daquela época.

    Só este aspecto já serve pra mostrar a riqueza do livro. Apesar de todas as dificuldades, é evidente que a criatividade do autor é um marco da sua literatura. E não é um criar por criar, mas cheio de verossimilhança e uma profunda preocupação com detalhes. Tanto foi que ideias do autor acabaram "prevendo" futuros desenvolvimentos tecnológicos.

    Minha gente, todo mundo precisa, pelo menos uma vez, ler algum livro de Júlio Verne. E se você for começar com um, eu mais do que recomendo Vinte mil léguas submarinas.

    quarta-feira, 14 de outubro de 2020

    Crônicas do cotidiano - VIII

    Hoje é meu aniversário.

    Acho que levei só uns vinte anos pra finalmente naturalizar a ideia de que este é só um dia como todos os outros. Um dia em que, mesmo sendo meu aniversário, eu ainda tenho que acordar cedo pra fazer o café; em que eu ainda preciso ir trabalho; um dia que eu ainda preciso lidar com tudo que acontece todos os dias. E eu não acho isso ruim.

    De uns tempos pra cá me peguei reflexivo nos meus aniversários. Fico pensando no que foi que eu já fiz e se isto é digno de dizer "Maravilha! Estou aproveitando bem meu tempo aqui na terra". 

    Mas, embora eu tenha até um senso de realização ao pensar e rever estas coisas, sei que isto não é tão saudável assim. Por que quem é que pode dizer se estamos aproveitando bem nosso tempo ou não? 

    De qualquer modo, me alegra olhar pra trás e ver que não perdi boas oportunidades quando elas surgiram. E tampouco fico me lamentando quando as oportunidades que eu busquei não funcionaram. Se elas não funcionaram, foi porque assim preferiu o Senhor. E não tem nada melhor do que o que Ele quer.

    Eu já vivi na Música, hoje estou mergulhado na Literatura. Já me aventurei na graduação e no mestrado. Tentei fazer de tudo para ascender na vida profissional (sem absolutamente nenhum sucesso). Quais serão os próximos caminhos?

    Hoje eu digo que pretendo escrever mais um livro, isto é certeza, já tenho até algo em mente. Mas e quanto à vida acadêmica, será que eu arrisco um doutorado? E na vida profissional, mergulho em concurso ou tento buscar novos horizontes onde eu já estou? 

    Sei lá. Mas continuo com a certeza de que, seja lá o que for, o que o Senhor tiver escolhido será o melhor pra mim. Por isso que eu fico tão relaxado assim. Eu tenho certeza, eu posso confiar. Se é Deus que comanda tudo, pra quê ficar preocupado?

    Aliás, hoje não é dia de ficar preocupado com nada. Hoje é meu aniversário.



    sábado, 10 de outubro de 2020

    Resenha - Solo de clarineta: memórias – II

    VERÍSSIMO, Érico. Solo de clarineta: memórias – II. São Paulo: Globo, 1995.


    É, gente. Não sei quantas pessoas realmente leem o que escrevo aqui, mas agradeço a quem quer que tenha acompanhado até aqui. Com esse discurso parece até que vou parar de escrever, mas não é isso. Refiro-me, claro, à jornada com Érico Veríssimo. Porque acabou. É triste dizer isso, mas é a verdade: acabou. Eu não tenho mais nada dele ler quanto à sua literatura. Este foi o último livro de Érico Veríssimo.

    O maior escritor da literatura brasileira escreveu este segundo volume em continuação à primeira parte (que já resenhei aqui), que terminou com o casamento da sua filha Clarissa e sua mudança para os EUA. Já no segundo volume, Érico vai contar da sua carreira como escritor já consolidado e gasta boa parte do livro com relatos de viagens. O livro não foi terminado, ele faleceu antes de completar. O que nós temos em mãos aqui é uma obra póstuma, organizada por Flávio Loureiro Chaves.

