sábado, 29 de setembro de 2018

Resenha - A jornada do escritor II

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.


Vamos direto ao ponto e dar continuidade à exposição dos principais arquétipos em histórias, tal como apresentados por Vogler. São eles: Mentor, Guardião do Limiar, Arauto, Camaleão, Sombra e Pícaro. Lembrando que esses não são personagens fixos, mas máscaras que diferentes atores podem usar em diferentes momentos da história, pra trazer fluidez à trama.

#Mentor
  • Chamados por Campbell como "Velho(a) Sábio(a)", o Mentor geralmente é uma figura positiva que ajuda ou treina o Herói para que ele possa prosseguir a jornada
    • Em termos da anatomia da psique, o Mentor é o self, o aspecto ligado a todas as coisas
    • São representações elevadas de aspirações dos Heróis → algo que eles podem se tornar caso persistam na sua jornada
      • Muitas vezes o Mentor foi um Herói que completou sua jornada e agora passa seus conhecimentos a um jovem Herói
  • Funções do Mentor
    • Ensinar (ou treinar) → é a função-chave dele
    • Dar presentes → ele doa algo que o Herói precisa para seguir em frente
      • A regra de ouro é que os presentes devem ser merecidos. O Mentor não simplesmente dá por dar
      • O presente não precisa ser um objeto
    • Consciência → o Mentor pode ser uma consciência externa do Herói, alertando para questões morais ou escolhas
    • Motivação → algumas vezes o herói não consegue vencer o medo sozinho, precisa de um empurrão para seguir em frente
    • Plantar 
      • Esse é interessante e muito usado em filmes
      • O Mentor planta uma informação que vai ser necessária bem na hora H do filme
      • Pode ser um objeto também que salva o Herói ou algo assim
  • Tipos de Mentor
    • Mentor escuro 
      • É um arquétipo para desorientar o público
      • Em filmes de terror, é a isca que atrai o Herói para o perigo
    • Mentor caído
      • Um Herói que não conseguiu trilhar sua jornada com sucesso
      • Muitas vezes a plateia fica em dúvida se esse Mentor vai conseguir ajudar mesmo
    • Mentor continuado → são aqueles que dão várias missões (por exemplo), para quem o Herói sempre volta para dar continuidade à jornada
    • Mentores múltiplos
      • Variedade de mentores que ensinam habilidades específicas (Hércules é o melhor exemplo)
      • Essa multiplicidade serve para exprimir diferentes funções do arquétipo
    • Mentor cômico 
      • Aparece muito em comédias românticas → aconselha sobre o amor
      • Geralmente os conselhos levam à alguma situação inusitada, mas que depois dá certo
    • Mentor xamã → serve como porta de passagem para que o Herói alcance o Mundo Especial
    • Mentor interno
      • Muito comum em literatura noir → é um arquétipo interno do Herói
      • É como se o Herói já fosse calejado e tira as lições de si mesmo → mas também pode ser um livro ou objeto que carregue consigo e sirva de Mentor
  • Vogler ressalta que o Mentor não é um tipo rígido
    • Embora Campbell chame de "Velho(a) Sábio(a)", o Mentor não precisa ser Velho, nem Sábio
      • Pode ser um jovem que ensina uma lição a um mais velho
      • Pode ser um personagem qualquer que, numa ação específica, possa inadvertidamente ensinar algo ao Herói
    • Justamente por isso, não necessariamente o Mentor virá no começo
      • Ele pode ser necessário em qualquer ponto da história
#Guardião do Limiar
  • A passagem entre os limiares não é feita facilmente → há ali um guardião para impedir
    • Estes não são os grandes vilões → o mais comum é que tenham relação com o vilão
    • Mas podem ser figuras neutras → mecanismos para compor a paisagem do Mundo Especial
  • Podem ser neuroses, problemas comuns que nós enfrentamos
