quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Definha, o pobre

Dia 2.
Eu olho pra ele com carinho. Meu sorriso não está apenas nos meus lábios, está nos meus olhos. Oh! Como eu deveria ter apreciado melhor cada momento em que estive perto dele. Momentos preciosos que não voltam mais…

Dia 4. 
Infelizmente vejo o começo do fim, eu já sei o que vai acontecer, eles já me disseram. Limito-me a tentar aproveitar o pouco tempo que nos resta da melhor forma possível.

Dia 5.
Hoje foi um dia difícil pra ele, percebo que foi muito afetado, não está mais o mesmo de apenas há três dias. Eu tento descontrair, mas ele não tem mais condições de ficar saindo. Prefere ficar em casa, aproveitar a tranquilidade, as coisas simples da vida.

Dia 7.
Definha, o pobre. Mas eu olho pra trás e vejo que ele fez tudo que deveria ter feito. É, pra isso eu tenho que tirar o chapéu: ele deu conta do recado. Propunha-se a fazer algo? Cumpria. Fazia planos? Executava-os (na medida do possível, claro). Ele deveria se orgulhar do tanto que conseguiu fazer (e quanta coisa foi!), mesmo em sua condição.

Dia 10.
Hoje é o dia derradeiro. Oh! Mas foi tão rápido! Que triste agonia! A partir de hoje ele terá apenas uma sobrevida… Eu o contemplo num misto de orgulhosa e pesarosa. Eu queria muito, muito (ah! Como eu queria!) passar mais tempo com ele. Mas este é o grande destino da vida: o fim. Quem sou eu para alterar a fatalidade? Como poderia eu alterar o curso natural de tudo o que existe nesta terra? Agora as lágrimas querem me visitar, mas não quero chorar…. Devo contentar-me com o fato acontecido, devo aprender com o que passou para construir algo melhor no meu futuro. No fundo, eu sei que depende de mim. Mas… as vezes é tão difícil. Tão complicado, tão… tão… Ai… não sei direito, será que no fundo depende mesmo de mim? Será que sou capaz de (nem que seja) influenciar (pelo menos um pouco) este curso de eventos para que este fim não seja tão cruel, tão fatal… Ah! Algo me diz que é possível sim… Mas agora não há mais o que ser feito, terei que esperar uma nova oportunidade… Sim, porque sei que novas oportunidades virão, sei que, quando elas então chegarem, eu estarei pronta para mudar o que for possível e mudar o rumo das coisas (será?). Sim… Mas… Por hoje, só me resta entristecer-me, em vê-lo quase acabado, quase destituído de tudo o que era, sim, a terrível sobrevida que ele terá que viver daqui pra frente. Não quero soar pesarosa demais, nem tão melodramática, então, digo-te as simples palavras que me vêm ao coração:

Adeus, salário.


Conto publicado na 13ª edição da Revista Literalivre, disponível aqui.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

De longe, a terra

Ai que saudade
Que pelos ventos perco nos teus encantos
Que pelas margens do rio, eu vejo, eu sinto
Teu calor, teu pranto.

Ai que saudade
De ter aqui perto, de cheirar tuas flores
Fugir do teu abraço escaldante
De pensar: “Eita maracujá bom!”

Ai que saudade
Daquela paçoca bem carnuda
De sentir a farinha triturando na boca
De chegar e te pegar por trás,
Saúva.

Eita saudade boa
Daquela rede e o cruviana
Balançando o cabelo
E as folhas
E as árvores todas
Tudo balança
Eu, tu, o balanço...
É a dança.

Ai que saudade que me turva!
Da terra entre os dedos
Entrelaçados nos cabelos
das árvores e do céu cheio de estrela
Eu, tu… eita… e a chuva...


Poema classificado no Concurso de Textos Anônimos do V Festival de Literatura e Artes Literárias (Facebook). Publicado na antologia do referido concurso.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Resenha - Hamlet

SHAKESPEARE, William. Hamlet. Porto Alegre: L&PM, 2012.


Outro livro que me surpreende. Iniciei sua leitura mais para poder dizer "Já li Hamlet, de Shakespeare" do que pelo inesperado prazer de desfrutar da sua leitura. Percebo que me deixo envolver pela linguagem do livro que é, deveras, sinuosa e bela, cuja forma enobrece ao mesmo tempo que informa e surpreende. Tal é o teor do livro.

A história se resume à trajetória do príncipe Hamlet, numa jornada de vingança contra o tio traiçoeiro, que usurpou o trono. Tendo sido guiado pelo fantasma do falecido pai, ele finge-se de louco para conseguir montar uma armadilha e desmascarar ao rei. Este, por outro lado, percebendo as estratagemas de Hamlet, elabora um plano para matá-lo.

