sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

2021: o resumo da ópera

Eu gosto de tradições, por mais que não as tenha muitas. Por isso fico muito contente quando chega o fim do ano e tenho esse espaço aqui para ponderar sobre o que aconteceu ou deixou de acontecer literariamente comigo no ano que passou. Por isso, sem delongas, vamos ao resumo.



1. Livros resenhados
    É, meus caros, a vida é feita de altos e baixos. Algumas vezes os altos são tão altos que a gente nem acredita – e isso serve pra fazer parecer que os baixos que se seguem são muito baixos, quando, na verdade, talvez eles nem sejam isso tudo (parabéns se você conseguiu entender o que eu quis dizer).

    2018: 27 livros
    2019: 37 livros
    2020: 40 livros
    2021: 21 livros

    Jan1) O ladrão honesto e outros contos; 2) Amor de perdição; 3) Feliz ano velho
    Fev4) Dillinger 5) A garota do lago
    Mar6) Cães de guerra
    Abr7) O trílio negro; 8) O trílio de sangue; 9) A análise da cadela procriadora; 10) A mãe
    Mai11) O trílio celeste
    Jun12) O idiota; 13) É todo um processo; 14) O livro dos seres imaginários; 15) A senhora do trílio; 16) Um deus passeando... 
    Jul17) Borderliners
    Ago18) Ana Karenina; 19) As conspirações para matar Hitler
    Set--
    Out--
    Nov20) Veríssimo antológico
    Dez21) O Silmarillion

    Foi o meu pior número nos últimos quatro anos? Foi. Teve vários momentos que eu estava com pura e simples preguiça de ler? Teve. Mas, sinceramente, eu olho pra trás e fico pesaroso? Não. 

    Não porque, como argumentei no ano anterior, a leitura ainda é pra mim um dos poucos hábitos que conseguem sobreviver sem que sejam feitos por obrigações. Prefiro ler 21 livros num ano com gosto, do que tentar repetir a dose dos 40 com desgosto. Neste ponto, portanto, me dou por satisfeito.

    A pior leitura de 2021 foi fácil "A garota do lago", que representou decepção atrás de decepção e aquela sensação de perda de tempo (embora, pra ser honesto, ela tenha competido pau a pau com a série do "Trílio", que foi também uma baita perda de tempo). 

    E apesar do ano ter terminado com Tolkien e eu realmente ter curtido bastante o Silmarillion, a melhor leitura do ano vai para o mestre Tolstói com "Ana Karenina", uma obra fantástica, densa, cheia de personagens interessantes e relações que refletem em muito a condição humana. Realmente curti.


    2. Concursos literários e produções

    Diferente dos outros anos, resolvi inovar. Resolvi adotar a estratégia do "vou atirar pra tudo que é canto na tentativa de acertar qualquer coisa". Por um lado, devo confessar que ela funciona quando olhamos para os números proporcionalmente (isso ficará mais nítido no gráfico). Por outro lado, é ainda mais desgastante você receber repetidos "nãos" ou sequer recebê-los. 

    Ainda no espírito da inovação, este ano vai uma tabela completa de todos os textos que enviei, com o título e o concurso para qual enviei. A tabela fala por si.



    Foram ao todo 35 contos enviados (quase o dobro dos 18 que foram enviados no passado). E disto resultou 6 seleções para publicação, que elevou também minha marca de 5 para 6 publicações num ano – o que não é grande coisa e fica ainda menos quando olhamos para o total de envios.

    Não tenho certeza se vou adotar essa mesma estratégia no ano que vem, porque sinceramente me dá mais tristeza do que satisfação em ver a tabela desse jeito e o gráfico a seguir também. Talvez seja melhor mirar no que é mais certo do que simplesmente sair atirando pra tudo que é canto. A frustração é grande depois.

    Conta a meu favor que lancei DOIS LIVROS em 2021: "É a vida: microcontos de risadas, amor e morte" em março e "Outros personagens não bíblicos e suas histórias" em dezembro. 

    Até agora não sei se isso foi bom ou ruim. Quem é da área diz que quantos mais livros lançarem é melhor, mas não sei se estou preparado pra essa vida de escrever, publicar e depois não conseguir vender o que tanto lutou pra fazer dar certo. 

    "É a vida" até que saiu bem pro contexto em que ele estava: tudo fechado ainda, não teve lançamento físico, não teve tanta divulgação, etc. Agora, "Outros PNB" tem sido uma grande tristeza. Saiu muito, muito, muito menos do que eu esperava – e olha que eu nem esperava tanto. Isto tem feito eu me questionar seriamente se ainda quero escrever livros. 

    Não quero ver acontecer comigo na Literatura o mesmo que aconteceu na Música: escrever composições apenas para as ver engavetadas sem nunca ter quem as execute e ficar pra sempre na expectativa do que pode ser, sem nunca saber o que será. Se for pra ficar assim, eu prefiro parar de escrever. Decepções já me bastam numa arte, não preciso de outra pra reforçar.


    #O resumo da ópera
    • Livros lidos: 21
    • Textos escritos: nunca que eu mantenho esse controle
    • Textos enviados pra concursos literários: 35
    • Textos aprovados: 6
    Ai, ai. Gostaria de terminar esse ano um pouco mais contente na Literatura. Mas pra ser honesto eu nem quero mais ter esperanças. O que será, será. No meio tempo, acho que vou voltar a me focar na Música, no trabalho, quem sabe nos estudos. E, claro, continuar tentando vender "Outros personagens não bíblicos e suas histórias".