    • No nível psicológico tem a ver com os nossos problemas internos
      • Como as dúvidas quando tentamos uma grande mudança
      • Também pode ser externo → as pessoas próximas ao herói podem não gostar da mudança
  • A principal função do Guardião é testar o Herói
    • Ver como ele vai reagir diante de uma situação difícil 
      • E se é digno de seguir em frente
      • Muitas vezes o herói vence o Guardião "entrando em sua pele"
    • Heróis bem-sucedidos reconhecem no Guardião um aliado útil ou indicador da jornada
      • Em vez de atacar o Guardião, podem aprender a usá-lo
      • Heróis preferem transcender seus inimigos do que destruí-los
  • Aprender com os Guardiões é que garante a construção do herói
#Arauto
  • No primeiro ato geralmente há um desafio ao herói → os Arautos que trazem
    • Pode ser uma pessoa, condição, informação → mas isso desequilibra o herói e ele chega num point of no return, a partir dali tudo será diferente
      • Os arautos desempenham uma função importante ao anunciar a necessidade de mudança diante de algo novo
      • Desencadeiam a ação da história → por isso geralmente são usados no primeiro ato, embora possam aparecer em outros momentos da trama
    • Na maioria das vezes o Herói tem medo da mudança e reluta diante do desafio
  • O Arauto pode ser uma figura negativa, positiva ou neutra → e pode ser outro arquétipo
    • Muitas vezes o Mentor pode vestir a máscara do Arauto
#Camaleão
  • Esse é, de longe, o arquétipo mais difícil de definir porque a natureza dele é ser mutante
    • Os Camaleões podem mudar de aparência, estado de espírito e até lealdade → eles estão sempre em questão, são quase incógnitas
    • Podem ajudar o herói ou ser destrutivos
      • Mas em última instância o Camaleão sempre é um catalisador de mudanças
  • Sua principal função é trazer suspense à história
    • Os melhores exemplos são femmes fatales, embora o aspecto "fatal" não seja comum
      • O arquétipo serve mais pra confundir o herói
      • Muito comum na literatura noir
  • Como uma máscara, até o Herói pode vesti-la (pra passar por uma armadilha ou Guardião, por exemplo) → é o arquétipo mais fluído de todos
#Sombra
  • A ideia da Sombra é ser o "anti", o aspecto não-expresso, o rejeitado
    • São as coisas que não gostamos em nós mesmos e tentamos esconder de todos
    • Ela representa o poder dos sentimentos reprimidos → psicoses que levam à destruição
      • Nas histórias esse aspecto negativo se traduz principalmente em vilões
  • A principal função da Sombra é desafiar o Herói e apresentar um desafio à altura
    • São as Sombras que obrigam o Herói a crescer pra poder vencer
    • E também pode ser uma máscara
      • O Mentor pode usar isso em muitos casos
      • No caso da femme fatale → o caso romântico pode ter a máscara da Sombra
  • Importante que as Sombras não precisam ser totalmente malvadas
    • O ideal, na verdade, é que sejam humanizadas → tenha algum toque de bondade ou qualidade admirável com a qual se possa identificar
      • Podem ser humanizadas especialmente nos momentos de vulnerabilidade
      • Lembrando que muitas Sombras não se consideram vilões
  • Como os outros arquétipos, a Sombra não precisa ser uma pessoa
    • Pode ser uma luta interna do próprio Herói
#Pícaro
  • Esse é o arquétipo palhaço → é a força da mudança por meio do humor
    • São inimigos do status quo e trazem o Herói para a realidade 
      • Quando a história está ficando muito séria → o Pícaro tem importante função
      • É o chamado alívio cômico → não deixa a narrativa tão exaustiva
    • É possível haver Heróis picarescos
  • É comum que eles sejam personagens catalisadores → afetam os outros mas nem tanto a si
    • Em muitos casos gostam de causar confusão só pra se divertir

