quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Os guardiões

“O feitiço está pronto. Há um anfiteatro por trás do terminal novo, a Praça da Cultura. Lá há três seres poderosos. Ah! Se soubessem os segredos que eles guardam. Segredos que eu sempre conheci. Essa terra que chamam de Boa Vista já foi outras coisas em tempos imemoriais. Antes dos karaiwa. Antes dos Macuxi. Antes, muito antes. Eu sou desse tempo. De um tempo em que se lutava contra o mal com todas as forças. Algo antigo retornou eu acordei, chamei o Mensageiro. Minha missão é impedir o mal. A cidade ainda carregava as marcas daquele tempo. E eu sou um dos guardiões.” 

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Seu Silva deu os últimos retoques na câmera. O cliente se posicionou. Pronto. Foto 3x4 feita, cliente satisfeito. O rapazote saiu da pequena loja e Silva contemplou a si mesmo na foto em preto e branco na parede. “Também já fui jovem”, pensou. E sorriu satisfeito. Já estava na hora de fechar. Desligou tudo e saiu. Depois que trancou a lojinha olhou para o lado e viu a Samaúma, a árvore que carregava a sabedoria dos tempos passados, que o escolheu para proteger aquela terra. O Centro Cívico lotado de carros. 

Silva estava nervoso. Ainda ontem a Samaúma dissera pra ele se preparar, o mal havia retornado e era hora de chamar o Guardião. Silva sabia o que isso significava. Mas sabia também da necessidade de proteger aquela terra. O sol já estava quase se pondo. Ele foi pra casa. Viu as fotos da família sobre a mesa. Que saudade daquele povo que partiu cedo demais. Seu cachorro tinha um olhar cansado. “Já quer ir também, né, amigo?”, pensou.

Acordou bem cedo, antes do sol raiar e saiu para a praça. Contemplava a alvorada uma última vez sobre aquela cidade. Chegou na praça do Centro Cívico. Olhou para ele. Subiu a pequena rampa e disse:

– É hora de acordar, amigo. – com uma folha da Samaúma na mão encostou na estátua do Garimpeiro. Solene e sublime bem no centro de Boa Vista. E Francisco já não era mais. O Guardião havia acordado. Levantou-se e ergueu a peneira. Estava de volta.


Conto premiado no 1º lugar da categoria "conto" do III Concurso Literário Internacional Palavradeiros, originalmente publicado na Antologia do referido concurso em 27/12/2018 (disponível aqui)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

2018: o resumo da ópera

Como esse blog no fundo é mais um diário de leitura do que qualquer coisa, este post é pra eu ter uma ideia de como foi minha carga de leitura esse ano e no que consistiu minha produção literária (se é que podemos dizer que há uma efetivamente). Vou iniciar com as resenhas e depois passar aos concursos literários que participei (tanto os que ganhei como não) e um resumo das produções. Não sei nem porque estou explicando isso, acho que é o apego ao método científico.


1. Livros resenhados
Tentei fazer uma tabela mas deu muito trabalho, não sei mexer com HTML e já estou velho pra aprender (ou talvez seja preguiça mesmo), ela está meio zoada mesmo, é a vida. Ficou assim: li em 2018 a marca desprezível de 27 livros. Penso que daria pra ter feito melhor, mas dá uma média de pouco mais de 2 livros por mês, o que penso ser razoável, considerando mestrado e trabalho como ladrões de tempo.

Fev 1) Judgment of Paris; 2) Ragnarok; 3) Kamigawa
Mar 4) Fantoches e outros contos
Abr/Mai  -- (zero)
Jun 5) Solar; 6) Biofobia
Jul 7) A garota de Cassidy
Ago 8) Sobre a Escrita; 9) Como contar um conto
Set 10) A arte de escrever; 11) Galeria Fosca; 12) Mil Tsurus; 13) Um piano para cavalos altos; 14) A jornada do escritor
Out 15, 16, 17) Lovecraft ; 18) Ciência Maluca; 19) O vampiro de Curitiba; 20) Grito de alerta
Nov 21, 22, 23 e 24) Crestomanci; 25) O homem de Barlovento; 26) Contos fantásticos (Maupassant); 27) Maravilhas do Conto Fantástico

Um gráfico disso (esse eu sei fazer no pacote office -- mas também só sei porque é só clicar umas duas vezes), ficaria assim:


Dos livros lidos, 7 são de autores nacionais (isso se contar o 27 nessa categoria), acho que falo mal dos outros e acabo fazendo o mesmo, né? (risos). Houve um salto na minha leitura, principalmente, por causa de Stephen King em "Sobre a Escrita". O conselho do tio Steve sobre a leitura como fonte primordial do escritor mexeu comigo, especialmente porque sei que ele está certo.

Acho importante que nessa lista constem tantos livros que considerei bons como aqueles que odiei e nunca mais pretendo ler nada do autor. Isto é um bom patamar pra que eu não fique bitolado em um único estilo ou tipo de escrita. Falando em gêneros, eu claramente deixei a poesia de fora, mas dentro da prosa teve ficção, terror, drama e sobre a própria escrita. Estão faltando aí: amor (romântico) e comédia. Anotar: pegar livros desses pra ler. Prometo que vou tentar ler mais autores nacionais, mas o pessoal tem que fazer por onde e merecer também.


2. Concursos literários e produções

Encontrar os concursos dos quais participei e não ganhei nada necessitou de uma busca no e-mail, e ainda assim acho que não peguei todos. Afinal a gente guarda as recordações boas, né? Mas é preciso registrar essas coisas pra aprender onde e o que se está fazendo. Na tabela abaixo enumero os concursos em que fui aprovado (Sim), os que não fui (Não) e os que ainda estou aguardando resultado (Talvez).

Sim
A Máquina Consciencial (Outubro, classificado); Inquietação (novembro, classificado); 5º Concurso de Textos Anônimos (novembro, 7º lugar) Palavradeiros (dezembro, 1º lugar)
Não
Concurso Literário Internacional ‘Natureza – 2017-2018’; Concurso Internacional Poesias em Árvores (CIPA) 2018; Sarau Brasil 2018; 8º Concurso Microcontos de Humor de Piracicaba; Projeto "Poética sobre as águas"; 9º Concurso Literário Cascavel; 26º Concurso da Academia de Letras de São João da Boa Vista; 4ª edição da Revista Aspas Duplas; 
TalvezXVII “Prêmio Jorge Andrade” da Academia Barretense de Cultura; próxima edição da Leitor Cabuloso; próxima edição da LiteraLivre; próxima edição da Bang; próxima edição da CapaA; VI Concurso Literário Icoense; Antologia Delírios II (editora Converge)

Foram ao todo enviados 18 contos e poemas para diferentes concursos, todos eles no Brasil à exceção da Revista Bang que é de Portugal. Ah, sim, são revistas literárias a Leitor Cabuloso, LiteraLivre, Bang e CapA. Sobre os "nãos" que recebi, apenas para um deles tenho justificativa: a Revista Bang encerrou suas atividades, daí não posso ser culpado, hehehe. Olha aí o resumo da tabela.


Eu tinha planos de mandar um conto pra Revista Trasgo, já havia até escrito, revisado e tudo o mais, só que aí vem a revista e diz que estava encerrada a chamada em fluxo contínuo de contos, que seria reaberta (talvez!) em janeiro de 2019. O gráfico deixa bem claro que recebi muito mais "nãos" do que "sins" e tem vários "talvezes" aí que são potenciais "nãos". O segredo é continuar tentando.

Além de tudo isso, tive três poemas publicados no blog Cultura de Roraima (link aqui) e também publiquei dois microcontos ao acaso no Facebook, só por diversão mesmo. Além disso, não posso dar spoiler, mas para fins de registro destaco que esse foi o ano que produzi um livro em co-autoria, a sair, talvez (e muito talvez) apenas em 2019, por motivos de tempo e dinheiro (especialmente o último).


#O resumo da ópera
  • Livros lidos: 27
  • Textos escritos: vários, esqueci de fazer esse índice, fica pro próximo.
  • Textos enviados pra concursos literários: 18
  • Textos aprovados: 4
E é isso aí. Ano que vem vamos ver o comparativo e ter uma noção se estou crescendo ou não. Afinal, nem sei direito o que vou fazer com toda essa história de escritor. Ai ai, mais uma coisa pra lista de coisas. Sou mesmo um escritor ao acaso.

Resenha - Maravilhas do Conto Fantástico

SILVA, Fernando Correia da. Maravilhas do Conto Fantástico. São Paulo: Cultrix, 1960.


Desculpem a foto (risos), mas não consegui encontrar mais informações dessa edição na internet. E tendo conseguido de graça num bazar, tampouco o livro me dá mais dicas, senão o bilhete que encontrei dentro dele com os dizeres: "Azul escuro / cortar Ney / Maria do Carmo" e um carimbo na segunda página "Ney Rego Barros" com anotação em caneta "Nº 660" e "5/10/79".