Como disse, não esperava tanta beleza no livro. A seguir, vou colocar algumas das frases que achei tão belas que valiam a pena reproduzir e guardar na memória:
"Os amigos que tenhas, já postos à prova, prende-os na tua alma com grampos de aço;"
"Há algo de podre no Estado da Dinamarca"
"Há mais coisas no céu e na terra, Horário, do que sonha a tua filosofia"
Além dessas, tem uma clássica: "Ser ou não ser ─ eis a questão". Mas essa frase, solta assim, não faz jus ao teor do texto. Essa declamação é bela! Mas tão bela que não pude deixar de voltar nela e declamá-la em voz alta. Abaixo segue só um pequeno trecho dela:
"Ser ou não ser ─ eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma pedradas e flechadas do destino feroz ou pegar em armas contra o mar de angústias ─ e, combatendo, dar-lhe fim?"
Mas que mistura de arte e filosofia! Shakespeare é deveras sensacional. Por outro lado, não consigo evitar o revirar de olhos quando lembro das besteiras que têm todos esses dramas clássicos que ─ pelo menos para nós, hoje ─ são de um floreio desnecessário e leso demais. Por exemplo. Tem uma cena que Hamlet está conversando com a Rainha, sua mãe, e em determinado momento ouve alguém escondido atrás de um móvel. Vejam a cena:
"Hamlet: (Puxando um florete). Que é isso? Um rato? Morto! Aposto um ducado; morto! (Dá um lance com o florete através da tapeçaria).
Polônio: (Atrás). Oh, me mataram! (Cai e morre)."
Esse "Oh, me mataram", foi o fim da picada. Não consegui evitar gargalhadas imaginando a cena tão lesa! Mas, além disso, devo confessar que acho que só gostei do livro por causa da tradução do finado Millôr Fernandes que, sendo um crítico do "eruditismo" desses textos, buscou trazer ao nosso idioma não só as palavras rebuscadas, mas a poesia e as construções por trás das cenas. 

Quanto a isso, lembro que quando morava nos EUA, assisti a uma oficina de teatro. O aluno da escola representava uma cena de "Much Ado About Nothing", também de Shakespeare. Ele falava com pompa, fazendo gestos amplos, empinando a cabeça, olhando para o horizonte ─ um "ator" no seu melhor estereótipo. 

Mas em determinado momento, o professor que estava ministrando a oficina diz: "Não, acho que você está se mexendo demais. Reproduza essa mesma cena mas agora sentado em cima das suas mãos." O rapaz obedeceu e reproduziu a cena com a mesma fala pomposa, as pronúncias exacerbadas, a entonação "erudita" e o professor o interrompeu novamente: "Não, ainda não. Faz o seguinte, conta aqui pra plateia o que está acontecendo na cena com suas próprias palavras". Quando o aluno falou com a plateia, conforme ele ia explicando íamos abrindo o sorriso e ao final explodimos em uma gargalhada. O professor então continuou: "Agora sim! Esse é o propósito dessa cena. Ela foi escrita para ser engraçada, mas só agora você conseguiu transmitir isso para a plateia." 

Achei essa sacadas fantástica! A busca pela erudição, ainda mais quando se trata de clássicos, acaba por minar e descaracterizar o propósito inicial do autor e até mesmo a capacidade sublime da arte de transmitir as coisas. Portanto, repito: penso que a tradução de Millôr Fernandes fez toda a diferença. E que livretinho agradável de se ler! Termino, portanto, com as palavras do mestre da literatura:
"Hamlet (avançando): Quem é esse cuja mágoa se adorna tal com violência; cujo grito de dor enfeitiça as estrelas errantes, detendo-as no céu, petrificadas como espantadas ouvintes? Esse sou eu, Hamlet, da Dinamarca" 

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Resenha - Dois irmãos

HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.


Não sei nem como falar desse livro. 2019 começou com grande estilo. Não sei como falar, mas é pra falar bem, já adianto. Poucos livros me surpreenderam no último ano, céus, poucos livros me surpreenderam nos últimos anos! Esse aqui foi diferente, bem diferente. Não é que tenha trazido nada novo, sério, mas é só que... ele conseguiu. O cara conseguiu. A fantasia do cotidiano está viva!

Eu comecei a leitura como quem pensa: vou ler um autor brasileiro e tal, o cara ainda é manauara, vamo dar essa colher de chá pra ele. E fui lendo. Aí quando menos esperava o narrador se tornava personagem também, um personagem que ouviu alguém dizer, mas depois já era um narrador mesmo, e aí contava a história e, quando menos percebi, a história não era nada demais, só que eu já estava de tal forma enredado pelos acontecimentos que simplesmente não conseguia parar de ler!

Milton Hatoum é o Érico Veríssimo da contemporaneidade. Para quem me conhece e já leu algumas das minhas resenhas entende que essa afirmação, para mim, é praticamente um dos maiores elogios que eu poderia fazer a um autor. Hatoum conta, tão somente, a história de uma família. É a história que gira em torno de dois irmãos, descendentes libaneses estabelecidos em Manaus. É só isso.

Mas é impressionante como a gente não consegue evitar se deixar emocionar, ver os personagens à distância e pensar: "Poxa, não faz isso" ou ainda "Ah, espero que ela consiga". O jeito como Hatoum encadeia as coisas me lembra demais Érico Veríssimo. É uma capacidade descritiva invejável. Consegue ser longa sem ser cansativa, consegue trazer à tona elementos suficientes para que minha imaginação complemente o que falta. E acaba não faltando nada!