#Os arquétipos
Por fim, lembramos que os arquétipos são ferramentas extremamente flexíveis. Qualquer personagem pode assumir uma dessas máscaras em determinado momento da história. Por isso é importante conhecer cada um dos arquétipos, pra dar mais credibilidade psicológica ao comportamento dos personagens.

Seguimos depois (quando tiver mais tempo pra escrever) para os estágios da Jornada do Escritor, conforme Vogler propõe. O que ele vai fazer pelas próximas quase 200 páginas do livro, basicamente, é pegar todas as etapas da Jornada do Herói e aplicar ao processo criativo da escrita. É muito interessante sua abordagem e bem útil aos jovens escritores ao acaso.

Resenha - A jornada do escritor I

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.


Esse é um daqueles livros que tem que resenhar por partes, porque tem tanta coisa pra se aprender, que a gente não pode correr o risco de deixar alguma coisa pra trás. Essa primeira parte vai tratar basicamente da Jornada do Herói de Campbell, que muitos conhecem. É um resumão dos principais pontos da Jornada e dos Arquétipos, de Carl Jung (vou explicar isso logo abaixo). 

Confesso que sempre fui temeroso em ler sobre a Jornada do Herói, porque morria de medo de que isso influenciasse minha escrita ao ponto de que eu ficasse preso a fórmulas. Mas a grande verdade, algo que o próprio Vogler menciona, é que, para rejeitar o padrão, é preciso conhecê-lo. Além disso, é interessante que a Jornada do Herói não é exatamente a mesma em qualquer lugar do mundo: conforme as culturas variam, ela também varia. O bonito por trás disso, porém, é que algumas coisas permanecem, independente da cultura.

Olhando pragmaticamente, eu, como escritor ao acaso, vejo que preciso dessas ferramentas nem que seja para começar minha jornada. Talvez no futuro eu as rejeite ou abrace-as e modifique de um jeito que seja só meu. Mas, a princípio, cedi à necessidade de conhecer esse tema.


A JORNADA DO HERÓI

A ideia por trás da Jornada do Herói é simples: todas as histórias tem elementos presentes na sua estrutura que são comuns, ou seja, são encontrados quase que universalmente, seja em em mitos, contos de fadas, sonhos, filmes, etc. Quem teve essa sacada foi Campbell com O herói de mil faces. Campbell percebeu esses elementos comuns e chegou à conclusão de que todas as histórias são basicamente a mesma história recontada mil vezes e de mil maneiras diferentes.

A Jornada do Herói, portanto, é um modelo que esteve presente em toda a história, em todas as culturas, ainda que tenha suas variações. A ideia de Campbell corre paralela à do psicólogo suíço Carl Jung, que desenvolveu a ideia de "arquétipos". Esses seriam aspectos da mente humana que estão presentes em toda e qualquer sociedade, levando ao que Jung chama de "inconsciente coletivo da humanidade". Vogler é bem claro em dizer que seu livro não substitui a leitura desses originais.

A jornada do herói, é, como nome diz, uma jornada. Em qualquer boa história que conhecemos, o herói cresce, luta, se transforma. Os estágios da jornada do herói são comuns em toda e qualquer história, mesmo quando o escritor não está ciente delas. Vogler faz seu próprio desenho da jornada e a classifica em doze etapas:

  1. Mundo Comum → É de onde o Herói sai. Em toda história o Herói vai para um Mundo Especial. Mas antes de ir pra lá, o escritor tem que posicionar o personagem no seu cotidiano, até que algo o tire dele.  
  2. Chamado à Aventura → Algo acontece que faz que o Herói não possa simplesmente permanecer no Mundo Comum. Isso estabelece um novo objetivo para o Herói
  3. Recusa do Chamado → É o medo do desconhecido. O Herói sempre hesita antes da sua aventura. Nesse ponto é precisa que surja alguma influência ou acontecimento que empurre o Herói pra frente, geralmente é um encorajamento do Mentor.
  4. Encontro com o Mentor → A relação do Herói com o Mentor é um dos temas mais profícuos na mitologia e em diversas histórias, com grande valor simbólico. Nesse ponto, a função do Mentor é preparar o Herói para enfrentar o desconhecido, mas ele não acompanha o Herói.
  5. Travessia do Primeiro Limiar → É aqui que a aventura decola e realmente inicia. É o ponto da jornada que, após ultrapassado, não dá mais pra voltar atrás. Marca o início do segundo ato, é o fim do primeiro momento da história.
  6. Testes, Aliados, Inimigos → Aqui o Herói começa a aprender as regras do Mundo Especial, que ele adentrou. Aqui podem acontecer aventuras diversas, construindo aspectos do Herói e de sua equipe (caso ele se junte a outras pessoas por aqui).
  7. Aproximação da Caverna Oculta → O Herói então chega à fronteira de algo ou um lugar perigoso, escondido, profundo, onde está algum objeto de sua busca. Após entrar nesse lugar o herói vai passar pelo Segundo Limiar.
  8. Provação → O momento sinistro da história. O Herói confronta diretamente seu maior inimigo ou maior medo, é levado ao extremo. É nesse momento crítico que o Herói morre ou parece morrer, para renascer em seguida. Geralmente nesse ponto a história já foi construída de uma forma que nos identificamos com o herói e o que acontece com ele parece ser conosco. Toda história precisa de um momento de vida-ou-morte como esse. 
  9. Recompensa → Após sobreviver a morte, o Herói então pode ter a sua Recompensa. Pode ser qualquer coisa, desde um objeto mágico até o conhecimento de algo ou a própria experiência da jornada.
  10. Caminho de Volta → No terceiro ato, portanto, o Herói agora vai lidar com as consequências das suas ações e promover o retorno. Geralmente aqui são as cenas de perseguição ou fuga. Essa fase marca a decisão do Herói em voltar ao Mundo Comum.
  11. Ressurreição → É um segundo momento de vida-ou-morte, quando parece que tudo já está bem, o Herói tem que enfrentar novamente a morte ou escuridão que, num ato final e desesperado, fazem de tudo para derrotá-lo.
  12. Retorno com o Elixir → O Herói então volta ao Mundo Comum, mas ele não pode voltar de mãos vazias. A jornada tem que ter algum significado nisso tudo, por isso ele traz o Elixir (que pode ser um objeto, conhecimento, experiência, qualquer coisa).
A Jornada do Herói é um esqueleto de história, que deve ser preenchido com detalhes e surpresas únicos. Essa estrutura, porém, pra ter o efeito desejado, não pode ficar visível, não pode nem sequer ser mencionada; além disso, não deve nem ser rígida demais. Todas as etapas são alteráveis e algumas podem até ser suprimidas, a depender da história. 