Este começo enigmático casa perfeitamente com o propósito do livro. O título "Maravilhas do Conto Fantástico" deveria ser "Maravilhas do Conto de Terror". Todos os contos têm essa temática, numa seleção feita por Fernando da Silva Correa que, pra ser sincero, nunca ouvi falar e uma pesquisa rápida no Google não revelou muita coisa.

Percebo que há uma valorização de autores estrangeiros em detrimento dos nacionais no livro. Digo isto porque dos 26 contos que compõem essa antologia maravilhosa, apenas 3 são de brasileiros (Aluízio Azevedo, Álvares de Azevedo e Carlos Drummond de Andrade). Mas, não obstante, o organizador faz um trabalho interessante de reunir clássicos do gênero e buscar mostrar um estado da arte do terror clássico (ou pelo menos aqueles comuns no final do século XIX e começo do XX). Compõem essa antologia nomes como Edgar Allan Poe (que não poderia faltar), com o conto "Silêncio", que é no mínimo inusitado; Hoffman, Nelson Bond e vários outros que nunca tinha ouvido falar.

Mas o que tenho pra dizer mesmo sobre esse livro são os destaques: Jacques Casembroot traz o conto "Do Outro Lado", uma história quase terna, confesso que não esperava me emocionar com um conto de terror, mas o autor descreve de maneira tão singela os acontecimentos que não pude evitar; E. F. Benson com "A Coisa no Hall" traz uma narrativa bem envolvente; e a sacada de Nelson Bond em "A Livraria das Obras Inéditas" foi muito boa.

Agora, sem sombra de dúvida, os melhores contos, em ordem crescente, foram: 3) "Flor, Telefone, Moça", de Carlos Drummond de Andrade. Esse tenho certeza que muitos já leram em tempos da escola, que é quando uma moça retira uma flor de um túmulo, passeando a esmo, e quando chega em casa o telefone toca: 'Cadê a flor que você arrancou da minha sepultura?'. Muito bom e excelente escolha para fechar a antologia.

2) "O Homem que se Enterrou" de Miguel de Unamuno. Sim, ele compõe a antologia. O conto dele é sensacional, principalmente, por estar à frente do seu próprio tempo. Ali há uma forte desconstrução da lógica e desafios à natureza das coisas que só viriam a cristalizar-se fora do mundo artístico lá pelos anos 80, praticamente 50 anos após a morte do autor. Muito envolvente a história e o encadeamento de acontecimentos faz a gente ficar atemorizado, não tanto pelo medo da história, mas pelos pressupostos que ela traz e as consequências destes. 

E em primeiríssimo lugar: "Demônios" de Aluísio Azevedo. Sim, o brasileiro ganhou de tudo que é estrangeiro na seleção! O autor de "Casa de Pensão" e "O Cortiço" deu um show no melhor do terror fantástico mesmo. Sua imaginação extrapola os limites da realidade que nem Lovecraft conseguiu fazer, no meu ponto de vista. Enquanto Lovecraft muito falava do desconhecido e, sem explicar, criava o medo em torno dele, Aluísio Azevedo vai além e se atreve a descrever o inimaginável, trazendo resultados assombrosos para o leitor. De longe o melhor conto do livro. Sensacional.

Com isso encerro minhas leituras de 2018 (excelente forma de fechar o ano, aliás!). Próximo ano talvez eu poste mais coisas que eu mesmo escrevi, mas as resenhas continuarão a ser parte do meu combustível intelectual (para lembrar do mestre Stephen King) ao mesmo tempo que funcionam como meu diário de leitura. Farei ainda mais um post com um resumo de tudo que li nesse ano. Hasta la vista, ó dois ou três leitores.

domingo, 2 de dezembro de 2018

Resenha - Contos fantásticos: o Horla & outras histórias

MAUPASSANT, Guy de. Contos fantásticos: o Horla & outras histórias. Porto Alegre: LP&M, 1997.


Livros de contos sempre são legais. Via de regra porque nos trazem uma leitura que não é tão cansativa e bem variada. Eu não conhecia Guy de Maupassant, tampouco esperava que ele fosse autor de contos de terror. Não sei se ele sofreu em comparação com Lovecraft ou simplesmente já estou cansado de ler. A verdade é que à exceção do Horla e Carta de um Louco, os outros contos foram "É, é um conto bom".

Maupassant escreve à moda antiga. Mas também, pudera, o cara é do final do século XIX. Vejo muito nele aquele espírito do tempo, de misturar as descobertas científicas com a ideia do medo, por exemplo. Na verdade nem tanto pelas descobertas, mas por conta das incertezas que elas traziam. Há um apego nele por essas ideias de magnetismo, outros planetas e tudo mais, que (imagino eu) era patente ao homem educado daquela época. Ah, ele também tem um apreço por espelhos e sua capacidade de refletir, talvez, aquilo que não queremos ver: nós mesmos. 

Os contos são bons, um ou outro achei meio simplório e há em alguns um caráter enciclopédico que abomino. Abomino, mas compreendo quando deixo de olhar com olhos contemporâneos: Maupassant estava numa época em que nem todos tinham acesso à informação como temos hoje e criar os pressupostos da história seriam necessários para que ela tivesse a eficácia desejada.

Maupassant trabalha muito bem com o medo do oculto, do não-revelado, o não-dito. Penso que nisso ele se assemelha a Lovecraft e explora bem essa psicologia; embora Lovecraft explore mais o "cósmico", Maupassant faz com as coisas corriqueiras do dia, da cidade, de um quarto ou um livro, e isso achei admirável. 

Em "O Horla", por exemplo, encontramos justamente a expressão disso. O conto é realmente muito bem escrito e a gente fica a todo tempo com a incerteza permeando nossa leitura. Embora a construção seja muito boa e seja ainda o marco da literatura de Maupassant, acho que houve um lapso do editor em colocar as duas versões deste conto uma em seguida da outra. Explico.

O próprio autor gerou duas versões deste conto. Em uma é como se fosse um relato médico de um possível paciente louco, no outro são anotações de diários do próprio paciente, contando as coisas conforme elas se desenrolam. Os dois têm seu charme, mas o segundo é bem mais interessante que o primeiro, porque permite desenvolver a trama com parcimônia e a partir do ponto de vista do personagem principal. 

Dessa forma, quando lemos a primeira versão e logo depois a segunda (tal como está disposto no livro) somos roubados um pouco do suspense, uma vez que já sabemos o que vai acontecer. Talvez omitir a primeira versão tivesse sido ainda mais eficaz, porém compreendo a intenção do editor de apresentar ao leitor as duas versões do Horla. Porém, mais uma vez, logo em seguida, a primeira leitura spoila demais a segunda. E a segunda, repito, é bem melhor.

Não obstante, é uma leitura muito interessante, ainda que, como disse, não tenha achado nada excepcional, à parte destes que citei diretamente. É uma leitura mais do que recomendada e bem fácil de ler. Contos curtos, simples e eficazes, a essência da boa escrita literária.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Resenha - O homem de Barlovento

B. C. GARMATZ. O homem de Barlovento. Curitiba: Artes & Textos, 2013.


Mais uma vez é necessária a distinção entre o autor e sua obra. Se critico, e sei que a crítica é vital para arte, é tão somente a obra. E, olha, dessa vez não dá pra amenizar. Que obrazinha ruim. Há várias coisas que assustam na leitura, algumas tantas que o leitor mal consegue se recuperar, dá vontade de lançar o livro longe e parar de ler. Aliás, sabia que isso é algo que Stephen King recomenda? Não é pra ler coisas medianas, é pra ler coisas boas! Mas vamos lá. 

O primeiro problema, que me salta aos olhos, é o problema da grafia. Cara, há coisas e coisas. Eu que não sou da área de Letras entendo muito bem que a linguagem tem uma função primordial de comunicação. Ora, se temos um idioma escrito que permite essa comunicação, ele então que será usado. Há casos, porém, em que o texto escrito com palavras apenas não é suficiente, nesse caso usamos outros mecanismos. Aí temos a linguagem corporal, por exemplo, entonação, por aí vai. 

Na internet muito se usam os emojis ou outros sinais visíveis para expressar algumas emoções de maneira mais eficaz, especialmente num suporte em que a agilidade é o principal. Daí nós usarmos expressões do tipo: "Como assim???" ou ainda "Não acreditoooooo". Isso ocorre dessa forma porque estamos num meio que imita a fala e a letra precisa ser lida com velocidade para transmitir bem o sentido da comunicação proposta. Ok. Mas num livro, não dá pra aceitar isso sem um contexto.

