sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Resenha - Classic tales of horror

POE, Edgar Allan. Classic tales of horror. London: Arcturus, 2017.


Valei-me! Já faz quanto tempo que não escrevo uma resenha, né? Em minha defesa o fim de ano e começo deste foi terrivelmente conturbado no trabalho. Mas eis-me aqui! E logo com quem, né? Simplesmente um dos maiores escritores americanos de todos os tempos e um marco na literatura do século XIX. Temos aqui alguns contos selecionados, dentre os vários. Sigamos adiante.

Bom, já começo tecendo comentários gerais. Primeiro que é evidente o forte teor intelectual dos contos de Poe. No começo eu achei um pouco demasiado, mas depois entendi que isto era parte do seu estilo e também uma marca de seu tempo. Por exemplo, hoje eu acho um desrespeito com o leitor colocar uma frase em outro idioma no meio do texto; mas, naquela época, isto era natural e muito bem quisto -- lembro, por exemplo, que Conan Doyle costumava fazer isso também.

Poe é a essência de um bom contista. Ele escreve parágrafos longos e profundos que a gente vê que são construídos com cuidado. Não há praticamente nada que dê pra tirar do conto, tudo que está ali e necessário. Isto é um absurdo de fantástico e transparece em todas as histórias. Até o que parece encheção de linguiça tem um propósito pra história.

Achei o começo do livro chato. Mas percebi que foi uma jogada do editor, colocando os contos em ordem "crescente", demonstrando a evolução do próprio estilo de Poe. Não canso de repetir: os contos são muito, muito bem construídos. Embora não deem medo, é um deleite lê-los. (Sim, isto precisa ficar claro: os contos podem ser de terror, mas não dão medo).

Se a gente pensar agora nos personagens dos contos, de maneira geral, praticamente em todos eles as pessoas são ou estão doentes de alguma forma. Penso que isso diminui o impacto em alguns casos, porque a gente vê o doente como vítima também (pelo menos de certa forma e, é claro, com um olhar contemporâneo, né?)

Uma coisa que me incomodou também: a vasta maioria são personagens ricos, com poucos ou nenhum problema cotidiano. Evidente que isto era uma das marcas dos leitores da época. Não adiantaria escrever para um público que não se interessava com o cotidiano e tenho plena consciência de que isto é uma idiossincrasia particular minha.

Uma coisa que entendi depois que li o livro foi que para realmente ler Poe, não basta só ler os contos ou poemas. Se você não é bem treinado ou aprofundado no universo da literatura ou psicanálise, dificilmente você vai conseguir entender a complexidade dos contos com perfeição. Há sempre foco muito grande na psique dia personagens e isto se traduz não apenas no comportamento delas, mas na própria estrutura do conto e muito, muito simbolismo.

Agora, se passarmos aos contos propriamente ditos, teríamos muito a dizer. Fiz uma seleção geral de coisas que me chamaram a atenção. Organizei aqui o que considerei uma ordem ascendente em qualidade dos contos (no meu humilde ponto de vista, é claro)
  1. The tell-tale heart é muito bom para imergir na mente de um maluco.
  2. Man of the crowd deixa a gente curioso e ao mesmo tempo absorto. Pena que o final foi  deixado aberto demais.
  3. The black cat é um conto que talvez as pessoas esperassem que eu colocasse em um ponto mais alto da lista. Nele é evidente a unidade de ação em comparação com a unidade temática de Morella. Olha, o conto é muito bom, mas infelizmente foi mal colocado no livro porque o conto anterior tinha praticamente o mesmo final. Então logo que a situação se mostrou similar, eu fiz a associação e deduzi os acontecimentos, o que estragou bastante o clímax.
  4. Cask of the Amontillado é muito bom em revelar um personagem extremamente maquiavélico.
  5. The masque of the Red Death foi um absurdo de bem construído.
  6. The pit and the pendulum foi um exagero de capacidade de imersão. A gente se sente na pele do personagem, vidrado em cada passo, cada sensação.
  7. Neste ponto fica difícil escolher um de fato, porque estes dois ficaram empatados. Premature burial é um conto de excelente qualidade. Foi o conto com o qual mais pude me relacionar, onde o protagonista pareceu mais do que nunca uma pessoa normal (ainda que doente) e não um "outro" distante.
  8. Mas vou dar o prêmio maior para Morella, que tem uma exímia construção e manutenção da atmosfera, do tônus, desde o começo até o final. Com um enredo simples, simples, Poe deixa a gente absorto num misto de poesia e prosa que eu nunca vi igual. 
E aqui precisamos trazer algumas citações. Eu não posso deixar de iniciar com o primeiro parágrafo de Berenice. Deveras o conto sequer entrou pra minha lista de melhores, mas não teve nenhum trecho deste livro todo que se comparasse a este parágrafo no que se refere à maestria do domínio do idioma. Vejam por si mesmos:
Misery is manifold. The wretchedness of earth is multiform. Overreaching the wide horizon like the rainbow, its hues are as various as the hues of that arch, as distinct too, yet as intimately blended. Overreaching the wide horizon like the rainbow! How is it that from Beauty I have derived a type of unloveliness? — from the covenant of Peace a simile of sorrow? But thus is it. (p. 33)
Nossa! Só de reler agora já fiquei maravilhado de novo. É o tipo de coisa que vale a pena registrar e lembrar. Agora recordo que ao ler este trecho, fiquei tomado de tamanho arroubo que sequer pude continuar a leitura. Só me restou voltar as linhas e me inebriar novamente com as palavras.