ARQUÉTIPOS

Como já dito, a ideia de arquétipos nasceu com Carl Jung, que propôs que pode existir um "inconsciente coletivo", semelhante ao individual, onde há padrões de personalidades que são comuns à toda a raça humana. De qualquer maneira, é importante que o escritor domine essas terminologias e, pelo menos, conheça os principais arquétipos e suas funções.

Vogler ensina que, ao contrário do senso comum, os arquétipos não devem ser encarados como papéis rígidos de personagens, mas funções que vários personagens podem desempenhar do decorrer da trama. Ao vê-los dessa forma, é possível deixar a narrativa mais fluída e dinâmica, encarando os arquétipos não como personagens em si, mas como máscaras, que eles colocam conforme a situação. Isso é tão verdade que vários arquétipos podem estar presentes até mesmo no Herói, como facetas de sua personalidade, como símbolos da personalidade humana. 

Vogler classifica os principais arquétipos como: Herói, Mentor, Guardião do Limiar, Arauto, Camaleão, Sombra e Pícaro. Ele mesmo afirma que essa lista não é exaustiva, mas esses são os mais comuns. Para identificar a natureza do arquétipo, o escritor deve responder às perguntas: "Que função psicológica, ou que parte da personalidade ele representa?" e "Qual sua função dramática na história?"