Aliás, pra um romance histórico (porque se passa no começo do século XX), achei sensacional como ele consegue contar a história sem precisar situar demais o leitor. Ele não fala de anos nenhuma vez! Não menciona datas, faz menções muito distantes a acontecimentos históricos, tanto que eles mal influem na história. E ainda assim a gente consegue ter noção de quando a história se passa e como era a cidade, os costumes. 

Achei também sensacional o modo como ele descreveu o casarão da família. Praticamente não descreveu! Ele ia dando detalhes conforme contava a história que permitia a gente mesmo construir a imagem que quiséssemos do lugar. Claro que me deixei contaminar um pouco pelo que conheço da cidade, mas mesmo isso não é suficiente: ele narra lugares que nem existem mais e, ainda assim, é capaz de falar com naturalidade.

A trajetória dos gêmeos Yaqub e Omar é cheia de altos e baixos; a mãe Zana e o pai Halim, a empregada Domingas e a filha mais nova do casal, Rânia, também fazem parte do elenco. Mas ouso dizer que, embora a história seja sobre essa família, o personagem principal não é nenhum destes. É o narrador. E, sim, o narrador está envolvido nos acontecimentos também. E é genial. Não vou revelar mais do que isso senão vou estragar as surpresas do livro. 

Realmente 2019 começou me surpreendendo. Depois das crônicas ferinas sobre Manaus, esse livro novamente ressaltou o componente humano que há em todos os lugares, mesmo que independente deles. Sabe o que é o mais interessante disso tudo? Milton Hatoum ainda vive! Ele tem Facebook e tudo. Aí eu, cara de pau, mandei um inbox pra ele, e com isso encerro:
Boa tarde! Sei que seu tempo deve ser bem corrido. Estou passando apenas para dizer que li seu livro "Dois irmãos", que me foi presenteado por uma amiga manauara (cidade também da minha mãe e minha esposa, sendo eu mesmo roraimense) e achei absolutamente maravilhoso! Parabéns!
Desde Érico Veríssimo, autor que tenho em mais alta estima e cuja coleção de livros tenho quase completa, não tinha visto ainda na literatura brasileira um nome que se pudesse comparar. Gosto de chamar esse estilo de "fantasia do cotidiano", que mostra que a verdadeira magia está no dia a dia, nas coisas simples da vida.
Minha única lástima é que eu não tenha conhecido seu trabalho mais cedo. É um incentivo para jovens escritores como eu conhecer a boa literatura viva.
Obrigado e parabéns novamente!

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Crônicas do cotidiano - IV

O que falta, em grande parte, é sempre o componente humano. Falta em nossas análises, falta em nossos pensamentos, falta nas nossas atitudes, falta em ateus e cristãos, falta em direita e esquerda, falta em nós mesmos.

A gente olha as situações e pensa que elas formam tudo que somos porque, em grande parte, nos deixamos levar apenas por elas e não olhamos além. Foi exatamente o que percebi no texto anterior.

Um lugar é muito mais do que seus pontos turísticos ou o espaço físico. Quando morei nos EUA, havia uma máxima que me era verdade: "Home is wherever I make music", ou em tradução livre, "Onde quer que eu faça música: este é meu lar".

Já faz alguns anos que o espaço físico é diferente para a nossa geração como era pros nossos pais ou avós. Hoje me comunico além das fronteiras físicas diariamente: leio notícias escritas em Brasília, vejo filmes feitos nos EUA, leio livros escritos na Europa, visto roupas das mais diferentes nacionalidades. Não prego um globalismo utópico, mas sim que o espaço físico não pode mais ser encarado da mesma forma que antes.

Dito isto, reforço: uma cidade é muito mais que seu espaço físico. Espero que essa crônica não soe como um pedido de desculpas, porque, infelizmente, não me retrato do que disse anteriormente e creio ser verdade. Preciso defender a verdade. Mas o que quero destacar é que ainda que a Manaus física me tenha causado ojeriza, a Manaus humana é bem diferente.

Minha mãe é de Manaus e boa parte da família ainda está por lá. A história da minha infância era entrar num carro com minha irmã e sermos levados pelos meus pais para as festas de fim de ano em Manaus. Tradição esta que cultivo até hoje, na medida do possível.

O problema é que quando a gente é criança, tudo é entediante. Visitar os tios, os avós, os parentes indiretos que nem sabem seu nome, passar o dia num ambiente sem nenhuma outra criança. Argh, a epítome do tédio. Foi só depois de adulto (eita, sou adulto?) que passei a realmente apreciar o contato com meus avós.

Mas antes de entrar nisso, explico que foi só quando passei a ter amigos em Manaus que a cidade mudou um pouco. Em 2013 ganhei uma bolsa de estudos pra Espanha (Top Espanha) e conheci gente de todo o Brasil, inclusive alguns de Manaus. Terminado o intercâmbio, muitos de nós ainda mantivemos contato e nos encontramos em Manaus quando eu ia visitar.