Bom, há algo relativo aos contos, pelo menos os últimos do livro (os quais, imagino eu, referem-se a um outro período das fases de Poe, uma vez que se percebe uma temática ou estilo em comum -- embora isto também possa ser apenas um capricho do editor), que merecem também ser citados.

Refiro-me, é claro, ao pecado (ou o que Poe chama de "perverseness" -- perversidade). O autor vê uma maldade inata ao ser humano, ou, pior, uma maldade que se manifesta apenas pelo desejo da própria maldade. O homem às vezes pratica o mal só pelo prazer de fazer o mal. Olhe só este trecho:
Yet I am not more sure that my soul lives, than I am that perverseness is one of the primitive impulses of the human heart — one of the indivisible primary faculties, or sentiments, which gives direction to the character of Man. Who has not, a hundred times, found himself committing a vile or a silly action for no other reason than because he knows he should not? (p. 176)
Tamanho é o fascínio ou curiosidade do autor com este tema, que há um conto dedicado praticamente a isso, chamado "The imp of the perverse"; embora seja mais voltado para serial killers. Poe não pode deixar de reconhecer o mal que habita no coração humano e que naturalmente guia seus próprios atos. Ele traz um alerta, porém: estes demônios internos não podem ser alimentados, devem ser colocados para dormir, ou nos devorarão:
Alas! The grim legion of sepulchral terrors cannot be regarded as altogether fanciful — but, like the Demons in whose company Afrasiab made his voyage down the Oxus, they must sleep, or they will devour us — they must be suffered to slumber, or we perish. (p. 199)
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Ora, depois de tudo isso, não me resta alternativa senão recomendar o livro e garantir que Poe nunca saia da minha estante. Embora não cause medo (que seria o propósito de contos de terror), está aqui uma verdadeira aula sobre o que é escrever um bom conto. Talvez eu nunca chegue lá, mas vou me esforçar ao máximo para aprender a lição.

sábado, 11 de janeiro de 2020

Resenha - A sombra do pai

DOBRACZYŃSKI, Jan. A sombra do Pai: história de José de Nazaré. São Paulo: Cultor de Livros, 2017.


Pessoal, entramos o ano lendo este livro de ficção cristã, publicado pela minha amada editora Cultor de Livros! Obra escrita pelo padre polonês Jan Dobraczynski em 1977, ganhou nova edição no Brasil em 2017 com o verdeiro resgate que o Cultor tem feito com obras clássicas. Aqui já cabe uma primeira ressalva: naturalmente, por ser obra de um padre, haverá várias discordâncias doutrinárias e opções na história com as quais eu não concordo. Não obstante, o livro é bem interessante e realmente faz a gente imergir na história de José, o pai de Jesus Cristo. Sigamos.

Vamos começar falando logo do personagem principal da história. No começo do livro, achei um pouco exagerada a pintura de José. Parece que faltou, sei lá, humanidade nele... parece muito certinho. Além disso, acho que por conta do modo como eu mesmo pintei José na minha cabeça, houve momentos em que a verossimilhança não me convenceu.

Refiro-me, por exemplo, ao fato de que José tinha que ter desconfiado de Maria. Não tem como escapar de um sentimento tão humano, simplesmente não dá. José não poderia ter sentido apenas tristeza, sem raiva. Essa mistificação de José acaba comprometendo o texto. Embora, do meio para o fim do livro, as dúvidas e humanidades de José venham à tona. mas nisso de José se ver como "sombra", a autoestima e valor próprio dele foram decaindo o livro todo. O final mostra um homem praticamente prostrado. Me recuso a pensar que José foi alguém assim.

Um problema que me parece sério é que José é pintado como um homem dominado pela esposa. Isto não faz sentido com a ordenança bíblica. O autor aponta praticamente Maria como a tomadora de decisões e José como seu subalterno. Embora o autor queira defender a condição da mulher (que eu super apoio e concordo), não dá pra diminuir José dessa forma. No livro ele é praticamente um banana que obedece Maria.

E abordando essa questão da relação com Maria, tem algumas coisas que me incomodaram também. Refiro-me em primeiro à cena em que Maria diz que se pode "sugerir" a Deus o que Ele deve fazer. O autor desemboca como se ela tivesse sido escolhida como mãe de Jesus porque pediu a Deus e o "convenceu".