#Herói
  • A ideia básica do Herói é de alguém que está disposto a se sacrificar em benefício dos outros
  • Em termos psicológicos é o que Freud chama de "ego"
    • Porém, o herói deve transcender o ego, suas ilusões e limites.
    • Na jornada, o Herói deve se tornar completo, incorporar o que faltava para se tornar integral.
  • O herói é a porta de entrada para a história
    • Para acompanhar a história, o escritor dá ao herói uma combinação de características únicas
      • Essas qualidades são coisas com as quais nós nos identificamos → eles têm que ter emoções e motivações que todo mundo já tenha sentido
      • Por isso essas histórias nos convidam a nos identificarmos com os heróis
    • A combinação dessas coisas é que faz com que nós vejamos o herói como uma pessoa de verdade
  • Na história, o herói deve crescer, mudar, se transformar
    • Em histórias com vários personagens a gente às vezes pode perguntar: quem é o Herói? Vogler diz que o Herói nas histórias é sempre aquele que mais se transformou durante ela
    • O Herói se transforma pela ação → ele é agente ativo na história
      • Um erro frequente de muitos escritores (conforme ensina Vogler), é fazer um herói ativo durante toda a história, mas na hora H fica passivo frente à situação, sendo salvo por alguma força externa.
    • Nessas ações, uma das marcas do herói é que ele se sacrifique em prol de outros
      • O verdadeiro heroísmo só vai aparecer numa situação de vida-ou-morte
      • Por isso os heróis que funcionam melhor nas histórias são os que se sacrificam
  • Lembrando da ideia de Vogler em encarar os arquétipos como "máscaras"
    • Vale lembrar que diversos personagens na história podem ter o arquétipo do herói em alguns momentos
    • Pode até ser um vilão que veste a máscara (estou falando de você, Darth Vader). 
  • É importante que o herói tenha defeitos
    • Isso humaniza o personagem → interessante que quanto mais neurótico, mais parece que a plateia se identifica com o herói
    • Os defeitos ajudam também no "arco do personagem"
      • É o caminho que o herói percorre para o aperfeiçoamento
      • As etapas desse aperfeiçoamento são a jornada
  • A disposição do herói também varia 
    • Pode ser um herói decidido, sedento pela aventura
    • Pode ser um herói relutante, hesitante → esse precisará ser motivado por algum fator
  • Variedades de Herói
    • Anti-Herói
      • Não é o vilão → é alguém que pode ser considerado marginal pela sociedade mas com quem a plateia se solidariza, devido as suas características
      • Geralmente são heróis trágicos, cínicos, feridos → a ideia é um Herói com defeitos mas que nunca conseguiu superar esses defeitos, sendo derrotado por eles
    • Heróis voltados para o grupo → o mais comum. Estes muitas vezes enfrentam a escolha de voltar para o Mundo Comum ou permanecer no Mundo Especial
    • Heróis solitários 
      • São heróis cujo estado natural é a solidão
      • Muitas vezes sua jornada é: 1º ato = retorno ao grupo; 2º ato = aventura com o grupo; 3º ato = retorno à solidão
    • Heróis catalisadores
      • São heróis, figuras centrais, mas que não mudam muito no decorrer da história, porque sua principal função é catalisar transformações em outros personagens
      • Geralmente sua personalidade está totalmente formada, não tem muita trajetória
____________________

Vou parar por aqui pra não alongar muito o post. O Herói é o arquétipo principal, e penso que foi coberto na totalidade do que Vogler explicou. No outro vamos falar dos outros seis arquétipos e com isso encerramos a primeira parte do livro de Vogler, para depois adentrarmos na Jornada do Escritor.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Resenha - Um piano para cavalos altos

JUNQUEIRA, Sandro William. Um piano para cavalos altos. Rio de Janeiro: Leya, 2012.


Gente do céu. Que livro diferente de tudo o que já li. Bem numa semana em que eu estava revisando um conto meu e aprendendo sobre o tal discurso indireto livre com o Prof. Devair, me cai essa bomba no colo, uma bomba sem um único travessão, sem aspas, com indicações de narração suficientes apenas para a gente saber minimamente o que está acontecendo. Isso foi bem impressionante.

Com frases curtas e concisas, Junqueira consegue construir um cenário de distopia. Há uma Cidade envolta pelo Muro, dentro dessa cidade há diferentes Zonas (Amarela, Azul, Cinza, Marrom), cada uma é uma espécie de gueto onde as pessoas são divididas conforme classe social (a Cinza sendo a pior e a Azul a melhor).

Nessa cidade, todos vivem sob o comando do Diretor Calvo (o nome dele não é "Calvo"), que comanda a Fábrica e mantém em rédeas curtas a Prisão. Essa última é comandada pelo Diretor, que, casado com a Ruiva, vê-se numa encruzilhada ao se deparar com o Mensageiro, que conversa com Ele e consegue prever aquilo que ainda não aconteceu.

Desse último parágrafo já dá pra ter uma noção. Os nomes dos personagens não são nomes próprios, são descritos tão somente desta forma: o Diretor, a Ruiva, o Operário, o Militar Coxo, a Secretária, a Criada, o Filho e por aí vai. A trama se desenrola com todos eles ao mesmo tempo, em alguns momentos até de maneira confusa ou supérflua, de um jeito que a gente não entende direito como aquilo contribui para a história. Aliás, a história toda parece acontecer "de canto de olho". É um desenrolar tênue que a gente fica se contorcendo pra saber o que vai acontecer. 