Como disse, foi a primeira vez que passei a enxergar a cidade com outros olhos. Havia algo de diferente, havia risadas, compartilhar de histórias, lembranças cômicas e tristes, projetos e sonhos. Nem parecia mais uma cidade distante ou passeio, era algo quase... familiar. Era diferente, mas só era diferente por causa deles. Eram as pessoas que faziam a diferença.

O povo de Manaus é acolhedor, não nego. Parece impossível visitar alguém rapidinho. Tem que entrar, sentar, jogar conversa fora, rir, falar besteira. E isso é muito bom! É bom fugir da lógica eletrizante do dia a dia e lembrar do acolhimento intimista que hoje faz tanta falta ao ser humano.

Mas voltando aos meus avós. Eles moram num lugar que, por falta de palavra melhor, denominamos Curral (risos). Ali há toda uma parentada morando junta numa espécie de vila amorfa, com casas espalhadas e amontoadas, que englobam desde a geração da década de 1930 (meus avós) até crianças dos anos 2010.

O lugar me pareceu, desde sempre, um foco de dramas familiares. Como todo mundo sabe, o contato prolongado entre pessoas gera vínculos muito fortes, mas também gera possibilidade para muitos atritos. Sempre foi confusão, parente falando mal de parente, parente fazendo inveja pra parente, uma fofocaiada doida de tudo e de todos. (Deus me ajude com o excesso de verdades!).

Não digo que não há espaço pra termos um contato interessante ali. Quando eu era criança, havia oportunidade de encontramos uns primos sem nome ali e brincarmos. Mas como esse contato se resumia a uns poucos dias no final de cada ano, quando eu voltava eles já não estavam lá, ou tinham outros planos, ou então fazia tanto tempo desde que nos falamos que já éramos desconhecidos de novo. O contato com tios e tios-avós era tão raro que lembro o nome de bem poucos. Aliás, qual a minha surpresa ao saber (isso já anos depois) que ali morava meu bisavô, um velhinho que vi quando criança, cego e sentado numa cadeira de balanço, cujo nome não lembro e a fisionomia me parece ser mais uma caricatura do que uma lembrança real.

Um espaço como esse era pra ser recheado de histórias e tradição. Mas esses valores não são cultivados ali. Não estou denegrindo, apenas falando a verdade. As pessoas ali vivem olhando para o presente e o futuro, e eu posso respeitar isso. Ali, o passado é rememorado na forma de anedotas, causos ou dramas. Até hoje não conheço direito a história daquele lugar, a não ser que foi uma fazenda em tempos remotos (início do século XX ou antes?) e que depois se transformou em lotes que abriga boa parte da família até hoje. Mas é aqui que entra o componente humano, somado a algo que disse na crônica anterior: a nossa própria iniciativa.

Anos e anos atrás, sei lá, há uns 10 anos, eu fui tomado por um ímpeto histórico de registrar a história da minha família por parte de mãe, a família Araújo de Souza. Por parte de pai, a família Alencar, já há extensos registros e até hoje tenho contato com primos Alencares que são historiadores ou, no mínimo, curiosos pela nossa história.

Nessa crônica não falarei da história dos Araújo de Souza. Pra isso, quem sabe, escreverei um livro ao melhor estilo "O tempo e o vento" um dia (já pensou? Seria chegar ao nível do meu absoluto favorito Érico Veríssimo!). Só o que quero falar aqui, novamente, é do componente humano.

Como mencionei, anos passados tentei iniciar esse registro daquela área e daquelas pessoas. "Tentei" porque não sou daquele local, moro em outra cidade e o tempo é muito escasso pra conseguir fazer um registro decente. Na época só consegui arrancar algumas poucas histórias do meu avô. Eu precisaria de algum parceiro corajoso e da localidade pra gente conseguir fazer um bom registro dali. Mas digresso.

Nesta minha última ida a Manaus (essa que rendeu todas essas crônicas), estava eu novamente preso nas tediosas obrigações familiares de fim de ano quando decidi tomar a iniciativa e fazer algo diferente. Ali naquela casa, no alto do Curral, eu novamente passei a conversar com meu avô sobre as histórias do passado. E que velho filho d'uma égua, viu? (Risos, vários risos)

Em meio a todas as histórias que aquele senhor idoso me contava, com dificuldade de falar, devido ao derrame que lhe ceifou parte das habilidades básicas, caminhando trêmulo pra sua cadeira de balanço, permeando seu português com o caboquês, eu reconheci algo na sagacidade das suas histórias. Eu reconheci algo no seu jeito de falar, eu reconheci algo até no modo como ele se comportou nas ocasiões que me relatou. Mas que droga. Eu reconheci a mim mesmo.

E de repente eu percebi que o sangue daquele homem, a assinatura genética dele, estava em mim também. De repente ele não era um estranho, uma convenção social obrigatória, uma pessoa qualquer. Não. Ele era eu.

Foi então que eu percebi. Enquanto minha mãe conversava com minha avó, enquanto minha sogra trocava risadas com uma das minhas tias, enquanto minha esposa conversava com uma prima, enquanto na casa ao lado explodiam risadas em meio às músicas e festejos do Ano Bom, enquanto eu ouvia aquele senhor na cadeira de balanço contando histórias antigas: tudo que faltava era o componente humano.