    Acho que o que mais me entristece é que o livro é bom, ele realmente é! Estive relendo alguns contos dele um dia desses e me peguei surpreso com o que eu mesmo escrevi. Poxa, quem diria, a gente aprende com o tempo mesmo, né? Mas de que me adianta escrever a melhor das histórias quando não consigo fazê-la voar para alcançar o seu leitor? Como eu disse: ai, ai. 

    Mas não temam, o blog vai continuar com as resenhas, crônicas e registro de contos publicados (não que isso seja lá muita coisa), mas o Instagram vai morrer, pelo menos durante boa parte de 2022 – não pretendo voltar com ele até 2023. Resolvi ativar meu canal no Youtube, com apenas um vídeo por mês, variando entre dicas de literatura e microcontos narrados.

    No meio tempo, vejo-os por aí.

    sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

    Resenha – O Silmarillion

    TOLKIEN, J. R. R. O Silmarillion. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
    [No começo] "Havia Eru, o Único, que em arda é chamado de Ilúvatar." (p. 9)
    Isso que eu chamo de livro pra terminar 2021. Não apenas uma, mas quatro obras diferentes de Tolkien reunidas post-mortem neste livro organizado pelo seu filho Christopher Tolkien. São quatro grandes "baladas" ao estilo medieval, ou "poemas épicos", cheios de feitos grandiosos e aventuras de tempos antigos, narrados num estilo que lembra demais o Gênesis da Bíblia.

    Sinceramente não tenho muito a dizer sobre o livro, senão que é fascinante. A capacidade do autor de criar algo dessa magnitude... uau! Não é só a origem de uma cidade, de um país, ou de um mundo; mas de um universo inteiro e com direito a detalhes sociais, políticos e culturais cuja influência é sentida em todo o desencadear da história. Ou seja, não fala só por falar.

    Enquanto em Senhor dos Anéis eu achei o autor exageradamente prolixo (na moral, não me faz toda essa diferença saber qual é a cor exata do verde da grama!), já aqui eu achei que os detalhes servem muito bem ao propósito de nos imergir. 

    Talvez isso tenha se dado pelo fato de que não há muitas cenas pra gente se cansar, o livro é quase todo narrações de narrações – e, o mais surpreendente: funciona! Como escritor, eu ainda não havia visto algo assim. Há pouquíssimos diálogos se pegarmos a obra proporcionalmente, e as cenas também muitas vezes se resumem a poucos parágrafos, deixando lugar especialmente para descrições e narrações.

    Sobre a história em si, bem, por onde começar? Pela Música dos Ainur, cuja melodia foi iniciada pelo próprio Ilúvatar, tendo fim a criação de Arda e tudo o que existe? Pelas batalhas que ocorreram entre os Ainur e Melkor (um Ainur "caído") por causa da criação de Ilúvatar? Pela expulsão de Melkor para Arda, onde, na Terra-Média, ele passa a tramar pela destruição de tudo que é belo e foi criado por Ilúvatar, ocasião onde ele passa a se chamar Morgoth? Ou citamos os Filhos de Ilúvatar (os Primogênitos, ou Elfos, e Aqueles que vieram depois, os Humanos) e lembramos que eles são muito diferentes entre si, recebendo nomes conforme sua posição geográfica ou destinos? Ou quem sabe falar do servo mais fiel de Morgoth, Sauron, que permaneceu na Terra-Média depois que seu senhor foi derrotado?

    Eu sinceramente não saberia por onde começar.
    "Contudo, aqueles foram dias amargos, e ódio gera ódio." (p. 350)
    Eu acho que apesar de estas serem histórias de criação, belezas e grandes feitos, na verdade elas são, no fundo, histórias de guerra (e não são assim todas as histórias dos homens?). Quando não há batalhas, a paz dura por um tempo e logo já estão se preparando para o próximo conflito, seja ele contra Morgoth, Sauron, ou até mesmo entre os povos: elfos contra elfos, humanos contra humanos, ou uma mistura disso com anões, orcs, dragões, etc.

    Importante destacar que, como num bom livro de história, Tolkien não resume demais as batalhas e nos faz constantemente lembrar que a guerra não é bonita. Pelo contrário, é algo para se ter horror, porque dela só vem tristeza e destruição:
    "E os orcs os decapitaram e empilharam suas cabeças como um monte de ouro à luz do pôr-do-sol." (p. 247)
    As últimas páginas do livro sejam talvez as que mais interessem aos leitores, uma vez que é aquela mais diretamente ligada aos acontecimentos do Senhor dos Anéis. Ao abordar a cidade de Númenor e os dúnedain (humanos que foram escolhidos para morar na terra de Númenor e lá adquiriram grande sabedoria, riqueza e poder), ele traz revelações importantes não só sobre os antepassados de Aragorn, mas também como funcionavam as maquinações e maldades de Sauron.
    "Essas palavras o próprio Rei pronunciou, mas elas haviam sido maquinadas por Sauron." (p. 355)
    Neste assunto, também é interessante a menção à chegada dos istári (ou Magos) e o nosso favorito Mithrandir (como é conhecido no idioma élfico) ou, vulgo, Gandalf (como é conhecido entre os humanos). Já depois da aparente morte de Sauron após a queda de Númenor, é Gandalf que conversa com o elfo-rei Elrond e diz que:
    "[...] quando os Sábios tropeçam, a ajuda costuma vir das mãos dos fracos." (p. 368)
    Por fim, o livro termina com um senhor apêndice e glossário sobre os mais diversos termos no idioma élfico e até mesmo um guia de pronúncia de diversas palavras. Não dá pra negar que Tolkien era realmente um monstro da literatura, capaz de criar todo um idioma que soa tão bem e é tão completo. Só pra dar um exemplo, qual é a palavra para se referir a quando o Sol cintila na água da lagoa? Tolkien responde:
    "[...] ele a chamava de Faelivrin, que significa o cintilar do Sol nas lagoas de Ivrin." (p. 268)
    Bom, só dá pra dizer que o livro é realmente muito bom. É daqueles pra ser lido com calma, na certeza de que se está lendo algo muito bom. Não precisa rechear o livro de altas emoções em cenas épicas e mirabolantes. Não. 