Há um linguajar meio fluido que perpassa todo o livro, mas tem vezes que Junqueira não tem pena e coloca vernáculos bem explícitos (especialmente para as genitálias de ambos os sexos). Aliás, o autor não tem pena de falar do que é sujo, dos podres escondidos, dos desejos nefastos ocultos dos personagens, trazendo em vários momentos um aspecto noir à trama. 

Ao final, tudo é uma distopia mesmo, com críticas ao governo totalitário do Ministro Calvo e um plano conspiratório encabeçado pelo Mensageiro contra tudo isso. É difícil elencar um personagem principal, uma vez que o Mensageiro só aparece em poucos momentos da história, ainda que decisivos. Talvez o Diretor, seu desenrolar com a Ruiva e seu Filho, seja o personagem cuja trama é vista com mais evidência no livro. 

Falei discurso indireto livre, viu? Algumas vezes me perdi sem saber quem era a personagem que estava falando ou se era o narrador, mas penso que é questão de costume. Ah! Um ponto interessante: o livro é dividido em "Sonata de inverno" e "Concerto de verão", todos eles divididos em Gymnopédies, o que me trouxe Satie à memória imediatamente. Aliás, quase dá pra ouvir a Gymnopédie dele ao ler alguns trechos da história. Muito interessante esse jogo.

Pelo pouco que consegui encontrar sobre Sandro William Junqueira na internet, o cara é português, (aliás, o livro é em português de Portugal, fica evidente em diversos momentos) nascido em 1974 e parece ser um artista diversificado, adentrando teatro e design também. Em 2012 foi considerado um dos escritores para o futuro pelo semanário Expresso.

Um piano para cavalos altos. Tem piano, tem cavalos altos, tem a foto de um lobo na capa, tem tudo isso na história também. Mas isso não tem nada a ver com nada, mas, em certa medida, tem a ver com tudo. É complicado mesmo, tal como o livro é. Leitura mais do que recomendada.

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Resenha - Mil Tsurus

KAWABATA, Yasunari. Mil Tsurus. São Paulo: Estação Liberdade, 2006.


Então. Não tenho ideia de como esse livro veio parar comigo (risos). Simplesmente o vi e pensei "Ué, por que não?". E deparei-me com um tipo de narrativa para a qual não estava preparado. Não porque tenha grandes reviravoltas, cheia de emoção, drama ou adrenalina. Pelo contrário, é justamente pela ausência dessas características.

"Mil Tsurus" relata a história do jovem Kikuji Mitani e a relação dele com pelo menos três mulheres bem significativas na trama: Chikako Kurimoto, Sr.ª Ota e Srta. Ota. Embora o tradutor Paulo Hecker Filho destaque a Sr.ª Ota como uma personagem de destaque de Kawabata, para mim é a desprezível Chikako que sempre está em evidência na trama. 

A trama, de maneira ampla, desenvolve-se no Japão pós-Segunda Guerra Mundial. Todos os acontecimentos estão orbitando em torno do chanoyu, ou "arte do chá", uma tradição japonesa em torno não apenas da bebida, mas também os elementos dela, como preparação, utensílios utilizados, vestimentas, e por aí vai. 

O pai de Kikuji, um amante desta arte, envolve-se com Chikako, uma mestre da arte do chá. Depois descobrimos que ele também se envolve com a Sr.ª Ota, uma praticante desta arte. A narrativa, porém, está em torno de Kikuji e seus relacionamentos. Já mais velho, ele se relaciona com a Sr.ª Ota e depois desenvolve sentimentos por sua filha, Srta. Ota. 

É muito estranho para um ocidental acompanhar a narrativa. Ela é tão poética, tão tênue... somos envolvidos pela ideia de contemplação, que parece percorrer todos os personagens, passamos a identificar em certos detalhes uma significância que, em outras narrativas, não perceberíamos. Acho que foi isso que mais me chamou a atenção no livro.

A temível Chikako importuna a vida de Kikuji até mesmo depois de adulto. Adentra sua casa, envolve-se em suas preferências e relacionamentos, dá ordens como se fosse a dona do lugar. Argh, como é incômoda essa personagem, sempre envolvendo-se, com seus propósitos escusos, na vida de Kikuji. 