O que falta, em grande parte, é o componente humano e, não raro, falta não nos outros, mas em nós mesmos. Esse componente só veio à tona quando venci meus pré-conceitos e tomei a iniciativa.

No fundo, a vida é mesmo uma grande viagem. Não podemos controlar as coisas que virão pelo caminho, céus, não conseguimos nem saber direito que caminho vamos tomar! Mas o que tenho visto, e percebi nessa viagem, é que o modo como a gente faz essa viagem da vida depende muito mais de nós mesmos do que das circunstâncias ao nosso redor. E quando nós tomamos a iniciativa e buscamos realmente ver as coisas de outra forma, ah!, meus amigos, que maravilha que é!


Crônicas do cotidiano. Gabriel Alencar. Publicado originalmente no Facebook em 03/01/2019.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

15 minutos

Seu Afonso olhava pro rio da sacada de sua janela. Era o mesmo rio de sempre, mas ele não era. As pernas bambas, os cabelos brancos e a bengala horrorosa que ele odiava. A cadeira de balanço de sua mãe no mesmo lugar e agora era ele que a ocupava e balançava-se, olhando o tempo e a vida na rua lá embaixo. E o rio parecia sorrir.
Ele sentiu vontade de ir ao banheiro. Ah, como detestava esses momentos. Algo tão banal para o ser humano, para ele, uma luta contra seu próprio corpo. Recusando, com as poucas forças que ainda tinha, quaisquer sugestões dos filhos em usar fraldas, e agarrando-se a essa resolução, pegou a maldita bengala e começou a tentar se levantar.
Tudo tremia. Os cabelos brancos eram balançados pelo vento, até os óculos tremiam. Ao longe um navio berrou. “Que idiotas! Porque não fazem silêncio? Não veem que já são seis da tarde?”, e tremia, e tremia. E quando finalmente conseguiu levantar-se da cadeira, movia-se vagarosamente, um passo de cada vez, na direção do seu quarto.
Lá em baixo, um vendedor de pipoca empurrava seu carrinho na direção da Orla, onde turistas logo mais estariam reunidos e ele faria suas vendas. Mas Cláudio não era pipoqueiro, era um policial, sob disfarce. A missão ali nos arredores da Orla de Santarém era investigar a presença de um perigoso traficante que escoava cocaína para a Europa por meio de barcos. E ali estava ele, observando, esperando pra ver se acontecia alguma coisa. Sua primeira missão sozinho.
Já havia três meses que todo dia aquela era sua rotina, precisava manter as aparências. Em casa a esposa apenas sabia que ele estava numa missão importante. Letícia às vezes se perguntava porque aceitara uma vida assim. E Cláudio sabia disso. Empurrava o carrinho, olhava para a Orla, e sabia disso. E o rio corria tranquilo, parecia sonhar.
Seu Afonso finalmente conseguiu entrar no quarto, foi em direção ao banheiro. Passando pelo lado da cama, viu na escrivaninha antiga alguns papéis jogados e amassados. Rascunhos de seu último poema, que nunca saiu da cabeça. Mas agora ele não pode ir lá para ver isso, precisa ir ao banheiro. E treme, e treme. E anda, bem devagar.
No prédio ao lado, Ademir corria de um lado para o outro, fugindo da mãe. O menino não queria tomar banho.
– Ademir, eu não vou falar de novo! – ela disse, com dedo em riste. O menino parou, sabia o que o gesto significava. Deu uma risadinha de leve e tensionou as pernas. A mãe arregalou os olhos e disse – Olha! Ei!
Ademir relaxou o corpo, ele sabia o limite da paciência da mãe. E estava quase lá. Correu na direção da mãe e abraçou sua perna, dando uma gargalhada. A mãe, rendida pela atitude do garoto, não teve escolha se não sorrir e levar o pequeno para o banho, insatisfeita consigo mesma por não ter mantido a postura autoritária.
Cláudio segurava firme na barra de ferro do carrinho, tentado se aproximar rapidamente da Orla. Viu o momento em que o traficante desceu as escadas de madeira em direção a um barco pequeno. No começo da noite a movimentação na Orla era grande. Cláudio levou a mão à calça, como se para arrumar, mas, na verdade, era pra sentir o frio coldre da arma. Ele esperou até que terminassem tudo e seguiu o traficante, foi tudo muito rápido. Naquela noite ia sondar, fingir que queria a droga também.
E no chuveiro o pequeno Ademir se contorcia:
– A água tá muito fria!
– Fica quieto, menino. Senão vai ficar em casa e vou pra Orla sozinha.
E a mãe pegava os bracinhos ensaboados do menino pra tentar segurá-lo e lavar o resto do corpo. Ela morria de medo que ele caísse, então tinha que acompanhar todo o processo. A água realmente era fria, mas tomar banho era preciso, não havia o que ser feito. Os cabelos de Ademir caíam sobre seu rosto e ele os afastava com as mãozinhas.