Ah, se isso acontecesse num contexto de internet, seria tão bom. Se isso ocorresse apenas uma vez no texto, seria maravilhoso. Mas nada disso. Isso apenas demonstra uma incapacidade do escritor em transmitir aquilo que deveras gostaria. Primeiro que o uso excessivo desses sinais de exclamação só faz diminuir ainda o mais a utilidade dele! Paradoxal, porém verdadeiro. É como repetir uma palavra diversas vezes sem cessar até ela não fazer mais sentido nenhum e virar apenas sons. Fora isso tem erros de digitação e de soletração que simplesmente não consigo perdoar. Como assim ninguém viu essas coisas, gente? Sem esquecer das quebras de parágrafo mais estranhas e incongruentes que já vi.

Por outro lado, o excesso de descrições prolixas é exasperante. Há muito "show" (mas muito mesmo) e pouco "tell". Em diversos momentos as coisas poderiam ser mais diretas, construídas de maneiras mais interessantes. O que vejo, porém, é ainda a mesma técnica de "relato" por trás de tudo, assim como vi nos outros textos desse autor. A história de amor no livro, por exemplo, não é construída, mas simplesmente relatada ao leitor. 

Ah, e os diálogos, oh boy. Não consigo ouvir duas pessoas conversando do jeito que está escrito. Há em muitos momentos um formalismo exacerbado que se usa mal com seu chefe, em outros há diálogos fúteis, sem contribuição para o enredo da história. Isso somado ao caráter enciclopédico (wikipédico?) de alguns parágrafos é de dar ganas de parar de ler. E o que dizer dos relatos de viagem mal contados? Quanta riqueza narrativa perdida em páginas, podendo descrever e recriar o cenário venezuelano que eu mesmo já visitei tantas vezes.

Isso sem falar no pior do livro (pois é, tem mais): nada acontece. Quer dizer, até acontece, né? Mas demora pelo menos 85 páginas, e ainda assim se resume a uns dois parágrafos. E continua acontecendo mas meio de canto de olho sabe?, como se fosse algo pra ficar em segundo plano. Sinceramente, o livro de história de Ensino Médio retratado entre as páginas 100-107, 111-113 foi um insulto ao leitor. É só na página 147 que o livro dá uma próxima guinada e revela seu verdadeiro âmago: incitar sobre a filosofia espírita. 

Entre tantas coisas eu pergunto: por que alternar entre espanhol e português na mesma fala? Porque não se opta por um ou outro, ou apenas permeia com pequenas expressões? Só aumenta a sensação de bagunça do livro. Saca só essa impressão fenomenal na página 236 do livro, veja se identifica alguma coisa na imagem ao lado.

Olha, não é que não tem nada no livro que se aproveite. É só que ainda precisava tirar muita gordura pra deixar só o filé. E ainda teria que dar um trato nesse filé. O que o livro traz é deveras uma sensação de nostalgia para todos aqueles que já viajaram Venezuela adentro, mas isso é tudo que ele é: um relato de viagem. E bem chato ainda.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Resenha - Os Mundos de Crestomanci

JONES, Diana Wynne. Vida Encantada: Os Mundos de Crestomanci. São Paulo: Geração Editorial, 2001. 
_______. As vidas de Cristopher Chant: Os Mundos de Crestomanci. São Paulo: Geração Editorial, 2001.
_______. Os magos de Caprona: Os Mundos de Crestomanci. São Paulo: Geração Editorial, 2001.
_______. A semana dos bruxos: Os Mundos de Crestomanci. São Paulo: Geração Editoral, 2003.


"Os Mundos de Crestomanci" é uma série fantástica de livros da escritora inglesa Diana Wynne Jones. Essa mulher inspirou autoras como a própria J. K. Rowling e é a mãe do filme "O Castelo Animado" (dirigido por Hayao Miyazaki). Basta dizer que é uma autora de fantasia que conseguiu inspirar muita gente e deixou um legado magnífico. Li seus livros a primeira vez quando ainda era criança e resolvi redescobri-los por esses tempos. No Brasil nem todos os da série Mundos de Crestomanci estão publicados em português e eu mesmo só tive acesso aos quatro primeiros, sobre os quais vou falar. 

Pra começar, basta dizer que Crestomanci é o título do mais importante mago de um mundo. Este mundo está interligado a outros, geralmente numa série de 9 Mundos. A viagem entre os mundos é um dos feitos mais poderosos de Crestomanci, mas outras pessoas também o fazem (especialmente para fins ilícitos). Não obstante, Crestomanci é um mago que trabalha para o governo inglês e tem como função regular a magia dos mundos que encontra. 

Tendo essa pequena introdução em mente. Em "Vida Encantada", somos apresentados ao jovem Gato Chant, que, com a sua irmã malvada Gwendolen, veem-se no Castelo Crestomanci como aprendizes do famoso mago. Mas as coisas não são tão simples, uma vez que Gwendolen tem planos malignos e Gato não tem ideia da dimensão do seu poder. No fim, tudo era uma grande conspiração e Gato ajuda Crestomanci a manter as coisas em dia. 

Neste livros nos fascinamos com a introdução a todo esse universo de possibilidades. Onde a magia é algo comum e há diferença entre bruxos, magos, necromantes, feiticeiros e toda sorte de seres mágicos. Pra uma criança como eu, na época, foi absolutamente hipnotizador e não pude evitar a alegria em reler um livro que com certeza ajudou também a me inspirar no universo da fantasia literária. 

No livro seguinte, "As vidas de Cristopher Chant", somos apresentados à história do atual Crestomanci. Todos os fatos se dão pelo menos 25 anos antes de "Vida Encantada". Esse livro é deveras eletrizante. Somos desde o começo apresentados à habilidade de Cristopher em viajar entre os diferentes mundos com uma facilidade tamanha que ele também mal tem noção das encrencas e possibilidades que isso pode lhe dar. 

Cristopher (assim como Gato no primeiro livro), não tinha ideia da dimensão de seus poderes e quando menos espera, vê-se no centro de uma grande armadilha e tem que usar de toda sua sagacidade para conseguir escapar e impedir que o mal domine. De maneira também hipnotizadora, a autora consegue criar situações que não nos deixam em paz enquanto não descobrimos o que vai acontecer em seguida. 

"Magos de Caprona", a princípio, foi uma grande decepção para mim quando criança. Ora, pensem comigo. Nos dois primeiros livros eu sou apresentado à figura de Crestomanci, do Castelo, dos seus poderes e as possibilidades que o cercam. Só que neste livro, a autora deixa Crestomanci lá na Inglaterra e vai retratar uma história que se passa em Caprona, na Itália. Poxa! Lembro que, quando criança, não gostei desse livro.

Mas agora relendo-o com novos olhares, percebo que também é uma obra muito bem escrita e digna da série de Crestomanci. Nesta história o grande mago tem um papel apenas secundário, eu diria. Lendo hoje, eu percebo como isso foi uma sacada genial da escritora: os livros não ficam resumidos a Crestomanci. Ele certamente aparece e tem sua relevância, mas há muitas outras histórias que podem se desenrolar à parte dele. Isso é muito importante para dar consistência ao universo de possibilidades dentro da veia literária que ela criou.

Por fim, confesso que não sabia o que esperar de "A Semana dos Bruxos". Certamente eu o lera quando criança, mas, verdade seja dita, eu não lembrava de nada da história. Isso foi bom porque me deu uma impressão verdadeira da leitura, ainda que com uns resquícios de déjà vu. Algo bem interessante dessa história: ela não se passa no mesmo mundo de Crestomanci! Ela se dá em um mundo onde a magia não apenas não é comum, mas também é ilegal. 

Tudo se desenrola dentro de um internato para crianças, onde aos poucos alguns bruxos se revelam e ao final Crestomanci tem que aparecer para resolver a situação inteira. O que achei mais interessante desse livro: há uma personagem chamada Dulcinea Wilkes, descendente de uma poderosa arquibruxa. Essa menina é tímida, não se encaixa bem na escola, tem dificuldade de fazer amigos. No final do livro (pequeno spoiler alert aqui) ela vai deixar de ser bruxa, mas não tem problema, porque ela descobre que gosta muito de escrever sobre diversas coisas, sobre magia, sobre mundos... Quando tudo acaba ela se descobre num mundo sem magia, mas ainda com uma capacidade inata de escrever sobre ela. Dulcinea Wilkes... Diana Wynne... 


Esta é a capa do livro que ainda não li, mas que ainda vou arranjar para ler. Diana Wynne Jones é realmente um marco para toda essa literatura que gira em torno de feitiços, bruxos e tudo o mais. Os livros da série Crestomanci são absolutamente obrigatórios para os apreciadores desta linha de publicação. 