    Basta contar uma boa história.

    quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

    Crônicas do cotidiano – XIII

    Estamos construindo uma varanda aqui em casa e, pela primeira vez, eu percebi que vou perder a vista da minha janela. Sei que parece óbvio, afinal a varanda vai ao redor da casa inteira. Mas é que eu preciso explicar o que é a vista da minha janela. 

    Ela dá pro muro e o quintal cheio de mato, só isso. Mas não é o que está embaixo, e sim o que está em cima. Dela eu vejo o céu. Todinho. Eu olho pra cima e minha vista é preenchida pelo azul, ou branco, ou cinza, ou aquele avermelhado que dá nas noites com nuvens de chuva. 

    Essa vista foi meu alento quando eu, trabalhando no computador que fica no quarto, podia virar a cadeira e olhar pro céu, ver os passarinhos voando, contemplar o contraste da árvore do vizinho com o azul potente que o sol fortalecia nos dias mais quentes. 

    Era dessa janela que, nas noites de cansaço, eu, deitado na rede, podia olhar e ver o céu escuro, negro, iluminado pela minha imaginação, já que as luzes da cidade não me permitiam ver as estrelas. Na verdade, quando faltava energia, eu conseguia ver as estrelas. 

    Essa vista não tem nada demais. Não é uma vista do mar, do alto de um prédio ou de um jardim florido. É uma vista talvez muito parecida com a que você tem na sua casa. Mas, e eu não sei explicar por que, ela significa muito pra mim. E não é assim na nossa vida? Aposto que você tem na sua casa algum objeto, algum lugar, algum meandro que, aos olhos do mundo inteiro, não é nada demais, é só mais um entre tantos outros iguais ou até melhores que existem. Mas não pra você. Pra você significa algo mais.

    E eu vou perder a vista da minha janela. 

    Eis o dilema da vida. Quando temos e nos acostumamos com o que gostamos, a mudança vem e transforma tudo, reiniciando o ciclo de aprendizado e acomodação. 

    Mas, por outro lado, que novas vistas eu não vou ganhar? Com a varanda, vou poder estender minha rede na parte de trás da casa, onde tem o ipê amarelo. Será que eu estou me contentando sem saber o que de melhor eu ainda posso ter? E descobri que esse dilema nunca vai ter fim. Assim como os ciclos se renovam, os dilemas se perpetuam, só mudam de nome.

    Por isso, eis o que é melhor: aproveitar essa vista enquanto eu tenho. Depois, quando tudo mudar, eu encontro novas vistas que me façam viajar, refletir e sonhar. 

    Agora está nublado e tem uns passarinhos no fio do poste. Não é nada demais. Mas é tão belo.

    segunda-feira, 22 de novembro de 2021

    Pé d'água

    Era um verão daqueles bem escaldantes de Roraima. Na maloca, os jovens faziam troça dele:

    – Bora! Não é o senhor que sabe a Dança da Chuva?
    – Esses curumins não têm mais respeito pelos velhos!

    Mas de tanto tirarem graça com ele, resolveu: se é dança que queriam, era o que iriam ter.

    Posicionou-se no centro da maloca e começou a entoar os cânticos antigos. Os meninos achando graça, os adultos balançando a cabeça como quem diz: “Imagine se eu em pleno século XXI ainda vou acreditar nessas besteiras!”

    Então aconteceu: caiu um toró. Mas não foi qualquer toró. É um daqueles que, se a gente está em casa, corre pra tirar as roupas do varal e torce pra não ter enchente; ou, se estamos no trabalho, coçamos a cabeça e tentamos decifrar como voltaremos pra casa.

    – Pois tome!

    O velho estava tão surpreso quanto os meninos. Décadas de dança da chuva nunca fizeram nenhuma diferença... mas agora não havia como negar a eficácia!

    Choveu aquele dia todo. E no outro. E no outro.

    – Sim, não dá pra fazer parar não? – os outros indígenas perguntavam.
    – Não me amole – ele se limitava a dizer.

    A verdade é que não tinha ideia de que a dança funcionaria e, agora que funcionou, tampouco tinha ideia de como reverter a situação. Ele não sabia nenhuma dança de não-chuva!