No fim das contas, o livro traz mesmo é uma espécie de meditação. A trama desenrola-se com tanta tranquilidade, mas é contrastada com momentos de grandes emoções. Pergunto-me se isso não traduz o ethos da época: um Japão tradicional e milenar x um Japão militar e ocidentalizado. Penso que isso estava acontecendo naquele momento e é traduzido na literatura da época também. 

Recomendo a leitura, ao mesmo tempo que fico com poucas palavras para traduzir a ideia de serenidade do livro, misturada com acontecimentos inesperados. Kawabata traz uma narrativa diferente, inesperada, até. É uma boa porta de entrada para conhecer a literatura japonesa.

sábado, 8 de setembro de 2018

Resenha - Galeria Fosca

VERÍSSIMO, Érico. Galeria fosca. São Paulo: Globo, 1996.


Pois é. Que Érico Veríssimo é meu escritor favorito já não é nenhum segredo. Esse livro se provou ser interessante, não obstante. É uma antologia. Não são apenas contos, há crônicas e mesmo críticas literárias escritas por Veríssimo quando trabalhava para a Revista Globo, lá pelas idos dos anos 1930.

Mais uma vez o que mais me chamou a atenção é ver um grande escritor da literatura brasileira de um ponto de vista mais humano. Em algumas críticas literárias ele fala de seus escritores contemporâneos (gente que nunca ouvi falar, pra ser sincero) e fala deles com tamanha familiaridade que parece algum conhecido. Além disso, Veríssimo revela suas preferências na leitura e até mesmo suas influências. É muito bonito quando ele fala da beleza que há em retratar o cotidiano.

Suas análises da literatura brasileira são surpreendentemente atuais, não obstante. Ele mesmo pergunta: como é possível comparar um escritor brasileiro com um europeu? Os contextos são muito diferentes e cada um tem sua peculiaridade. Ele retrata a infeliz realidade do escritor brasileiro, que tem que lidar com um mundo de outras situações além de escrever. Não obstante, há uma linda homenagem dele a Monteiro Lobato, por ocasião de sua morte: é de ter lágrimas vertendo nos olhos, absolutamente lindo e sensível.

Os contos presentes no livro são muito bons. Alguns deles fazem parte do universo expandido de alguns de seus livros. Há no livro o conto "O professor dos cadáveres", que é o melhor conto de terror dele que já ali até agora. Muito bom mesmo. "Galeria fosca" é um conto muito bom, mas acho que o anterior, "O elemento humano", é bem melhor. 

Por fim, Veríssimo também traz algumas notas do escritor, como "Como nasce uma personagem" e "Sete Meis". Na verdade esses dois já li em algum outro lugar, que é quando ele fala de um personagem que ele cria para ser só um tampão, mas na verdade ganha independência na história e acaba se tornando uma personagem principal e recorrente em outros romances.

Mais uma vez, não consigo evitar a recomendação. Um dia gostaria que alguém me dissesse que estou errado e que Veríssimo não é um grande escritor e gênio ao retratar a realidade do Brasil sem esquecer da sensibilidade que há presente em cada capítulo da história. Mas duvido que alguém o pudesse fazê-lo. Érico Veríssimo ainda é um forte momento da literatura brasileira.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Resenha - A arte de escrever

SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Porto Alegre: LP&M, 2009.


Então, né. Mas outro livro com título misleading. É uma pena começar assim, mas é verdade. Que Schopenhauer é ferino e vai direto ao ponto não me era novidade, na verdade é um dos poucos filósofos que dá gosto de ler diretamente, porque ele fala. Isso é muito bom. E nisso o livro não peca, a leitura é surpreendentemente fluida para um livro de filosofia. Sim, porque o livro é filosofia.

"A arte de escrever" é um compêndio de excertos de textos de Schopenhauer, organizados em cinco partes: "Sobre a erudição e os eruditos", "pensar por si mesmo", "sobre a escrita e o estilo", "sobre a leitura e os livros", "sobre a linguagem e as palavras".

Não é que não se aprenda nada com o livro. O lance é que é tudo muito ensaístico e certa parte do que ele fala se aplica mais ao texto científico do que ao literário. Em determinados momentos achei-o muito elitista, em especial na sua crítica e até mesmo desprezo por certos idiomas e defesa de clássicos como latim, grego e sânscrito. 