Por outro lado, ouso fazer pelo menos duas críticas: no terceiro livro em peso e um pouco no quarto livro há um excesso da expressão "de um modo ou de outro". Não, pera aí. Esse termo é uma falta de descrição sem tamanho, que não cabe pra uma escritora como Jones. É quase uma preguiça ou incapacidade de explicar as coisas direito (espero que não tenha sido culpa do tradutor também, mas acho que não). Esse aí foi um pecado difícil de deixar passar (risos). 

Outra coisa que menciono, que nem é tanto crítica, é a presença do esoterismo como explicação para tudo. Os bruxos, magos, feiticeiros trabalham com cristais, encantamentos, tintas mágicas, criaturas misteriosas, ingredientes para poções, etc. Esse foco no esoterismo cria uma aura (por falta de expressão melhor) em torno de todos os livros que não me agradou tanto. 

Por fim, é muito bom que em todos os livros os personagens principais são crianças, na transição entre pré e a adolescência. Em quase todos os casos, elas não têm noção de seus poderes e são atraídas por armadilhas ou conspirações e se metem em enrascadas. Ah! Também é notório o fascínio da escritora por gatos. À exceção do quarto livro, em todos os outros os bichanos aparecem e não são tão acessórios à história quanto alguém poderia imaginar. 

Por fim, Os Mundos de Crestomanci é uma leitura mais do que recomendada. Se nos três primeiros livros não pude deixar de ser tomado pela adrenalina das coisas acontecendo e a curiosidade do desenrolar delas, no quarto livro não pude evitar emocionar-me com o final dele, apontando para uma realidade tão próxima a qualquer um de nós. Que beleza de livros! Jones já se foi, mas deixou um excelente legado para várias gerações de leitores e escritores ao acaso que ainda virão. 

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Resenha - Grito de alerta

JUNGES, João Euclides; DANIEL VELHO, Édison Eroquês. Grito de alerta. Boa Vista: MGM, 2017.


Este livro representou um desafio pra mim. Não pelo conteúdo ou a escrita, mas pelo simples fato de que conheço os autores. Tive que refletir bastante sobre fazer uma resenha de gente que conheço. Especialmente porque não necessariamente vou falar bem do livro. Isso tem que ser livre! A crítica vem para o bem da arte. Jamais falei mal da pessoa de algum autor, mas critico sem medo a técnica, vocabulário, seja o que for – qualquer coisa que eu não goste.

Mas dá pra fazer isso falando de alguém que conheço? Especialmente quando sei do trabalho e do empenho que esses autores tiveram pra fazer esse livro? Poxa. Dá pena. Mas porque dá pena? Pelo simples fato de que não gostamos de ouvir a verdade às vezes. A crítica tem que existir, pelo bem da arte. Aí depois disso tudo me toquei que meu blog é só uma piaba num Rio Amazonas de gente muito mais experiente e que é levada mais a sério. Então eu pensei: "Ah, que se lasque" (risos).

Esse livro tem um propósito social. Isso tem que ser destacado desde o começo, porque é o que vai nortear o livro como um todo. O propósito dele é fazer uma campanha de conscientização contra o suicídio. Para alcançar esse objetivo, os autores reúnem uma série de relatos de histórias de pessoas que passaram por isso e superaram, com direito a um poema perdido no meio do livro.

Acho que, no fundo, eu não gostei do livro por causa da expectativa. Eu sabia que o livro tinha esse propósito, mas não esperava que ele fosse fazer isso como se fosse uma roda de conversa. Pensava que o tema seria trazido por meio de contos, não meros relatos, que muitas vezes beiram as crônicas ou ensaios. Digo isso porque em alguns momentos não há narrativa, o texto é quase de autoajuda.

Novamente: questão de expectativa. O livro reúne uma série de relatos (que não chamo de contos) e muitos deles não achei interessantes. Cada história é uma história, mas como o autor vai passar isso ao leitor é que faz a diferença. Por exemplo: tanto no texto Viajante Solitário quanto o que fala do cachorro, em vários momentos o texto é excessivamente enciclopédico. Esse tipo de informação eu coloco no Google, uai, de graça. Além disso, o texto O beijo da dependência química nada mais é que uma resenha de outro livro! E nem é dos mesmos autores. Não acho que isso é texto para se compor antologia, é algo a se postar no Facebook. 

Várias introduções de textos podem ser retiradas, deixaria o texto mais denso e envolveria melhor o leitor. Falando nisso, penso que algumas dessas histórias poderiam ser melhor aproveitadas. O último conto, por exemplo, é absolutamente lindo! Mas é um desperdício (por falta de palavra melhor) deixar ele no fim do livro. Ele teria que ser um livro por si. E seria lindo, maravilhoso, ao estilo Um lugar ao sol de Érico Veríssimo. A história (que é real!) tem altos e baixos bonitos de se ler. 

O trabalho de revisão também deixou a desejar. Há diversos erros de grafia crassos como "skipe" e algumas construções infelizes, por exemplo: "elo de ligação", "literalmente, para o fundo do poço"; pontuações estranhas também se fazem presentes como o uso desnecessário de três pontos de exclamação em seguida (!!!) – esse uso exacerbado faz com que o sinal perca sua eficácia; além dele, há uma inversão de ponto de exclamação com interrogação (!? em vez de ?!).

Mas falando de editoração e revisão, o que mais mata mesmo é ler o livro com aquele espaçamento. Nossa, poderia pelo menos ter aumentado um pouco o espaço entrelinhas. A leitura fica cansativa, algumas vezes até me perdi nas linhas e tive que voltar pra acertar. O trabalho da MGM Gráfica foi triste. É ruim falar isso, porque os autores até têm um conto muito bonito sobre os donos da empresa – mas mesmo assim não dá pra perdoar esse espaçamento, temos que defender a verdade.

A capa e a contracapa poderiam ser um pouco mais felizes. Na capa há uma foto da Praça das Águas (até que vai, embora não tenha tanto a ver), mas na contracapa uma figura obscura contra uma janela embaçada? Nossa, isso foi de matar. O livro é de terror ou pra prevenir o suicídio? Achei bem infeliz essa escolha. 

Só que nem tudo na vida são os espinhos: junto a eles estão belas flores. O conto do aposentado, mesmo com alguns problemas, é muito envolvente, a gente se sente realmente na pele do personagem. Agora, o primeiro conto, o que foi aquilo? Foi tão lindo, mas tão lindo, que tinha que parar no meio pra segurar as lágrimas. A escrita não é só envolvente, mas a gente sente a tristeza, o senso de perdição do personagem que – talvez uma das principais razões pra gostar do conto – é o próprio autor. 

Talvez tê-lo colocado no começo do livro não tenha sido a melhor escolha, porque ele é tão bom que depois dele tudo sofre em comparação, é um decrescendo. Por outro lado, entendo que ele introduz a temática do livro. Não obstante, talvez desse pra inverter algumas coisas e esse conto deveria fechar o livro, ou pelo menos a primeira parte dele. 

No fundo, é como eu disse: o livro cumpre um propósito social, não literário. Além disso, tem muito a questão da expectativa junto. Dá uma coisa ruim falar essas coisas, porque os próprios autores foram os revisores, seus amigos foram os diagramadores, o livro é todo fruto de colaboração, num universo triste e árido que é a publicação literária, especialmente em Roraima. Tudo que falo não é para criticar os autores, mas sim o trabalho deles, não com vistas a denegrir, mas para fazer crescer a nossa boa arte roraimense.

Esses homens já têm inspirado a muitas pessoas (jovens, adultos, crianças, mulheres, homens) e o trabalho deles, ainda que não perfeito literariamente (Ah! E quem sou eu pra dizer algo assim?), tem cumprido sua função social de alertar quanto aos perigos da depressão e suicídio, numa sociedade que cada vez mais negligencia esses perigos. Só por isso, já são homens dignos de honra.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Resenha - O vampiro de Curitiba

TREVISAN, Dalton. O vampiro de Curitiba. Rio de Janeiro: Record, 1997.


Mas que droga de livro, hein? Este é um compilado de 15 contos sobre o "Vampiro de Curitiba". Pra falar bem a verdade talvez a culpa tenha sido minha de criar expectativa sobre o "vampiro", que não tem nada de vampiro. A única similaridade com a criação de Stoker é a sedução de mulheres. Sobre o que é o livro, então? Sobre Curitiba? Nem isso sei.

Na sequência de 15 contos, nos deparamos com o jovem "Nelsinho", que é descrito em 15 aventuras amorosas diferentes ("amorosas" é ser gentil, a palavra que deveria usar era "sexuais" mesmo). Nestas aventuras, Nelsinho, que parece um adolescente cheio de hormônios incontroláveis, depara-se com uma série de moças e tenta conquistar todas elas. Algumas ele consegue, e se desenrolam algumas cenas meio quentes, mas que (para mim) não levam a lugar algum, senão ao próprio ato da conquista. Algumas ele não conquista, mas não significa que não haja ato sexual na história.