    Os meses passaram e a maloca virou uma palafita. Trocaram a plantação de mandioca pela pescaria diária. Os jornais do mundo inteiro relatavam a chuva torrencial na Amazônia brasileira. Um noticiário internacional resumiu:

    – Pense num toró!

    A comunidade, que no começo exaltou os poderes do velho, agora já não aguentava mais.
    – Faça alguma coisa!

    [...]


    Texto completo no e-book da 1ª Mostra Picuá de Cinema e Literatura, disponível aqui.

    sábado, 20 de novembro de 2021

    Resenha – A peste

    CAMUS, Albert. A peste. São Paulo: Círculo do Livro, 1987 (?).

    "Mas Rieux endireitou-se e disse, com uma voz firme, que aquilo era tolice e que não era vergonha preferir a felicidade.

    — Sim — disse Rambert —, mas pode haver vergonha em ser feliz sozinho.

    Tarrou, que nada dissera até então, observou sem voltar a cabeça, que, se Rambert queria compartilhar da desgraça dos homens, jamais teria tempo para ser feliz. Era preciso escolher.

    — Não é isso — disse Rambert. — Pensei sempre que era estranho a esta cidade e que nada tinha a ver com vocês. Mas agora que vi o que vi, sei que sou daqui, quer queira, quer não. A história diz respeito a todos nós." (p. 145)
    Fui descobrir que Albert Camus foi um ganhador do Nobel de literatura depois que já tinha terminado de ler e me surpreender com este livro. Novamente, mais um achado que ganhei por meio de uma doação. Rapaz, será que o antigo dono sabia a preciosidade que estava dando de graça?

    O livro é o que o nome diz. Numa pequena cidade francesa na Argélia começam a surgir sintomas estranhos, primeiro em ratos e depois nas pessoas. Os sintomas ficam mais graves e se espalham de maneira vertiginosa. Quando menos se espera, já não havia mais o que fazer: a peste bubônica estava instaurada na cidade. A única solução: fechar todas as saídas e entrar em quarentena até que tudo passe. Meu Deus... onde foi que já vi isso?
    "[...] Bastou que alguém pensasse em fazer a soma, e a soma era alarmante. Em apenas alguns dias, os casos mortais multiplicaram-se e tornou-se evidente, [...] que se tratava de uma verdadeira epidemia." (p. 29)
    Nós acompanhamos a história pelos olhos do Dr. Rieux, um médico que de repente se vê como um dos personagens principais no meio do caos da pandemia de uma doença incurável. Por meio dele é que vemos não só os acontecimentos, mas impressões fantásticas que ele têm sobre as pessoas, seus comportamentos e sobre a própria condição humana. 

    Tudo isso é feito de maneira extremamente sutil. Não há somente um, mas vários momentos em que Camus mostra por que foi realmente digno de um Nobel de literatura. Tem uma capacidade de falar de modo bem profundo, mas abordando temas simples e cotidianos. Quem lesse o livro buscando apenas o enredo, talvez até achasse chatas as passagens significativas como a abaixo; mas o bom leitor veria o escritor não apenas descrevendo uma cena, senão também derramando parte da sua alma no texto:
    "Sem dúvida, nada há de mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem de manhã à noite e optarem, em seguida, por perder nas cartas, no café e me tagarelices o tempo que lhes resta para viver." (p. 8)
    Creio que a leitura deste livro em outros tempos talvez trouxesse menor significância para mim; mas, vivendo hoje no meio de uma pandemia (um nível acima da epidemia!), não consigo evitar o fascínio com a capacidade do autor. Ele definitivamente fez seu dever de casa. 

    As pesquisas tornaram o cenário muito verossímil e explicou muito bem até às atitudes dos personagens. Ora, não é fácil descrever um período de tragédia quando não se vive ele. Mas, na descrição do autor, parece que está descrevendo o mundo atual. 

    Só pra dar um exemplo claro: não é de hoje que politica e peste se relacionam. Há uma cena em que o prefeito teme admitir oficialmente que é a peste chegou na cidade. Isto ocorre porque haveria uma série de implicações sanitárias e restritivas previstas em lei que ele seria obrigado a seguir como prefeito. Medidas estas que seriam bem impopulares. Ora... onde foi que já vi isso?
    "A peste, é preciso que se diga, tirara a todos o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia instantes." (p. 127)
    Antes de ir direto para o fim do livro, gostaria de destacar dois pontos que me chamaram a atenção. A primeira foi a cena inenarrável, uma exímia demonstração de habilidade: a cena da morte da criança. Que cena, meus amigos. Sem melodrama, sem exageros, sem grandes arroubos e, ainda assim, cheia de drama, cheia do exagero e arroubo que só a morte consegue trazer. 

    Uma outra característica interessante, é que o autor não acredita em heróis. Em mais de um momento ele afirma que não poderia destacar quem foi o herói da luta contra a peste. Foram os médicos? Foram aqueles que continuaram trabalhando nos serviços essenciais apesar do perigo? Foram os voluntários das diversas forças-tarefa que lutaram contra a peste em vários lugares? Como, como selecionar uma única pessoa, um herói, nesta multidão de heróis?