    Eu li esse livro num misto de completude e terrível sensação de perda. Aliás, em determinado momento, já no último 1/4 do livro, me vi em negação. Tão absorto eu estava na "fala" do meu amigo que a todo momento eu pensava: "Não vai acabar." Mas não era como se eu tentasse negar de modo irracional, era só que não cabia na minha cabeça que não haveria mais nada dele pra ler, que aquilo acabaria. Meu Deus por que eu estou tão triste? Por que a morte é tão terrível assim? Por que eu estou com tanta vontade de chorar?

    Minha esposa me viu lagrimar com esse pensamento e disse: "Nem o filho dele chora mais!". Duras palavras, mas muito verdadeiras. Em outra ocasião ela falou: "Amor, mas ele já morreu.". E eu só conseguia responder: "Eu sei", com o sentimento de perda ainda maior dentro do peito. 

    É terrível a sensação de ser prisioneiro do tempo. De ler sobre pessoas que eu nunca vou encontrar, sobre estranhos que nem lembram daqueles fatos (se é que ainda vivem). A impressão que tenho é que sou a única pessoa no mundo que se importa. Pelo menos desse tanto.

    Quando comecei a escrever esta resenha, disse para mim mesmo que faria algo simples e curto. Mas a quem estamos enganando, não é mesmo? Deixe eu falar do livro em si pra ver se eu dou conta de falar pelo menos um pouco do seu conteúdo.
    "Ah! Repito que invejo os homens que têm a coragem de gritar, gemer ou chorar quando sentem alguma dor forte. Esses, sim, são os verdadeiros heróis." (p. 26)
    Não vou comentar sobre o primeiro infarto dele, tampouco sobre os anseios, só quero deixar bem claro que Érico Veríssimo era um cara que realmente gostava de viver, de explorar, de conhecer. Aqui está ele nas suas últimas memórias incapaz de resistir ao impulso de relatar a viagem que fez à Grécia ou a Portugal, encantado pelo que viu. Na verdade, ele havia planejado este volume para ser repleto de suas viagens, para, num terceiro, falar de modo mais claro de si mesmo – pena que isso não pôde acontecer a tempo.

    Nota mental: se um dia viajar a Portugal, reler esse livro antes.

    Muita gente diz que no final da vida prefere lembrar das coisas que fez do que lamentar pelo que deixou de fazer; mas quase sempre fazem isso para justificar algo ruim que estão prestes a fazer. Se não algo ruim, mas algo que elas sabem que não deveriam estar fazendo.

    Eu vi Érico comentar em uma ocasião sobre algo que ele lamentou não ter feito. Na verdade, vi-o falar disso em mais de uma ocasião, quando ficou com a garganta entalada das coisas que não falou. A grande diferença é que ele ficou triste por causa das coisas boas que deixou de fazer ou falar quando tinha a oportunidade.

    Pra ser bem honesto, teve um ponto do livro em que achei-o cansativo. A viagem para Portugal toma espaço demaaaais. Mas coitado, né? O bichinho queria registrar ali as memórias de um país que ele tanto almejava conhecer. O que me ocorre é que teria sido melhor que ele tivesse retirado toda essa parte e escrito um livro específico só sobre esta viagem. Então eu lembro: "Ah..."

    Interessante que nesse relato de Portugal, ele foi acompanhado de sua esposa Mafalda e do filho Luis Fernando. Me chamou a atenção que ele mal cita o rapaz. Enquanto de vez em quando relata conversas que teve com a esposa; com o filho ele não destaca muitas interações. Acho que acabou vencendo nele o distanciamento pai-filho tão comum na cultura gauchesca tradicional. 

    Érico descreve Portugal como uma terra tão pitoresca e bela que não consigo deixar de lado a impressão de que ele estava sonhando demais. Gente, eu já viajei por aí e posso dizer: nem tudo é belo. Não tem como viajar assim. O menino estava mesmo deslumbrado.

    Ah, e como sempre, embora sua capacidade descritiva seja um marco de todo seu estilo, não são as paisagens ou as geografias que me interessam quando ele fala de suas viagens; mas a interação com outras pessoas. Creio que ele mesmo concordaria comigo quando digo que estas interações têm o poder de nos marcar de modo bem mais intenso.