Seu Afonso segurou-se no batente da porta, precisava descansar as pernas um pouco. Quem diria que chegaria uma época em que teria que calcular o tempo para chegar ao banheiro. Viu-se no espelho acima da pia. As rugas, as manchas no rosto, os olhos pretos contemplando a pele flácida do corpo. Mas ele não sentia pena de si mesmo, a vida é assim, o tempo passa. Pendurou a bengala na maçaneta da porta e segurou-se nos ferros para aproximar-se do vaso sanitário. “Que coisa fria!” Ele pensou e tremulou. Não gostava de coisas frias. Lembravam-lhe a morte.
Cláudio viu o traficante subir rua acima e o seguiu. A subida íngreme lhe era desconfortável e detestava o cheiro de esgoto a céu aberto. As casas de madeira, o chão sujo, os postes com luzes fracas, tudo lhe era detestável. O traficante já estava no meio da quadra quando olhou pra trás e viu o pipoqueiro seguindo-o. Parou por um momento, olhou para os lados e foi na direção de um terreno baldio.
Cláudio continuou seu trajeto, inabalável. Subiu a ruas com passos firmes. Numa lixeira, um gato remexia o lixo e parou de repente quando viu o homem passar. Num pulo esguio, correu para longe. Cláudio diminuiu o passo conforme se aproximava do terreno baldio. Quando chegou, viu o traficante apoiado no muro, acendendo um cigarro.
O traficante levantou o rosto para ver o pipoqueiro chegando. Soltou uma baforada e disse:
– Tá olhando o quê?
Cláudio parou por um momento, como se constrangido, olhou para os lados e aproximou-se do pipoqueiro.
– Eu, é… é que… – e coçou a barba – tô querendo umas coisas aí.
– Ah, é? – ele soltou outra baforada – e o que eu tenho a ver com isso, tá me estranhando?
– Não, não é nada disso. – Cláudio estava constrangido de verdade – é que… tô precisando  apagar, preciso de um cheiro… tem farinha aí?
O traficante desencostou-se do muro. Deu dois passos na direção de Cláudio. Essas gírias eram de gente que sabia o que queria. Mas ele estava desconfiado. Não eram muitos que chegavam pra pedir essas coisas dele, sua área era ácido, erva… farinha, ou cocaína, era coisa do chefe. Quem era esse cara?
– Num tenho nada não, mermão. Sei nem do que tu tá falando. Vaza daqui e não enche o saco. Vai logo. – e fez um movimento rápido abrindo os braços e mostrando os músculos, pra afugentar o pipoqueiro chato. Cláudio, num gesto mecânico e veloz, levou a mão pra trás, ao cós da calça. A arma e o gesto denunciante.
O traficante entendeu tudo e numa fração de segundo tirou a faca da cintura, a lâmina fria no peito de Cláudio, as mãos às costas, o tórax indefeso. Uma vez, duas vezes, três vezes, garganta. Grunhidos, olhos embaçados, escuro, escuro. Passos ligeiros, alguém estava correndo e o chão se aproximou muito rápido.
O gato parecia sorrir, Cláudio parecia sonhar. Ao longe, som de um barco.
Seu Afonso ouviu de novo o barco idiota mugir. Isso era hora? Depois que finalmente conseguiu se levantar do vaso e sair do banheiro, já estava a meio caminho da sacada. Mais uma vez seus olhos repousaram brevemente sobre os papéis sobre a mesa, mas afastou os pensamentos. Trêmulo, a bengala lhe era o maior amparo desde que os filhos, ocupados demais, deixaram de visitar. E chegou na porta da sacada e olhou o rio. Rio velho de guerra. E a cadeira de balanço.
A mãe de Ademir o enxugava quando ele ouviu de novo o som do barco. Seus olhinhos se arregalaram e ele gritou:
– FOOONNN! – e riu.
A mãe se irritou com o grito do menino, seu rosto transpareceu o sentimento, mas ignorou, melhor não dar atenção pra curumim. Depois de vestir o garoto, foi para a cozinha. Abriu a geladeira e pegou a vasilha com um pouco de canja que havia sobrado. Com a bolsa a tiracolo, Ademir sabia que era o sinal de que estavam prontos para sair.
– Vamos, Ademir. Ainda temos que passar no Seu Afonso pra deixar essa canja.
– Ah, não, mãe! Aquele velho é muito chato!
Seu Afonso olhava pro rio da sacada de sua janela. Mas era o mesmo rio de sempre. E o rio parecia murmurar. Mas era a mesma rua de sempre. E a rua parecia correr. Mas era a mesma vida de sempre. E a vida parecia voar.


Conto classificado em 7º lugar no Concurso de Textos Anônimos do V Festival de Literatura e Artes Literárias (Facebook). Publicado na antologia do referido concurso.

Crônicas do cotidiano - III

Essa é uma crônica não muito agradável de escrever. Não é porque temo o que vão pensar depois que lerem (Aff, como se o que eu escrevesse tivesse algum alcance), mas, especialmente, porque sei que o que penso está recheado de pré-conceitos e experiências dos quais não consigo me desvencilhar, eles simplesmente correspondem demais ao meu entendimento da situação como um todo. Desculpa, gente, mas não gosto de Manaus.