Isso é meio tenso na história. Teve mais de um caso de abuso e o que mais chocou foi o conto "Debaixo da Ponte Preta". Percebi que a ideia do autor foi de realmente causar o choque, de uma sociedade que muitas vezes vê a mulher apenas como objeto sexual. Este conto ainda tem um diferencial, que mostra o mesmo acontecimento sob o ponto de vista de diversos personagens. Foi uma sacada narrativa interessante. Apenas alguns minutos de ação descritos de diversos pontos.

Falando sobre narração, porém, não posso negar que o cara escreve bem. Há um equilíbrio entre narração, descrição e diálogo (o tripé da boa escrita, segundo Stephen King). Os diálogos também são bem construídos e verossímeis. Confesso que por não estar ainda tão ligado nesse tal de discurso indireto, às vezes me confundo na leitura e acho complicado desnecessariamente. 

Por outro lado não entendo alguns leitores condenando quem usa aspas para indicar falas (como em: "Eu vou", ela disse) enquanto Trevisan não tá nem aí e coloca falas misturadas com a narração, bem no meio do parágrafo, indicando-as com itálico. Mas seu estilo ainda é o clássico mesmo, de travessão, parágrafos e tudo o mais.

A edição é muito bonita e bem trabalhada. Record ficou de parabéns, a capa dura com contrastes dourados achei de qualidade bem especial. Soubesse eu o conteúdo do livro com antecedência, não teria pago os trinta contos que paguei. Não sei se esses escritores contemporâneos são meio estranhos de ler ou eu que tenho problemas com eles. São poucos os que me agradam. C'est la vie.

sábado, 20 de outubro de 2018

Resenha - Ciência Maluca

CASTRO, Carol. Ciência maluca. São Paulo: Abril, 2015.


Esse foi um livro bem diferente. Depois de ler clássicos do terror, um pouco de literatura contemporânea, navegar pela literatura que fala sobre escrever e aprender tanto... resolvi pegar um livro de... como classificar isso? É daqueles livros que a gente lê só pra matar a curiosidade sabe? Porque, no fundo, é um livro sobre curiosidades. Não necessariamente sobre ciência.

A proposta não deixa de ser boa: reunir curiosidades sobre experimentos científicos e descobertas malucas (como aquelas do prêmio IG Nobel). A linguagem é bem despojada e jovial, algumas vezes até chula (especialmente na parte que fala sobre sexo), mas a leitura é muito fluida, com uma linguagem de revistas jornalísticas mesmo. 

O livro fala de laboratórios, experimentos com animais (incluindo o macabro experimento de manter uma cabeça de animal viva sem corpo), vampiros, corpo humano e comportamento humano, até amor e Deus entraram na salada. Os assuntos são bem variados, o que torna o livro ainda mais interessante, numa leitura que não cansa. 

Vale ainda citar que quando a autora fala algo como "cientistas estudaram que...", ela faz a grande gentileza e honestidade intelectual de referenciar. Então, ao final do livro, há todos os estudos citados, com local de publicação, ano e tudo o mais. Só isso já deu uma credibilidade enorme pro livro e deu ainda mais gosto em aprender o que está lá.

Porém, como tudo na ciência, tem muita coisa questionável no livro. Isso me preocupa, sabe? Passa muitas coisas como verdade, porque houve estudos científicos por trás, porém há falácias e estudos, no mínimo, duvidosos. Aponto uma falácia, por exemplo: foram realizados estudos nos EUA demonstrando que Coca-Cola e Pepsi são a mesma coisa. Sim. 

Eles pegaram voluntários e colocaram numa sala pra beber de diversos copos com refrigerante da cor escura. Ao final eles tinham que dizer qual era Coca e qual era Pepsi. Os acertos eram ínfimos, ninguém sabia realmente diferenciar. Qual a falácia disso? Eles partiram do pressuposto que Coca e Pepsi têm a mesma concentração de fórmula em qualquer lugar do mundo. E isso eu sei por fato que não é verdade. A Coca nos EUA tem um teor de glicose menor que a nossa. Tanto é que muitos dos meus amigos lá gostavam de comprar Coca do México, porque ela é mais doce. Pressupostos falsos.

Além disso, são citados estudos sobre comportamento humano realizados na década de 1970! Aí pra tentar reforçar a ideia e mostrar como são reais, a autora cita outros estudos realizados nos anos 90! Gente do céu. Isso é, no mínimo, duvidoso. Depois dos anos 90 houve transformações tão profundas no mundo e na forma das pessoas se comportarem (queda do muro de Berlim, crises financeiras, surgimento da internet, computador, 11 de Setembro, guerras, tanta coisa!) que fica difícil dar credibilidade para afirmativas oriundas desses estudos e dadas como verdades.

E, claro, o livro ataca a ideia da existência de Deus e coloca tantos pressupostos embutidos na parte que fala sobre religião que dá até agonia. Argumentos bem fraquinhos mesmo, que no meu outro blog dava pra desconstruir. Tudo bem, a autora escreve o que quer. Só assusta pensar que muitos lerão isso e terão como verdade simplesmente pela falta do senso crítico. Penso que o trabalho de livros como esse deveria ser "in" não desinformar.

Por fim, foi com tristeza que encontrei ainda alguns erros de grafia soltos no livro e outros de espaçamento. Poxa, uma editora tradicional como essa não poderia ter deixado passar essas coisas. Achei ruim porque já foi o segundo livro contemporâneo (esse é de 2015 e o de Lovecraft é de 2018) que veio com essas edições furadas. 

Não obstante, é uma leitura muito divertida. Algumas seções para que foram feitas pra gente levar o livro pro banheiro e ler entre um movimento peristáltico e outro, haha. Isso, no meu ponto de vista, não torna o livro ruim, só dá uma nova perspectiva. Acho que precisamos de leituras assim também, nem tudo pode ser tão sério. A vida se vive também nos detalhes, não só nos grandes momentos.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Resenha - H. P. Lovecraft (três livros)

LOVECRAFT, H. P. A cor que caiu do céu. São Paulo: PandorgA, 2018.
________. Sussurros na escuridão. São Paulo: PandorgA, 2018.
________. O chamado de Cthulhu e outros contos. São Paulo: PandorgA, 2018


Então. Encontrei essa coleção a módicos R$ 10,00 por livro e resolvi investir. Estava na hora de ler um clássico do terror, embora eu mesmo tenha escrito apenas um conto nesse estilo. Já havia ouvido falar de Lovecraft, claro, por conta do Cthulhu (ainda que não tivesse a menor ideia do que era esse bicho), mas não conhecia de fato a obra do autor. Vou comentar primeiro dos livros, depois das edições e por fim um comentário geral sobre o autor.

O primeiro que li foi A cor que caiu do céu. Além do conto que dá título ao livro, também há dois contos: Ele e Horror em Red Hook. De cara o primeiro conto me bateu com força porque na hora percebi a influência de Lovecraft nos dias atuais: a história é basicamente a mesma do filme "Aniquilação", e eu gostei muito desse filme! Fala de um horror biológico e ao mesmo tempo não natural que permeia uma cidade nos EUA. 

Sussurros na escuridão, por sua vez, traz um horror vintage, com troca de cartas entre os personagens principais e com direito a registros fonográficos, fotografias antigas, tudo parte de uma trama que deixa a gente tenso do começo ao fim. Porém, creio que Lovecraft cometeu um erro (olha que ousadia!) porque lá no final a gente vê o personagem principal cometer aqueles erros que só se faz em filme de terror. Tipo quando o cara ouve um som do lado de fora da cabana isolada e resolve ir lá pra ver o que é, sabe? Aquele tipo de momento que a plateia fica "Tem mais é que morrer mesmo". 

Pois é, Lovecraft fez isso e me deu foi raiva. No caso dessa história, não sei se Lovecraft escreveu pra ser um conto ou noveleta, mas facilmente funciona como romance mesmo. São 123 páginas de enredo bem construído, paulatino, criando tensão e agonia no leitor. Não fosse por esse final, estaria perdoado todo o livro.

Deixei por último pra ler O chamado de Cthulhu e outros contos justamente porque sabia que aí estava um dos contos mais famosos de Lovecraft. E de fato, vale cada palavra. O conto é sensacional e muito bem escrito. É fantástico como ele consegue em tão pouco espaço (porque o conto não é grande) transmitir tamanha construção e enredo sólido. Isso é algo que contemporaneamente só vi acontecer em Jorge Luis Borges. Além deste poderoso conto, o livro ainda conta com outros cinco, dentre os quais destaco Dagon, o conto que alavancou a carreira de Lovecraft.

