Gente do céu. Que livro diferente de tudo o que já li. Bem numa semana em que eu estava revisando um conto meu e aprendendo sobre o tal discurso indireto livre com o Prof. Devair, me cai essa bomba no colo, uma bomba sem um único travessão, sem aspas, com indicações de narração suficientes apenas para a gente saber minimamente o que está acontecendo. Isso foi bem impressionante.
Com frases curtas e concisas, Junqueira consegue construir um cenário de distopia. Há uma Cidade envolta pelo Muro, dentro dessa cidade há diferentes Zonas (Amarela, Azul, Cinza, Marrom), cada uma é uma espécie de gueto onde as pessoas são divididas conforme classe social (a Cinza sendo a pior e a Azul a melhor).
Nessa cidade, todos vivem sob o comando do Diretor Calvo (o nome dele não é "Calvo"), que comanda a Fábrica e mantém em rédeas curtas a Prisão. Essa última é comandada pelo Diretor, que, casado com a Ruiva, vê-se numa encruzilhada ao se deparar com o Mensageiro, que conversa com Ele e consegue prever aquilo que ainda não aconteceu.
Desse último parágrafo já dá pra ter uma noção. Os nomes dos personagens não são nomes próprios, são descritos tão somente desta forma: o Diretor, a Ruiva, o Operário, o Militar Coxo, a Secretária, a Criada, o Filho e por aí vai. A trama se desenrola com todos eles ao mesmo tempo, em alguns momentos até de maneira confusa ou supérflua, de um jeito que a gente não entende direito como aquilo contribui para a história. Aliás, a história toda parece acontecer "de canto de olho". É um desenrolar tênue que a gente fica se contorcendo pra saber o que vai acontecer.
Há um linguajar meio fluido que perpassa todo o livro, mas tem vezes que Junqueira não tem pena e coloca vernáculos bem explícitos (especialmente para as genitálias de ambos os sexos). Aliás, o autor não tem pena de falar do que é sujo, dos podres escondidos, dos desejos nefastos ocultos dos personagens, trazendo em vários momentos um aspecto noir à trama.
Ao final, tudo é uma distopia mesmo, com críticas ao governo totalitário do Ministro Calvo e um plano conspiratório encabeçado pelo Mensageiro contra tudo isso. É difícil elencar um personagem principal, uma vez que o Mensageiro só aparece em poucos momentos da história, ainda que decisivos. Talvez o Diretor, seu desenrolar com a Ruiva e seu Filho, seja o personagem cuja trama é vista com mais evidência no livro.
Falei discurso indireto livre, viu? Algumas vezes me perdi sem saber quem era a personagem que estava falando ou se era o narrador, mas penso que é questão de costume. Ah! Um ponto interessante: o livro é dividido em "Sonata de inverno" e "Concerto de verão", todos eles divididos em Gymnopédies, o que me trouxe Satie à memória imediatamente. Aliás, quase dá pra ouvir a Gymnopédie dele ao ler alguns trechos da história. Muito interessante esse jogo.
Pelo pouco que consegui encontrar sobre Sandro William Junqueira na internet, o cara é português, (aliás, o livro é em português de Portugal, fica evidente em diversos momentos) nascido em 1974 e parece ser um artista diversificado, adentrando teatro e design também. Em 2012 foi considerado um dos escritores para o futuro pelo semanário Expresso.
Um piano para cavalos altos. Tem piano, tem cavalos altos, tem a foto de um lobo na capa, tem tudo isso na história também. Mas isso não tem nada a ver com nada, mas, em certa medida, tem a ver com tudo. É complicado mesmo, tal como o livro é. Leitura mais do que recomendada.
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