    E, se há vários heróis, já não faz sentido o próprio uso da palavra "herói", daquele que se destaca acima dos outros, daquele que traz sobre si as dificuldades em nome do bem do outro. Achei deveras bem interessante essa reflexão de Camus, porque quando olho para a minha própria epidemia (pandêmica), não consigo descordar das reflexões do autor.
    "Na verdade, era difícil decidir que se tratava de uma vitória. Era-se apenas obrigado a verificar que a doença partia como viera." (p. 186)
    No fim do livro (desculpa o spoiler) a peste termina. Fiquei um pouco sentida emocionado porque, para mim ainda não passou. E percebo que talvez isto seja verdade para o próprio autor. Há um sentimento bittersweet muito latente. Se por um lado a peste termina para os que sobreviveram e se reencontram com seus queridos, ela permanece para os que sobreviveram e agora não têm mais os seus queridos.

    Que final triste e ao mesmo tempo tão belo. Há algo na narrativo de Camus que mistura poesia com prosa. Pra ser bem honesto, até me lembra um 1pouco o que Shakespeare faz, misturando, além de tudo, uma boa dose de filosofia. Como pode esse povo escrever tão bem, a ponto de transmitir não somente o que está nas palavras, mas algo além delas?

    Não preciso dizer que fiquei bem impressionado com essa leitura, talvez, justamente, porque fui pra ela sem expectativa nenhuma, era só um livro doado e um passatempo enquanto não decidia se leria algo mais sério ou não. Caiu no meu colo cheio de seriedade e o tempo passou que nem vi. Leitura mais que recomendada.

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    P.S.: da série "coisas que a gente ganha com livros usados"


    Será que ganhava algum bônus se colecionasse vários selos? 

    sexta-feira, 19 de novembro de 2021

    Cotidiano

    Engraçado pensar como há 200 anos as pessoas achavam que 2221 seria “o Futuro”, né? Ah, porque a tecnologia vai revolucionar o mundo; ah, porque estamos numa nova era. Ah, porque isso e aquilo. Ai, ai. Eu só faço rir. Antigamente tudo era cheio de esperança. Não sei por quê.

    Aqui estou eu no metrô empanturrado de gente. Brasília ainda é a mesma coisa, especialmente os governos. Entra gente, sai gente, e nada muda. É a história do Brasil desde sempre. Tem carros voadores? Não tem. Tem gente morando na Lua? Não tem. É sério que todo mundo achava que o Brasil ia alavancar assim do nada?

    Do metrô consigo ver boa parte da cidade subterrânea e seus moradores. Todo dia preciso virar a cara, porque não tem quem aguente olhar para aquilo. Ah e não me venha com moralismos. Todo dia tem guerra na televisão e não vejo ninguém reclamando mais.

    O vagão está lotado por causa do horário. Uma velha está sentada próximo à saída. Ela tirou um dos olhos pra ajustar alguma coisa. Eu hein. Onde é que esse mundo vai parar. Não se sabe mais quem é quem. E ninguém se satisfaz mais.

    Saio do metrô e caminho pelos túneis intermináveis até chegar no meu elevador. Juro que um dia eu canso dessa mesmice. Olha lá, já estão trocando o letreiro de um dos Ministérios. Toda vez é isso. Governo novo, ministério novo, pessoas novas – e só isso, porque o resto é tudo igual.

    Quando finalmente chego no trabalho, o festival de burocracia continua. Não tem mais papel, pelo menos isso. Agora a gente faz tudo pelos cytrons. Francisco me cumprimenta:

    – Olá, Raul! – sorridente, ele caminha em direção a sua mesa.

    Eu respondo apenas com um meneio da cabeça. Manhãs não são pra mim e não tem quem me faça tomar aquelas pílulas de humor. Mexem demais com nosso corpo sem a gente saber. Ah! E nem me fale sobre coisas que fazem com a gente sem sabermos. Eita, aí eu ficaria aqui pra sempre.

    Engraçado isso. Às vezes eu tenho a impressão de que, na verdade, estive aqui desde sempre. Uma sensação estranha. Mas o ruim mesmo é o pensamento que vem depois: que eu vou ficar aqui pra sempre. Sento na mesa e tiro meu cytron do bolso. Conecto ele na tela à minha frente, que se ilumina e mostra as tarefas do dia. Eu suspiro e, resignado, começo a trabalhar.

    O dia transcorre sem absolutamente nada interessante. Nada. Eu queria ter alguma coisa pra te contar, mas não tem. Talvez quem more lá na Cidade Alta, na “Nova Brasília” possa te contar as últimas fofocas; possa te contar como estava a bolsa de valores e o que eles ganharam; possa, quem sabe, até contar alguma coisa que te faça rir.

    Na volta é o mesmo metrô, a mesma multidão, a mesma fuligem cobrindo a cidade, os mesmos canteiros com flores naturalizadas, outdoors com gente famosa e os moribundos pedindo esmolas. É tudo o mesmo que sempre foi.

    De novo estou fora do metrô e caminho em direção ao meu apartamento. É meu único alento, porque no caminho dele está o último bosque do Centro-Oeste. Uma vez eu li que “bosque” era uma espécie de floresta pequena, não um conjunto de cinco árvores. Mas não sei se é verdade. 

    Quando chego no meu prédio, lá está de novo um elevador. É o mesmo modelo que eu usei hoje de manhã. Tem vezes que quando estou dentro dele, não sei se estou indo pro trabalho ou pra casa. É tudo tão igual que eu me confundo.