Falando da edição agora, a editora PandorgA fez um excelente trabalho gráfico no livro. Não só a capa, mas as divisões internas com páginas escuras, a minibiografia do autor no final de cada livro, a preocupação estética foi excelente. Porém, pecou na qualidade editorial, per si. Vou postar apenas uma das várias falhas que encontrei, e (o pior!) justo no livro do Chtulhu. Na imagem ao lado vocês podem verificar a divisão silábica. Infelizmente, além deste, encontrei erros de espaçamento e grafia (não me refiro a typo, mas sim palavras que não fazem o menor sentido na frase).

Por fim, Lovecraft não tem a fama que tem à toa. Ele realmente é um mestre do terror. Suas histórias são todas ambientadas no seu país de origem, os Estados Unidos do começo do século XX e final do XIX. Seu estilo, como ele mesmo classifica, é o "horror cósmico". As histórias de Lovecraft não são sobre vampiros, monstros (não são, mesmo tendo o Cthulhu) ou assombrações, as histórias deles são sobre horrores que desafiam a realidade, que não fazem sentido e levam à loucura pelo mero conhecimento delas. Esse tipo de horror é explorado em todos seus escritos. E muito bem.

Porém, há algo que fica claro em Lovecraft: racismo e preconceito. Em muitos dos seus contos a origem das coisas horrendas está em pessoas, que ele mesmo chama, de "mestiços", "escuros", "manchados pelo pecado", "provindos da Ásia", "árabes". Aliás, é dito que Lovecraft mudou-se de certa cidade apenas porque lá havia muitos destes tipos. 

Nos livros, em vários momentos ele deixa a entender que negros não são capazes de pensamento complexo, sendo quase animalescos e muitos dos horrores que ele descreve tem origem na África ou na Ásia. Não obstante, precisamos ver o contexto em que esse escritor estava. Ainda que não justifique de maneira alguma, lemos seus textos com olhos críticos, sabendo que era alguém cegado, em partes também, por um contexto de racismo institucionalizado e tido como natural. 

Mesmo assim, permanece a patente de mestre e recomendo absolutamente a leitura desse mizerávi que consegue criar uma atmosfera de tensão tão grande que a gente fica se contorcendo pensando "Desembucha, homi!", mas ele faz isso de maneira tão simples e colossal ao mesmo tempo que não temos outra opção senão dar-lhe a patente de gênio e ficarmos assombrados com isso.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Dois microcontos ao acaso

I

Reunião da Diretoria do Inep. Tensão na sala. O Diretor inicia:

– É o seguinte, pessoal, temos que pensar em alguma coisa pra esse ano. Os memes estão ficando batidos, as pessoas perdendo o interesse. A gente tem que bolar um jeito de tornar o Enem ainda mais propício a memes!
– Mas, chefe! Será que dá pra fazer isso? 

O silêncio na sala. Uma representação não audível da dúvida que perpassava a todos: como tornar um evento já tão memético ainda mais? Será que isso era possível?
No fundo da sala, a estagiária ajeita os óculos e levanta a mão:

– É... eu... eu acho que tive uma ideia.

No dia seguinte vem a notícia.


Microconto publicado no Facebook em 30/09/2018
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II

Foi uma experiência inovadora. Um amigo nos convidou para visitarmos seu castelo mental. O George também achou estranho, mas topamos o convite.

Em pouco tempo estávamos na sala de compartilhamento mental. Encontramos o Bruno lá e ele disse:
– E ae! É por aqui.

Eu e o George nos entreolhamos, mas o seguimos, em direção a um precipício. Ele pulou e pulamos logo em seguida. Caímos numa poça d'água, como se tivéssemos descido apenas um pequeno degrau. E lá estava o Palácio mental dele.

Um conjunto de pedras irregulares compunham a parede do palácio, que muito se assemelhava a um monastério, mas entulhado de geringonças tecnológicas, piscando e emitindo ruídos estranhos. Eu e o George pensamos: como diabos passaríamos por ali até chegar ao Palácio?

Bruno pareceu ler nossa mente:
– É fácil! Só pular aqui, escalar esse scarabuncho, dar um salto mortal pra chegar na antena, executar um golpe de jiujitsu nessa barra de metal, que aí ela cede, vira uma ponte, aí a gente se joga por aqui, pra não cair no lago de lava e... pronto! Chegamos.

Enquanto ele falava executou tudo que disse e estava na porta do Palácio mental. Eu e o George tentamos repetir os feitos pra chegar lá. Digamos que se não estivéssemos no universo mental, teríamos um braço a menos, olhos, orelhas e pernas inutilizáveis, mas chegamos.

Ao abrir a porta do castelo (duas grandes asas de borboleta que fizeram eu e o George nos entreolharmos e levantar as sobrancelhas), entramos num pequeno quarto, com uma escrivaninha, cama e criado mudo. Tudo estava limpo e impecável. Eu e o George olhamos ao redor e balançamos as cabeças em aprovação. Então o Bruno disse:
– Que droga! Olha essa bagunça! Não consigo encontrar nada! Espera que vou resolver isso.

Num movimento rápido do corpo, Bruno tomou forma de um ciclone. As gavetas da escrivaninha se abriram, revelando papéis, nuvens de chuva, alguns personagens de quadrinhos vivos que começaram a gritar. De baixo da cama surge um policial rabugento ("Me deixa dormir, seu peste!"), os lençóis da cama vão parar no ventilador no teto, debaixo do travesseiro vê-se um enorme baú cheio de cartas de Magic. 

Bruno volta à sua forma normal e diz, satisfeito:
– Ah! Agora sim! – ele dá uma pausa. Olha para os lados, coça a cabeça. – Pessoal... o que é que eu ia mostrar pra vocês mesmo?

Eu e o George nos entreolhamos.


Microconto publicado no Facebook em 03/10/2018

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Resenha - A jornada do escritor V

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.



OS ESTÁGIOS DA JORNADA
Estágios 9 ao 12

#Estágio Nove: Recompensa

  • Depois que os Heróis conquistam a vitória → ganham a sua Recompensa
    • É natural que queiram festejar 
    • É preciso refazer as forças para a jornada de retorno
      • Nesse ponto é comum haver uma "cena da fogueira" → trocar histórias, relaxar
      • Esse tipo de cena é importante pro leitor se recompor depois de tanta emoção com o estágio anterior → conhece-se melhor os personagens
    • Pode haver aqui também uma cena de amor
  • Vogler chama esse estágio de Apanhando a Espada → ele acredita que é a atitude ativa do Herói que faz a diferença nesse momento
    • Campbell chama de "Benção Final" → é quando o Herói consegue aquilo que estava buscando
      • Em alguns casos, o Herói consegue isso apenas roubando 
      • Isso é mais ou menos comum → dificilmente o Herói conseguiria o tesouro sem que precisasse roubar (pense em Indiana Jones roubando o tesouro da caverna)
  • Os Heróis emergem mudados da Provação → Campbell chama de iniciação
    • Eles podem entrar em uma nova classe, categoria 
      • O Herói ganha uma nova percepção ou poderes 
      • Pode até ser mudança de comportamento
    • Mas eles também podem ter uma distorção de percepção → ficam cheios de si
      • Eles ficam perto do limite entre Herói e Vilão
      • Eles podem também ignorar que tenha havido alguma mudança
  • Perguntas da seção
    • O que o Herói aprendeu após observar a morte?
    • Qual a Recompensa que seu Herói conseguiu? Qual foi a consequência da posse disso?
    • Sua história muda de direção? Há alguma cena de amor?
    • Seu Herói percebe alguma mudança? Ele tem uma nova percepção?

#Estágio Dez: O Caminho de Volta
  • Nesse ponto o Herói tem que escolher → voltar ao Mundo Comum ou permanecer no Especial
    • São poucos os Heróis que decidem ficar
    • Nesse ponto da história, ela volta a ficar mais enérgica
      • É quando o Herói volta ao Mundo Comum para aplicar o que aprendeu no Mundo Especial
  • Quando os Heróis tomam o Caminho de volta → estão se lançando de novo na aventura
    • Isso pode ser voluntário ou motivado por alguma força externa
    • Aqui é possível haver uma transição de Limiar → com seu Guardião
      • Pode ser uma fuga → traz uma nova crise à jornada
      • No caso do roubo da Recompensa, por exemplo → alguém pode tentar reavê-la
  • Aqui há sempre a possibilidade da retaliação
    • As Sombras que não morreram voltam mais fortes ainda
      • Nesse ponto é útil que a Sombra consiga dar um golpe duro no Herói → inclusive matando um de seus Aliados, por exemplo
      • Em casos atípicos → o Herói pode ser perseguido por admiradores
    • As Sombras podem não estar mortas na história, mas presas → aqui elas escapam
  • Nesse estágio dos contos de fada → pode haver o voo mágico
    • Um objeto ou Aliado que ajuda o Herói a escapar
      • Muitas vezes, na fuga, o Herói pode deixar alguma coisa pra trás
      • Em alguns casos, jogam fora até o tesouro para garantir a vida
  • É importante haver obstáculos no Caminho de Volta
    • O Herói sai da euforia da vitória e volta ao mundo real → vai gerar nova tensão, para um novo clímax
  • Perguntas da seção
    • Como seu Herói decide voltar?
    • Qual o Caminho de Volta na sua história: o Mundo Comum, o Especial, ou outra via?
    • Há perseguição ou aceleração nesse estágio da sua história?