Isso é expresso no texto dele quando ele condena textos no idioma do povo, pois esses idiomas são baixos, não expressam direito as palavras. Ele tenta defender seu ponto de vista dizendo que quem escreve para o povo só escreve pensando em dinheiro.

Também me assusta a crítica que ele faz à própria leitura. Eu entendo o que ele quis dizer, mas ainda é meio estranho: ele está falando que quem lê demais só reproduz o pensamento alheio. Ele estabelece bem essa diferenciação entre ler e pensar, sendo este último ato mais nobre que o primeiro. Está muito ligado com a defesa que ele faz de ter conhecimento e aparentar ter conhecimento.

Uma crítica, porém, que ele tece repetidamente ao longo do livro e que acho salutar é: leia os clássicos. Ele busca desconstruir a ideia de que aquilo que é mais recente é o mais correto, ou é um avanço, ou significa "progresso". Não raro, Schopenhauer afirma que há até retrocesso nas novas ideias, daí a necessidade de se ter uma base firme nos clássicos.

Mas é claro que há grandes verdades a se retirar do livro. Nem todas têm a ver com escrita ou literatura ou algo do tipo. De qualquer forma, condensei-as aqui:

#As verdades
  • Só escreve de verdade quem o faz por amor: quem faz pelo dinheiro nunca será bom 
  • A conteúdo é superior à forma, mas ambos se complementam
  • A pessoa que ensina ciência não é necessariamente a que faz ciência
    • A boa formação da humanidade deveria ser holística
    • Na erudição, muitas vezes só se quer ter a aparência de conhecimento 
  • Há 3 tipos de escritores
    • O que escreve sem pensar
    • O que pensa enquanto escreve
    • O que primeiro pensa, depois escreve (esse é o mais raro)
  • Ler os clássicos!
    • Cuidado com as "modas": poucas se sustentam
  • O pensamento só existe até antes de chegar na fronteira das palavras
    • Quando vira palavra, então se cristaliza, se enrijece
    • Mas também, fica imortal
  • Revistas literárias
    • Seu papel deveria ser filtrar a literatura e impedir que maus escritores cresçam 
    • A crítica deveria ser o mais comum; o elogio, a exceção
      • Isso porque a maioria dos livros é ruim, são poucos os que se destacam
      • Schopenhauer condena o politicamente correto (em especial porque usam isso para ganhar dinheiro à custa da literatura)
  • O estilo é a fisionomia do espírito do escritor
    • Deve-se reconhecer falhas ou problemas no estilo dos outros para evitar no seu
    • Evitar estilos truncados, com raciocínios longos: pode ser apenas aparência de erudição
      • Deve-se evitar a prolixidade: permanece no texto sua quintessência
      • Permanece apenas os assuntos que o leitor não consegue deduzir sozinho 
  • A regra maior é que se tenha algo a dizer
    • Isso também foi dito pelo Stephen King!
  • Quem escreve de maneira displicente está dizendo que não atribui valor aos próprios pensamentos
    • Ele cita que poucos escrevem como o arquiteto constrói: primeiro desenha, pra depois realizar a obra.
    • Confesso que não sei se ele defende isso, ficou meio dúbio
  • Frase marcante: É comum confundir a compra dos livros com a sua assimilação

#Conclusão

O livro é de filosofia e nem fala tanto, tanto assim da "arte de escrever". Esse assunto é deveras o centro do compêndio, mas são muitos assuntos conexos que o foco se perde. Não sei se isso é por causa da edição ou foi o autor mesmo. De qualquer forma, o título é misleading, ainda que se possa aprender boas verdades com o texto. 

Penso que, de certa forma, esses livros estão sofrendo em comparação com King, cujo ensino foi precioso demais e parece abarcar tudo que os outros já tinham dito. De qualquer forma, são boas leituras pra complementar. 

Só queria ressaltar algo: Schopenhauer defende tanto a escrita objetiva, que se tenha o conhecimento e não apenas aparência disso, et cetera e tal. Mas o lance é que muitas verdades que ele disse poderiam ser discorridas em poucas linhas. Irônico ou o fardo do filósofo? Lê aí e me diz. Porque eu, sei lá.