    Em poucos segundos estou em casa. Entro no apartamento, jogo o casaco e a pasta em cima do sofá, vou direto pro quarto. Aff. Chega disso, chega, chega. Preciso é descansar mesmo. Não sei como se vive assim. 

    Tiro a roupa e deito na cama, hoje o dia foi daqueles. Que nem ontem, que nem amanhã. Puxo o cabo de trás do meu pescoço e ligo na tomada. Ah! Bem melhor. Digito no meu braço uns comandos e me deito tranquilo. Pronto. Por hoje é só e amanhã tem mais. Mais do mesmo que sempre foi.

    Conto selecionado e publicado no Podcast "Literatura Já!", disponível aqui.

    quinta-feira, 4 de novembro de 2021

    Resenha – Verissimo Antológico

    VERISSIMO, Luis Fernando. Verissimo antológico: meio século de crônicas, ou coisa parecida. Rio de Janeiro: Objetiva, 2020.


    Eu não ia, mas vou contar esse livro como lido sim. Ora, não tenho culpa se ele é uma bíblia e interminável. Afinal, são 50 (eu disse cinquenta) anos de crônicas e contos. Se eu, Gabriel Alencar, Escritor ao Acaso, produzi algo em torno de 600 microcontos ao longo de dois anos, que dirá um monstro como Luís Fernando Veríssimo.

    A verdade é que fiquei tão contente de ganhar esse livro direto das mãos do autor (contei essa história aqui), que resolvi lê-lo de uma sentada só. Eis o grande erro. Este não é um livro para ser lido assim, eu diria até que não é um livro para ser lido, mas consultado. Resultado: fiquei mais de dois meses lendo ele, nem terminei e ainda perdi o pique da leitura.

    A obra gigantesca de LFV é dividida no livro conforme as décadas em que ele as escreveu, começando em 1970 e indo até os 2010. Uma coisa que é bem fácil de notar é a crescente ironia do autor conforme o tempo passa. Na verdade, talvez cada vez mais um realismo duro e cruel disfarçado de humor (ora, mas não é isso o humor?).

    Este é um tópico que merece destaque. Luís Fernando Veríssimo foi praticamente o autor que inseriu a categoria de humor como "literatura séria" no Brasil. Antes, este gênero era excomungado a anedotas de escritores fracos, sendo os capacitados mais voltados à "alta literatura". Conheci até um grande jornalista que uma vez disse: "O que diabos aconteceu com esse cara?", referindo-se, claro, ao contraste com a obra de seu pai, Érico Veríssimo.

    Outro destaque é para as próprias crônicas do autor. Seriam elas mesmo crônicas? Mas que crônicas são essas que acontecem com personagens? Ah, então são contos. Mas... pera... essa aqui não parece ser um conto... Pois é. Luis Fernando Veríssimo tornou-se um mestre de escrever esses textos simples e envolventes que a gente não sabe nem classificar.

    Que a família Veríssimo é parte da minha história, isto já contei aqui também. E por isso não posso deixar de gostar do livro e de recomendar a leitura, muito embora agora eu reconheça que a leitura deva acontecer com parcimônia. Programe-se para ler ao longo do ano, talvez; quiçá intercalando após uma leitura pesada. Garanto que haverá material.

    Não tem como não se admirar com a obra do cara. Um dia, quem sabe, chego também a meio século de escritos – isto é, se algum deles prestar o suficiente pra sobreviver ao teste do tempo, né? 
    Veremos.

    quarta-feira, 15 de setembro de 2021

    O espírito do lavrado

    [...]

    — O que foi que eu fiz?

    Realmente foi loucura. Ele andou até se sentir atordoado. Encontrou outros cajueiros e saciou a fome com os frutos, foi de igarapé em igarapé, buriti em buriti. E o lavrado parecia infinito. E o horizonte não chegava nunca. Em certo ponto olhou pra trás e não viu nem sinal de seu carro, nem sabia onde o tinha deixado. E o desconhecido que nunca chegava. Ele começou a perceber isso. Já entardecia e o sol se punha, magnífico. Agora não parecia mais dar uma bênção, e sim decretar um ultimato. Sim, o imponente sol laranja deitava-se e dava o veredicto: Raimundo, você não conseguiu desvendar o lavrado. Você falhou. As pernas já estavam cansadas, aquele mato rasteiro incomodava, e ainda tinha os piuns. Argh! Sim. Esses são verdadeiros arautos do inferno. Carapanãs, mosquitos, pernilongo, piuns, o nome importava pouco ali. E eles estavam às centenas, talvez milhares, rondando o corpo ensebado de Raimundo. O cheiro do suor lhe era desagradável, queria e precisava descansar. O sol parecia ter sugado as energias, sentia-se exaurido.

    Mas e agora? O que fazer? Quanto tempo até alguém dar por sua falta? Será que já tinham percebido? Encontraram o carro? Mas quem ia saber? A família da Gabi pernoitaria no sítio, só veriam no dia seguinte. Raimundo do céu, o que foi que você fez?