    Eu falei mais acima que achei cansativa a parte sobre Portugal, e achei mesmo. Por causa disso, fiquei o livro inteiro esperando a parte dessa viagem acabar, só que me peguei surpreso quando, ao ler o último parágrafo desta seção, eu li, trêmulo:
    "Está na hora de embarcar. Trocamos abraços, nossas más caras britânicas caem por um instante. E então a trinca Veríssimo sobe para o vagão e ficamos à janela até a hora de o trem partir. Depois, os acenos e as figuras que vão ficando para trás, diminuindo de estatura física, mas de certo modo se gravam na nossa memória onde o tempo lhes vai modificando um pouco as feições." (p. 253)
    É muito difícil, senão impossível, não se identificar com várias das experiências dele, ainda mais se você já viajou um pouco. Tem algumas experiências que realmente ficam marcadas, ainda que anuviadas pela memória e pelo tempo. Eu mesmo, nos meus poucos anos de vida, consigo pensar em uma ou dias viagens assim.

    Já na parte final do livro – e sim, já caminho para o término –, Érico resolve abrir-se um pouco mais com o leitor. Como disse antes, o plano dele era escrever um terceiro volume para esta série onde ele faria isso de modo mais claro e amplo. 
    "O perigo das memórias está no fato de que, com raras exceções, memorialista, como a maioria dos outros homens, tem um pande apreço, amor e admiração pelo seu próprio eu [...] Nunca é tarde demais para uma confissão. Uma das razões que por muito tempo me impediram de escrever memórias foi o temor de resvalar para essa ridícula autovalorização." (p. 235)
    Pra ser bem honesto com vocês, nessa última parte eu achei triste ler o posicionamento religioso dele. Um agnóstico que nunca poderá dizer que Cristo não foi apresentado a ele. Embora estivesse cercado de uma mitologia católica (mãe, esposa, etc.), conhecia muito bem as doutrinas reformadas – coisa que ele mesmo declara abertamente em mais de uma ocasião.

    Por outro lado, o posicionamento político é bem interessante. Ele se considera um "humanista" de esquerda – algo que eu vou classificar aqui como centro-esquerda. Achei bom este posicionamento, porque é uma atitude que convida ao diálogo. Eu mesmo me classifico como centro-direita e sei que é bem difícil manter uma posição de centro (e aqui cometo uma heresia, porque Érico achava que ser de centro era sinônimo de ser acomodado – coisa da qual eu discordo, naturalmente).
    "Se me perguntarem que constantes de meu temperamento sinto com mais freqüência, eu diria que é uma curiosa combinação de preguiça – física e mental – e timidez." (p. 319)
    O que me assusta em toda essa leitura desses volumes, é como eu me identifico com o cara em vários momentos. Ele é minha influência declarada e eu almejo um dia escrever como ele escreveu. Nunca ganhou um Nobel, nunca se candidatou à Academia Brasileira de Letras, e nem por isso é um escritor medíocre ou mesmo desconhecido. É o maior escritor da literatura brasileira.

    O livro não traz sensação de completude, porque realmente não foi terminado. Permanecemos com aquele vazio que tanto senti no começo do livro. Mas será que o leitor realmente ficaria satisfeito um dia? Será que chegaria o dia em que eu diria: "Não quero mais ler nada dele"? Eu duvido muito, duvido. Afinal de contas, o que nos entristece de verdade não é que o livro ficou incompleto: é a morte. E a morte sempre vem. 

    Apesar de tudo que falei, eu fiquei bem satisfeito com o livro – talvez pela carga emocional que ele traz, claro. E já antecipando a leitura que você fará da citação abaixo, eu digo: "Não, Érico, eu queria isso mesmo. Obrigado por tudo. Foi infinito enquanto durou."
    "Querias um concerto de jazz ou uma grande peça sinfônica. Eu te dei um solo de clarineta." (p. 323)