#Estágio Onze: Ressurreição
  • Esse é um dos estágios mais difíceis de escrever → para completar a jornada, o leitor tem que experimentar ainda outro momento de morrer-renascer
    • Esse é o grande clímax → o teste final do Herói ante a morte
      • O diferencial aqui é explicitar no Herói alguma mudança e não só descrevê-la
      • É um teste para ver se o Herói aprendeu mesmo → é a última chance dele conseguir realmente mudar se ainda não o fez
    • Tem que ficar claro que o Herói pode morrer novamente]
      • Lembrando que para o Herói renascer → ele tem que sacrificar alguma coisa
      • Um clímax ideal testaria tudo que o Herói aprendeu durante a jornada, com os mais diversos Aliados ou Inimigos
    • Via de regra os Heróis vencem e o Vilão morre → uma boa sacada, porém, é fazer o Herói cometer um erro logo antes de dar o golpe final, por exemplo
  • Há um truque que muitos usam para mostrar que o Herói renasceu → mudar a aparência
  • Alerta de Vogler → nesse ponto, parece óbvio que é o Herói que tem que ser a parte ativa da história, fazendo a diferença
    • Porém muitos escritores fazem do Herói um agente passivo → trazem Aliados ou outras situações para salvar o Herói da morte
      • Ele não condena que o auxílio venha → mas que a ação principal seja do Herói
  • Nesse ponto o escritor pode colocar o Herói diante de uma escolha difícil 
    • Pra ver se ele realmente aprendeu 
    • A escolha pode ser romântica também
  • Apesar de ser o clímax → ele não precisa ser explosivo
    • Há possibilidade de clímax tranquilo → seguido de onda de emoção
    • É possível até fazer clímax sucessivos → porém o melhor é que seja um
  • O clímax tem que trazer liberação de emoção → gargalhadas e lágrimas são o meio mais efetivo
    • Isso alivia a ansiedade do escritor e permite se expressar melhor as emoções
  • Aqui se completa o arco de personagem do Herói
    • Um erro comum é que os escritores desenvolvam o Herói de maneira abrupta, sem respeitar os diferentes estágios
    • O Arco do Personagem → pode ser visto em paralelo aos 12 estágios da Jornada
      • Consciência limitada do problema → aumento da consciência → relutância em mudar → superando a relutância → compromisso com a mudança
      • Experimentando a primeira mudança → preparando-se para uma grande mudança → testando a grande mudança 
      • Consequências da tentativa → nova dedicação à mudança → tentativa final de grande mudança → domínio final do problema
  • No retorno ao Mundo Comum → pode haver um falso pretendente
    • Alguém que questiona as credenciais do Herói
      • Por isso o Herói apresenta provas de sua jornada
      • Em alguns casos ele não tem → o que vale foi sua experiência e muitas vezes a pessoa tem que ir no Mundo Especial para experimentar
  • Perguntas da seção
    • Que características negativas seu Herói adquiriu? Quais dessas falhas você acha que deveriam ser preservadas nele?
    • Qual a provação final do seu Herói? Como ele ressurge?
    • Há necessidade de embate físico na sua história?
    • Seu personagem apresenta mudanças graduais, respeitando o arco de personagem?
    • Quando Herói morre ou não aprende suas lições, quem aprende alguma coisa?

#Estágio Doze: O Retorno com o Elixir
  • Os Heróis retornam ao Mundo Comum com algo especial que trouxeram da Jornada → significa introduzir mudanças na vida cotidiana
    • Pode ser chamado denouement (desatamento, desenlace, desfecho) 
      • O escritor tem que tomar cuidado para que, ao tentar desatar os nós da trama, não se enrole com eles
      • É importante cuidar dos enredos secundários → o Retorno pode até suscitar novas questões, mas antigas tem que ser trazidas
    • Ao desatar os nós → efetua-se a distribuição de recompensas e castigos
      • Vilões são punidos e Heróis são recompensados
      • Em ambos os casos deve ser proporcional aos atos dos personagens
  • Duas maneiras de concluir a Jornada
    • Final circular → mais comum na cultura ocidental
      • O Herói retornar ao ponto de partida → oportunidade de comparação
      • Dá uma ideia de conquista ou superação → muitos escritores retratam isso com um casamento no final
    • Final aberto → mais comum na cultura oriental
      • Os defensores dessa abordagem dizem que o final fica a cargo do leitor
      • Especialmente porque algumas questões realmente não têm respostas
      • O final aberto é ideal para histórias mais sofisticadas
  • O Retorno tem funções importantes → ele se parece com a Recompensa
    • Mas nesse caso → é a última chance de trazer emoções ao leitor
    • Ele não pode ser muito arrumado → tem que ter ainda alguma surpresa
      • Essa surpresa não precisa ser boa → pode revelar um desvio oculto
  • Mas é preciso ter cuidado ao escrever o Retorno 
    • Problemas → muito abrupto ou prolongado / sem surpresas
      • Quando é muito abrupto → o leitor não tem tempo de se recompor depois do clímax → não há conclusões satisfatórias
    • Também não pode haver excesso de finais → o escritor sem saber qual o final correto, acaba escrevendo vários
    • É importante que no final o escritor não saia do foco da história
      • Mesmo que seja interessante deixar algum gostinho de desconhecido no final
  • O Elixir também pode ter diferentes significados
    • Pode ser o amor, a sabedoria, uma nova visão de responsabilidade
    • Pode ser um elixir de tragédia → quando o Herói morre, quem aprende é o leitor
      • É possível que o Herói não aprenda com seus erros → ele se condena a repetir as mesmas coisas até que aprenda sua lição
  • Epílogo → não é obrigatório 
    • Mas pode complementar a história → geralmente falando de algo no futuro dos personagens
  • Perguntas da seção
    • Qual Elixir seu Herói traz da experiência?
    • Seu Retorno está muito abrupto ou prolongado?
    • De que maneira seu Herói foi transformado?
    • A sua história vale a pena ser contada?

CONCLUSÃO

Uau! Deveras foi muita informação aí. Ao final do livro, Vogler falou aquilo que também defendi: a Jornada do Herói, ao final, é uma sugestão. A boa história não estará garantido só porque seguiu o padrão. Aliás, o ideal é que nem todas as histórias apresentem todas as etapas da Jornada: quem dita a estrutura é a história, não as regras.

Uma ideia interessante pra uso da Jornada do Herói é aplicar ela na sua história depois que você escreveu pra encontrar os pontos fracos dela. Gostei da ideia de Vogler que o ideal é a gente aprender a Jornada do Herói pra depois esquecer. A gente usa como um mapa: na hora que não soubermos o caminho, consultamos. Mas a viagem não é seguir o mapa, é aproveitar a experiência.

Uma regra básica: qualquer elemento da Jornada pode aparecer em qualquer momento da história. Há até a possibilidade do escritor desenvolver cenas que não se encaixam em nenhum dos 12 estágios padrão, adaptando a estrutura da Jornada às suas necessidades.

Vogler termina seu livro analisando filmes como Titanic e Rei Leão, aplicando sobre eles a Jornada do Herói. São análises muito boas, especialmente porque ele trabalhou na formulação de filmes da Disney. Sabe a cena do Rafiki levantando o Simba na pedra em Rei Leão? Foi ele que pensou nela. Realmente há muito o que aprender com Vogler. Mas penso, e creio que ele concordaria comigo, que o verdadeiro aprendizado só acontecerá quando trilharmos a nossa Jornada do Escritor. 

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Resenha - A jornada do escritor IV

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.