    Nunca foi um homem do campo, mas sempre se considerou alguém prático. Pensou no que fazer. O mais viável seria encontrar uma árvore e ficar debaixo dela. Não havia ali mata fechada e o céu estava límpido, algumas estrelas já despontavam na boca da noite, engolindo o mundo com sua escuridão até a única luz ser a lua e algumas estrelas. Caminhou, caminhou, caminhou procurando alguma árvore sob a qual pudesse se abrigar. Temia ficar perto d’água, não sabia que animais poderiam visitá-lo à noite. Avistou um buritizal e estancou o passo. Ali estaria um igarapé, com certeza. Olhou ao redor. A única árvore que poderia fornecer alguma espécie de abrigo era um caimbé, a poucos metros. Ele quase não protegia do sereno, mas o tronco retorcido oferecia um lugar onde pudesse recostar-se. Aproximou-se e sentou-se ao seu pé.

    — O que foi que eu fiz?

    _______________

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    terça-feira, 24 de agosto de 2021

    Resenha – As conspirações para matar Hitler

    DARGIE, Richard. As conspirações para matar Hitler: os homens e mulheres que tentaram mudar a história. Cotia: Pé da Letra, 2020.


    Sabe aqueles livros que você compra no impulso? Daqueles que você tá só passeando, mas o título te chama a atenção, você olha o preço e "Meu Deus, é só 13 reais!", sabe? Pois é, esse foi um desses. Com treze reais hoje em dia mal se compra um bom lanche na padaria, então eu digo que valeu sim o investimento.

    O título é bem explicativo, são causos inseridos dentro de um contexto histórico específico, voltados para um personagem bem específico. Interessante notar que o livro não segue uma ordem cronológica e até a divisão temática é meio complicada, mas como é um livro de curiosidades, a gente pode perdoar. Temos algumas histórias bem interessantes mas quero ressaltar aqui apenas dois pontos que julgo os mais interessantes pra se registrar.
    "Para Adolf Hitler, no entanto, era uma evidência clara de que ele estava sendo preservado para um propósito. [...] confiando em seu profundo sentimento intuitivo de que estava sob alguma proteção especial, a qual ele chamava de Vorsehung ou Providência." (p. 9)
    O primeiro é que Hitler acreditava que ele tinha uma espécie de "propósito especial", uma força mística que o preservava para um grande destino. Isso ajuda a explicar muito de seu comportamento e também das suas táticas de guerra (que, lá pelo fim, foram muito questionadas pelos seus generais e até o levaram à imprudência).

    O segundo é que, meus amigos, como cientista político (internacional) eu digo: não podemos nos render à limitação do espectro político. Quando vemos as facetas do nazismo expostas em diferentes formas, percebemos como muitas vezes uma visão dualista de mundo nos leva a uma compreensão limitada, ou melhor, uma incompreensão da realidade tal como ela é.

    Em suma, o livro é bem agradável de ler, talvez mais agradável para aqueles que curtem uma boa dose de história, nomes de personagens e anos em alguns casos. De qualquer forma, temos histórias bem interessantes e algumas que são meio anedóticas. É um daqueles livros pra gente ler relaxando e aprendendo ao mesmo tempo. Super recomendo.

    quinta-feira, 19 de agosto de 2021

    Resenha – Ana Karenina

    TOLSTOI, Leon. Ana Karenina. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005 (Clássicos de bolso).


    Certo estava Érico Veríssimo: sou uma vaca sentimental. Que livro absolutamente delicioso de se ler! Daqueles que a gente pega sem saber o que encontrar e, quando menos espera, lá estamos nós vivendo o drama da infiel Ana Karenina e Vronski, ou o amor apaixonado de Levine e Kitty... ah, mas me adianto.

    Vamos começar, como sempre, falando dessa edição que me foi emprestada por um colega de trabalho. Pra ser bem honesto, foi uma diagramação chata de ler, faltou deixar espaço na margem interna, a gente tem que inclinar o livro todinho pra conseguir ler as letras do canto. Ler durante o dia até que vai, mas à noite a gente fica penando.

    Paradoxalmente, pense numa leitura agradável de fazer. Os capítulos curtos são um convite que os bons leitores não conseguem evitar, o famoso "só mais um pouquinho". Agora é interessante que não é um livro pra ser lido com pressa. O autor nos convida a um desfrutar parcimonioso das cenas, de alguns detalhes até desnecessários porém ainda imersivos o suficiente, e do lidar dos personagens

    A transição entre cenas é perfeita, consegue ir direto ao ponto sem ficar enrolando, imerge a gente com três ou quatro palavras certeiras. Impressionante, há muito não via algo assim. Aliás, o autor é sábio em não ficar com rodeios pífios quando a situação é óbvia: pintou um clima entre dois personagens e o leitor já sacou? Pronto, não tem por que ficar fazendo mistério, todo mundo já sabe, bola pra frente. Isso torna a obra mais honesta 

    Interessante notar o contexto da época. Quando o livro foi escrito, já eram tempos de Pax Britannica e vejo reflexos disso no texto. Embora as expressões francesas não se deixem de fazer presentes, com cada vez mais frequência surgem as em inglês, mostrando a influência na sociedade russa (se bem que era em todo o mundo, né).

    Agora vamo falar do que eu considero a alma do livro. No começo, o fato de haver muitos personagens me deu a impressão de que a narrativa seria bagunçada. Engano meu. Apesar da constelação de pequenos núcleos e individualidades, tudo se conecta magistralmente ao mesmo tempo em que nos ligamos com cada um dos dramas dos personagens. Um exímio trabalho que poucos conseguem alcançar.