Também discordo que tenha sido sugestão de Maria ir com José. Mas, pelo contrário, insistência DELE, pra que ela não ficasse desamparada e, principalmente, que não fosse vítima de nenhuma perseguição. Além disso, há um erro que acontece muito na literatura ocidental sobre a hospedagem para Maria e José. Eu teria que explicar bastante sobre a cultura oriental, mas por enquanto vou apenas recomendar o livro "Jesus pela ótica do Oriente Médio" de Kenneth E. Bailey. Outra hora falo sobre ele.

O autor demonstra respeito por Jesus, sempre o chamando de Menino ou falando da Sua graça com letras maiúsculas. Mas dar a entender que o recém-nascido já entendia tudo e dava conselhos de modo indireto foi um pouco demasiado. Jesus foi um ser humano igual a todos nós, a Sua humanidade não pode ser diminuída.

No caso da história dos Reis Magos há um sincretismo muito perigoso. Eu mesmo não saberia opinar teologicamente de maneira categórica; mas tem um universalismo escondido aí, como se "todas as religiões" apontassem para Deus de alguma forma. E não é bem assim. Aliás, o livro tem um bocado de misticismo disfarçado.

Toda a parte que fala de Herodes é muito confusa. A gente não sabe quem são os personagens, eles não são apresentados de maneira didática, e por isso a gente se perde na leitura. Não dá pra lembrar com facilidade quem é filho de quem ou marido/esposa. Acabamos lendo "no rumo".

Quanto ao estilo dele me trouxe a tona uma coisa e acho que isso é um erro e uma tentação para todos que escrevem ficção histórica. Eu mesmo sei que caí nisso mais de uma vez. A gente fica na ânsia de explicar e mostrar um conhecimento interessante que temos sobre aquela época.

É difícil resistir ao impulso; mas é importante lembrar que nem tudo precisa estar na história, a não ser que contribua diretamente para ela. Ah, e apesar do glossário, tem muitos termos em aramaico/hebraico que atrapalham a fluidez da leitura.

Essa questão de descrições é sempre um problema, ainda mais em ficção histórica. No próprio livro tem várias que poderiam ser tiradas. Além disso, não entendo por que o autor insiste em começar cada capítulo com uma descrição geográfica do local. Isso acaba influenciando bastante na estrutura do livro.

De modo geral, o ritmo do livro é lento, de mas no meio fica mais lento ainda. Este é um perigo natural de um romance, que pode ter começo e fim arrebatadores, mas um meio que é extenuante e cansativo. No último 1/4, o livro dá uma guinada brusca para o realismo quase noir, mostrando a pobreza e humilhação

Eu sei que falei bastante coisa da qual discordo, mas o livro tem muitos pontos positivos. A história do livro é realmente emocionante (aliás, que enredo bíblico envolvendo Jesus não é?), fiquei com lágrimas nos olhos ou arrepios mais de uma vez. As orações que o autor põe na boca dos personagens são muito bonitas, é inegável.

Uma coisa interessante é que o autor denuncia abertamente a condição da mulher naqueles tempos. E ele está completamente certo. Naquela época sim havia um machismo muito forte. Havia ditados que comparavam mulheres a cães, vendo-as como impuras ou meros objetos/moeda de troca. O autor fez uma excelente defesa sem cair em ideologias nocivas. Coisa rara hoje em dia.

Além disso, a capacidade de imersão do livro é muito boa. A gente realmente se imagina lá na Terra Santa, vendo as coisas acontecerem. Claro, não por causa das descrições, mas pelas interações entre os personagens. Aliás, os personagens em si, apesar do que eu citei acima, são bem construídos pensando numa lógica narrativa.

Muito interessante mostrar que José e Maria SABIAM que quem nasceria não era uma pessoa qualquer, era o Messias prometido de Deus! Isto não era um fato leviano e eles com certeza tinham muitas dúvidas. De certo tratavam a questão com uma peculiaridade única. Também achei lindo imaginar que Jesus se tornou amigo de Lázaro, Marta e Maria ainda quando pré adolescente.

Agora o ponto mais alto do livro é o dilema de José. Este trecho abaixo representa bem suas dúvidas:
"O amor da mãe por seu filho nasce do amor do pai. E Ele não será meu Filho! Terá o Seu verdadeiro Pai, que estenderá sobre Ele e sobre Sua mãe o manto de Sua proteção. Eu serei sempre uma sombra. As sombras desaparecem quando surge o sol..." (p. 148)
Essa reflexão de José em sentir-se uma sombra por não ser o pai verdadeiro de Jesus reflete algo em nós. Quando Jesus veio e consumou sua obra na Terra, as coisas passadas se tornaram sombras daquilo. Mas, ainda hoje, há coisas que são apenas sombras, porque aguardamos o Seu retorno.

A entrega de José em saber que havia ali alguém maior que ele e que, necessariamente, brilharia com esplendor muito maior que o seu, é uma lição que podemos carregar deste livro e aplicar nas nossas vidas. O Filho dado a José para cuidar não era um menino qualquer. Esta humildade vale a pena cultivar em nossas vidas: 
"Não fui eu, pensou José, foi Ele..." (p. 269)