Até que ponto realmente somos livres ou podemos nos libertar das amarras sociais que nos constrangem? Somos afinal apenas um conjunto de metanarrativas sobrepostas? Porque não consigo evitar crer que há um núcleo que reúne isso tudo. Seria, afinal, mais uma ficção? Mas, se é, como pode funcionar tão bem para algo não real?

Começo bem filosófico, né? Culpa das leituras. Há uma ruptura e um novo paradigma filosófico se consolidando aos poucos no mundo atual. Sem me alongar muito, o que defendo afinal é: tanto gregos quanto troianos estão certos em parte. Enquanto os modernos privilegiam a razão acima de tudo, os pós abrem espaço para as emoções, as impressões, para a alma. Ambos estão certos, em partes.

Aqui acho que me cabe apontar as explicações para a minha afirmativa (a primeira). No melhor estilo dos meus pensamentos pós+modernos (não foi erro de digitação, quis grafar assim mesmo), acho que há explicações racionais e emocionais. Vamos a elas.

Sujeira, bagunça, furdunço, buzinas, falta de educação, vendedores parecem que estão te fazendo um favor, pessoas te empurram na rua sem nem se desculpar, buzinas (mesmo atravessando na faixa), sinais vermelhos parecem ser só uma sugestão ao motorista em vez de obrigação, pichações em quase todos os prédios, esgoto na rua, fedor, calor sem vento, fios (ai, tantos fios) que não consigo sequer enxergar um prédio direito, descaso, mas descaso tal que há prédios do século passado em ruínas com plantas crescendo de dentro das paredes, e na base deles o cheiro de urina (quase onipresente), ah, e o tédio supremo das obrigações sociais familiares. Que excesso de verdades, Deus me ajude.

O problema é que eu não aprendi, eu simplesmente não aprendo. Toda vez é a mesma coisa e o problema mesmo é que eu não mudo, não aprendo, não me esforço pra realmente mudar. E, nisso, eu sou deveras o maior culpado.

A bagunça, a sujeira e o fedor são apenas exacerbados pelo calor, furdunço e desorganização que parece latente em todo o território urbano. É muito, mas muito triste ver prédios lindos do século passado totalmente abandonados e deixados ao relento. Não deixa de ser bonito ver a natureza retomando alguns desses espaços: "Vocês invadiram, destruíram e sequer se deram ao trabalho de manter, pois então me devolva que eu sei o que faço."

Por favor entendam que muitos desses argumentos são racionais. Quem gosta de várias das coisas que elenquei? Quem gosta de calor, desorganização, sujeira, barulho? Em sã consciência não são experiências prazerosas do dia a dia.

Mas ao mesmo tempo há elementos que citei que são frutos da minha experiência pessoal, da minha percepção, do meu azar (risos). Esses são fatos peculiares à minha percepção, que, vinculados à minha experiência, terminaram por moldar minhas impressões finais sobre tudo.

Eu amo turismo histórico. Amo passear no Largo, visitar os prédios e praças da Paris dos Trópicos, ver as grandes embarcações que ainda hoje trafegam pra cima e pra baixo no maior rio do mundo. Há um contraste entre o passado e o presente na cidade que tinha tudo para ser seu maior charme (como é Madrid, por exemplo). Mas como aproveitar isso com sobriedade quando são permeados por tantos elementos negativos? Como se desfruta da beleza do Teatro Amazonas com os olhos enquanto minhas narinas são recheadas pelo odor pungente da urina? E meus ouvidos são azucrinados por vendedores impertinentes que roubam meu sossego? Não dá pra simplesmente desvincular as coisas e tentar racionalizar, nós somos seres inteiros, não compartimentalizados.

Alguém pode ler isso e argumentar que eu estou destacando apenas os aspectos negativos da minha experiência e minhas percepções racionais. E a isso eu respondo: você está certo. Alguém pode ler isso e comentar, "ad hominem": "Mas e aquela tua cidade? Que é assim, assim e assado?". E a isso eu respondo: você está certo. Alguém pode dizer: "Como você pode falar isso da cidade, se conheceu só o centro e, quando muito, passou por apenas alguns bairros?". E a isso eu respondo: você está certo.

O problema é que essa é minha percepção. Como mudar? Como posso ver as coisas de outra maneira? Por favor me mostrem. Não quero ser negativo, queria ser igual ao motorista do Uber que disse que ama Manaus, que não vê razão pra sair da cidade, exaltando os interiores do Amazonas também. Mas como fazer isso quando me deparo apenas com essas condições? Não digo que não há o que experimentar, mas digo que não tenho tido boas experiências.

Tudo pra mim é uma pena, que, misturada à sensação de impotência do descaso (que vai além dos prédios públicos e se estende a muitas casas), só aumenta mais o desgosto pelo espaço urbano. Que crônica que nada, o texto é apenas um grande desabafo.

Em minha defesa, se é que há alguma, a próxima crônica trará um olhar diferente que em muito vai contrastar com essa. Enquanto aqui eu foco no espaço, na próxima pretendo abordar o aspecto humano que em muito faltou nessa.