OS ESTÁGIOS DA JORNADA
Estágios 5 ao 8

#Estágio Cinco: Travessia do Primeiro Limiar

  • O momento fatídico que separa o Herói em "antes" e "depois" é a Travessia do Primeiro Limiar
    • Via de regra é uma escolha consciente do Herói
    • Normalmente o Herói não aceita os conselhos e presentes do Mentor pra se jogar de bom grado numa aventura
      • O que acontece é que há um turning point, alguma força externa ou acontecimento que marca definitivamente a necessidade de atravessar o Limiar
      • Verdade seja dita que alguns Heróis são lançados à aventura sem muita escolha
  • Neste ponto ele deve encontrar o Guardião do Limiar
    • Via de regra isso é mais um teste para ele poder seguir em frente
    • Ou seja, não é um obstáculo fatal, mas quase uma ilusão 
  • Acontece então a travessia do Mundo Comum para o Especial
    • Nem sempre essa travessia é suave → em muitos casos o Herói despenca
    • Via de regra essa travessia se dá no fim do primeiro ato
  • Perguntas da Seção
    • O seu Herói está disposto a atravessar o Limiar? 
    • Existem forças guardando o Limiar?
    • Quais Limiares você já enfrentou na vida?
    • Na travessia, do que o Herói está abrindo mão? Isso é trazido à tona novamente?

#Estágio Seis: Testes, Aliados, Inimigos
  • Não importa quanta experiência o Herói tenha → no Mundo Especial, tudo é novo
    • As primeiras impressões do Herói tem que destacar o contraste dos Mundos
      • Isso mesmo que o ambiente físico seja o mesmo 
      • A história deve demonstrar que o Limiar foi atravessado, que as coisas são diferentes
  • Este primeiro período no Mundo Especial → testes
    • Os escritores usam esse momento pra ver como o Herói lida com desafios e provas
      • Os testes costumam ser difíceis → mas sem a qualidade de vida-ou-morte
      • Exemplo do cotidiano: Universidade → vestibular pra entrar e depois tem as provas semestrais
      • Em alguns casos os testes podem ser continuação do treino com o Mentor
    • Os testes podem fazer parte da infraestrutura do Mundo Especial
      • Por exemplo um local dominado pela Sombra → armadilhas e capangas
      • A maneira como o Herói lida com as armadilhas é parte do teste
  • É normal que, ao chegar no Mundo Especial, o Herói não saiba em quem confiar → isso também é uma espécie de teste
    • Há a possibilidade de encontrar Aliados → que podem ser companheiros também (ao estilo Sherlock e Watson)
      • Esses aliados mais próximos podem servir de alívio cômico além de assistência
      • Esses personagens podem facilmente vestir a máscara do Pícaro e vez ou outra a do Mentor também
    • Nesse contexto também podem se formar equipes 
      • Pode até ser heróis múltiplos ou um herói apoiado por várias pessoas
      • Pode haver embates pelo controle do grupo também
    • O aparecimento do Herói no Mundo Especial pode chamar atenção de inimigos
      • Pode ser tanto a Sombra quanto os seus servidores
      • Há a figura do rival → não é necessariamente inimigo do Herói, mas sempre quer vencê-lo em competição
  • No Mundo Especial, o Herói tem que aprender as regras do lugar → isso também é um teste
  • Algo interessante → porque o Herói sempre que chega no Mundo Especial vai para os saloons ou tavernas?
    • Metáfora da caça → ao sair da aldeia, os caçadores vão para um local onde tem água, para procurar caça
      • O local de beber água é um local de reunião, de encontros, de observação
      • O bar (ou equivalente) pode ser um microcosmos do Mundo Especial
      • Saloons, boates e outros semelhantes podem ser local de intriga sexual também
  • As cenas neste estágio da jornada são úteis pra que o leitor conheça melhor os personagens
  • Perguntas da seção
    • Qual a diferença do Mundo Especial e o Mundo Comum na sua história? Há contraste?
    • De que modo seu herói é testado? 
    • Ele faz Aliados/Inimigos? Há heróis sem Aliados?
    • Seu personagem faz parte de uma equipe?
    • Como seu Herói reage às regras estranhas do Mundo Especial?

#Estágio Sete: Aproximação da Caverna Oculta
  • Depois de adaptados ao Mundo Especial →  o Herói segue para o âmago dele
    • Nesse ínterim podem haver outros Limiares com seus Guardiões
    • Há certas funções nessa fase de aproximação
      • Rever planos, reorganizar o grupo (até com mudanças de arquétipos)
      • Aqui é possível elaborar melhor um alívio cômico ou romance antes do perigo 
      • Serve também pra criar um senso de urgência → redireciona a missão da equipe
    • Nem sempre a aproximação será sutil → pode haver necessidade de uso da força
  • Alguns Heróis fazem uma aproximação ousada, sem muito preparo antes
    • Heróis confiantes e decididos podem escolher esse tipo de aproximação
      • Em muitos casos, porém, é uma distração para que algum Aliado faça algo
  • De qualquer forma, é bom que o Herói vá ao acontecimento principal de maneira consciente
    • Quando se aproximam da Caverna Oculta, os Heróis devem saber que ali há perigo de morte
      • Por isso o escritor pode desenvolver aqui as complicações dramáticas → reveses desanimadores conforme o Herói se aproxima do objetivo
      • Geralmente são problemas que testam o Herói para fazê-lo seguir em frente e não desistir diante das adversidades
  • Perguntas da seção
    • Na sua história, o que acontece entre a chegada no Mundo Especial e a crise?
    • O conflito cresce ou os obstáculos ficam mais difíceis?
    • Seus Heróis já pensaram em dar meia-volta e desistir?
    • De que maneira o Herói enfrenta os perigos externos? Você está trabalhando também os conflitos internos dele?
    • A Caverna Oculta é um local físico ou emocional? Como o Herói se aproxima dela?

#Estágio Oito: Provação
  • Este é o ponto da história onde o Herói está prestes a enfrentar o temível adversário →  é o amago do que a trama estava construindo até então
    • No estágio da provação deve prevalecer a ideia → o Herói tem que morrer para poder renascer 
      • Este é o ponto alto desse estágio
      • Na maioria das histórias os Heróis parecem morrer e depois renascem
    • A ideia, porém, é que os Heróis não simplesmente sobrevivem à morte → eles voltam transformados, mudados
  • Esse estágio de provação não é o clímax, é uma crise
    • É um dos principais pontos nervosos da história → muitos fios conduzem a esse ponto e saem dele também
      • Ainda que geralmente seja o ponto alto da história → não é o momento maior dela
      • Antes de melhorar, as coisas têm que piorar
  • O padrão é que esse momento de morte-renascimento venha perto do meio da história
    • Mas isso pode variar → embora uma crise central traga uma boa estrutura de tensão
    • Pode haver retardamento da crise → mas cuidado para não criar um meio enfadonho
      • Por outro lado, esse retardo chega perto da Razão Áurea → proporção elegante de 3/5 (muito apreciada na História da Arte)
      • Isso porque deixa mais tempo para preparativos e permite construir lentamente 
    • De todo modo o segundo ato é um trecho longo da história
      • A crise no meio serve como divisor de águas 
      • Ela mostra ao Herói que tudo mudou
  • Na crise de morrer-renascer é comum a figura da testemunha
    • Algum personagem que presencia a morte do Herói e lamenta por ele 
      • Essas testemunhas representam o leitor → que se identifica com a situação
      • Isso tem a ver com a elasticidade das emoções → quanto maior a tensão, maior a euforia que virá depois
  • Em alguns casos a experiência de quase morte não acontece numa única provação → mas numa série delas
    • O que importa é que o Herói não precisa morrer → ele pode ser testemunha da morte ou até mesmo o seu causador
      • O que está em jogo é a proximidade com a morte em si → é o enfrentamento do medo 
      • Lembrando que não precisa ser algo físico → pode ser amoroso também
  • O evento mais comum na provação é o encontro com a Sombra
    • Essa Sombra pode ser tanto um vilão externo quanto interno
      • De modo geral, a Sombra representa os medos e qualidades ruins rejeitadas pelo Herói 
      • Pode ser projetada num processo de demonização
    • Essa polarização serve para testar o Herói e fazê-lo quase falhar
  • De qualquer forma, no estágio da provação, enquanto o Herói parece morrer → é o vilão que de fato morre
    • Essa morte não pode ser algo fácil, mas algo pelo qual o Herói tenha que se esforçar
    • Isso também não significa que não haverá mais Sombras para o Herói lidar
      • O mesmo vilão pode retornar ou escapar para outro enfrentamento
  • Ao falar do vilão é importante lembrar que alguns são Heróis aos seus próprios olhos
    • Um momento escuro para o Herói pode ser um de luz para a Sombra
    • O escritor deve conhecer bem a sua história a ponto de poder contá-la até do ponto de vista da Sombra → também dos Aliados e até os NPCs
  • Na mitologia clássica os Heróis enfrentam a morte mas sobrevivem graças a alguma ajuda sobrenatural obtida em algum momento da história
  • Perguntas da seção
    • Qual a provação na sua história? Ela é causada pelo vilão?
    • De que modo o vilão/antagonista é uma Sombra do Herói?
    • O poder do vilão está canalizado em subalternos ou concentrado?
    • O vilão pode ser um Pícaro ou Camaleão?
    • De que modo seu Herói enfrenta a morte nesse estágio?