Crônicas do cotidiano. Gabriel Alencar. Publicado originalmente no Facebook em 02/01/2019.

Crônicas do cotidiano - II

CLAP! CLAP! CLAP!
- Olha o óculos, moço, compra a lente ganha a armação.
- Relojrelojrelojreloj!
- Água, olha a água geladinha!
CLAP!
- Ô patrão, almoço, só 10 reais com suco. 
- Casal, dentista aqui na galeria, só vir.
CLAP! CLAP!
- Ooolhhaaa a águaaa.
- Camisa, short, calça, tudo por aqui, só entrar, casal.
FOOOON! FOOON!
- Sai da rua, menino, a gente tem que ir lá no DeBesta.

E chove, e tem sol, e fumaça, e gritos, e palmas, e chove sol, fumaceiam gritos, palmas e palmas. Chovem palmas, gritos e carros. Tentem ouvir tudo isso ao mesmo tempo e dá pra ter uma noção do que é um passeio no centro de Manaus.


Crônicas do cotidiano. Gabriel Alencar. Publicado originalmente no Facebook em 29/11/2018.

Crônicas do Cotidiano - I

A vida é uma viagem mesmo, né? Cheguei na rodoviária meio esbaforido. Verdade seja dita não gosto de viajar no aperreio. Gosto das coisas com calma, planejadas, estudadas. Mas dá pra ser assim sempre? Nem nas viagens nem na vida.

A rodoviária estava menor do que eu lembrava, pegamos os bilhetes da passagem e caminhamos pelo saguão quente. Acho que era o calor humano. Olhares cansados em meio a rostos sorridentes, abraços apertados e corpos em movimento. Os sorrisos mudam muita coisa.

Meu pai nos deu carona e nos acompanhou até a hora que entramos no ônibus. Lembrei da infância quando fazíamos o mesmo quando ele ou minha mãe iam em viagem. Que coragem deles em encarar essa estrada maluca quase todo ano.

A fila pra entrar no ônibus estava grande. Gente se empanturrando pra colocar as malas no bagageiro e eu só querendo subir pro meu assento. O motorista que coletava os bilhetes tinha a fronte suada. Conferia os bilhetes, nomes e rostos.

Mas um sorriso muda muita coisa. Quando minha esposa sorriu para ele e desejou um "Boa noite!", há realmente poucas pessoas que permaneceriam incólumes. A vida é uma viagem mesmo.

Ao subir, que grata surpresa ao ver que nossos assentos eram os primeiros, bem na frente, de cara para a estrada, separados apenas por um vidro. Do meu ponto de vista, um tremendo privilégio. Não tenho outro assento na frente para se reclinar sobre mim e ainda ganho o presente da bela vista.

E da viagem ou da vida, o que mais levamos senão as paisagens? Mas que paisagens há numa viagem a noite? Há senão a escuridão e o farol que ilumina, que desbrava as trevas e revela o caminho a seguir. Nem a chuva o impede.

E a noite se revela viva, cheia de cores e nuances. Há as marcas que mostram o caminho que devemos seguir e, bem interessante, também as que não devemos seguir.

Enquanto os faróis do ônibus revelam o que há fora, os faróis e luzes de outros carros ou casas revelam o meu próprio transporte. Encarando a noite pelo vidro à frente do meu assento, quando sou confrontado com o farol dos outros é que são reveladas as gotas da chuva escorrendo, correndo e fugindo para adiante de mim, como para liberar a vista ("Vai desculpando, doutor, só estou de passagem"); revela as sujeiras que eu não via, e as que eu ignorava. A vida é mesmo uma grande viagem.

As pernas, folgadas, descansam sobre o batente à frente, indiferentes ao perigo, privilegiam o conforto. Que conforto há quando é permeado pela insegurança? E minha mente se remete à minha casa e meus bens e fico com medo de perdê-los. Por quê? Não sempre tive tudo que preciso e muito mais? Nas duas vezes que minha casa foi assaltada, naquela que estávamos eu e minha esposa dentro dela, não foi o mais precioso poupado? Tanto, tanto, tanto, e o coração insiste em focar em coisas de segunda categoria. Ecos de uma quase ingratidão.

E a noite segue, assim como segue a vida, e a viagem. Há outro ônibus à nossa frente e não é seguro ultrapassá-lo, a chuva ainda fustiga o vidro, a estrada, o lavrado. A princípio o companheiro de estrada nos impede de correr mais rápido. Mas, por outro lado, não é muito melhor ir aos lugares quando se tem alguém com quem compartilhar?

E agora que a vejo dormindo ao meu lado também não consigo evitar perceber o quanto mudou minha percepção de viajar. Sozinho é bom, é livre, é novo. Mas não chega nem perto de viajar compartilhando tudo isso. Nem perto.

Dancem luzes, dancem, corram as gotas, derramem-se letras em lirismo, pulse coração ouvindo a música que vai para a cabeça pelos fones, descansem os olhos e a mente, porque ainda tem chão pela frente e isso leva tempo. A vida é uma viagem mesmo, não é?


Crônicas do cotidiano. Gabriel Alencar. Publicado originalmente no Facebook em 28/12/2018.