    Fico triste pelo marido da Ana Karenina, que não é sequer um homem mau e ainda se vê nessa situação ridícula, nesse buraco que a esposa cavou e insiste em se afundar. O trecho abaixo é extremamente revelador:
    "Aléxis Alexandrovitch, tão enérgico quando se tratava dos interesses públicos, sentia-se impotente. Como um boi que vai ser morto, abaixava a cabeça e esperava resignadamente o golpe fatal." (p. 116)
    No meio do caminho há quase um ensaio sociológico sobre o trabalho. No começo achei interessante, mas pro final cansei um pouco. Não obstante, revela muito da sociedade da época e dos dilemas que enfrentava. Engraçado que enquanto isso é a alma de Dostoiévski, aqui não é o tema mais forte do livro. Não obstante, há frases que mostram bem o drama da questão:
    "Eu trabalho, sacrifico-me por um fim e esqueço que tudo acaba... Que é indispensável morrer." (p. 247)
    "Quando foi preciso trocar sua primeira nota de 100 rublos para vestir o porteiro e o criado [...] Pensou que aquele dinheiro representava o salário de dois trabalhadores por ano, da madrugada à noite [...]" (p. 451)
    Em determinado momento me perguntei se, já no último 1/4 do livro, dar falas a um personagem que se manteve silente até então foi uma boa pedida. Mas pior que funcionou porque foi emocionante. Aprendi portanto a não subestimar a inserção de novos personagens de modo pontual, quando isso serve para fortalecer ou jogar luzes ainda mais claras sobre o dilema de outro (refiro-me ao filho da Ana Karenina, que ganhou falas poucas, mas interessantes para enrobustecer o dilema da mãe).

    Creio que o tema principal do livro está ligado a um moralismo. Tolstói disfarçou mas enfim chegou no amago da questão que tentou disfarçar: a romantização do adultério. Conquanto não tenha feito isso de modo abrupto, colocando o casamento feliz e saudável como contraste ao adultério, não se pode negar que ficaram alguns resquícios do desejo pela "liberdade" por alguns personagens. Espero que, pelo menos, o leitor possa ver o quanto, na verdade, isso resultou apenas em libertinagem e prejuízos.

    O próprio final do livro é bem moralista, dando lições por meio das falas do personagem e as últimas linhas são quase uma palestra motivacional. Aliás, o final me pareceu meio demorado. Sabe quando já aconteceu tudo que tem pra acontecer? Depois que disso, não dá pra ficar segurando o leitor por muito mais tempo, o fôlego acaba. Tenho a sensação de que o autor poderia ter economizado algumas páginas no final pra deixar uma impressão mais forte.

    Não obstante, o livro é MAGNÍFICO! Não se torna um clássico à toa. É genial, uma obra incrivelmente bem trabalhada, daquelas que a gente tem orgulho de ter na estante e de já ter lido. Aliás, como foi um livro emprestado, já vou começar a procurar promoções e colocar ele definitivamente na minha biblioteca. Não tenho dúvida que o revisitarei no futuro.

    sábado, 17 de julho de 2021

    Crônicas do cotidiano – XII

    Deu uma vontade súbita de escrever alguma coisa. De ouvir as teclas batendo enquanto palavras surgem na tela. Não há nada de tão especial nisso, a gente faz todo dia. Mas, ao mesmo tempo, não é um pouco mágico?

    Stephen King diz que escrever é telepatia. No começo achei meio absurdo, mas hoje vejo que ele está certo. Que mistério é esse que faz com que toques dos meus dedos transmitam ideias para outras pessoas? E, mais ainda, se eu tivesse capacidade de escrever algo muito bom, como isso poderia afetar a vida de outras pessoas.

    Certa vez, Érico Veríssimo estava num jantar e perguntaram-lhe:
    – O senhor acredita que o que você escreve é capaz de mudar uma vida?
    Érico deu de ombros como quem diz "Claro que não, né?", mas respondeu simplesmente:
    – Não acho.
    Então o homem passou a relatar-lhe a vida de seu sobrinho que, após ler um livro de Érico, largou sua profissão e voltou para a faculdade a fim de se tornar médico.
    Contra fatos, não restaram argumentos a Veríssimo.

    Existe algo de mágico sim, de delicioso em sentir as ideias fluírem e explodirem na mente de outra pessoa. Não há materialismo no mundo que consiga simplificar isso. De onde vêm as ideias? Para onde vão? Gosto de perguntas que fazem a gente pensar. Na verdade, sinto falta de diálogos e discussões que façam a gente pensar.

    Volta e meia acho que me faria bem deixar-me levar por essas vontades súbitas de escrever alguma coisa. Vai que numa dessas sai algo de bom.



    sábado, 10 de julho de 2021

    Resenha – Borderliners

    HØEG, Peter. Borderliners. New York: Picador, 2007.


    Ô livrinho sofrido, viu? Veio parar nas minhas mãos por meio de uma troca literária e eu resolvi dar uma chance. A sinopse apontava para uma aventura distópica de crianças numa escola onde tudo era muito bem controlado e ainda a figura de um líder quase místico por trás de tudo. Pensei: por que não? A resposta deveria ter sido: porque não. Mas vamos à resenha.

    Logo no começo eu já achei tudo confuso demais. Pra ser bem honesto, eu não teria entendido nada nos primeiros capítulos se não fosse pela sinopse atrás do livro. Entendo o apelo necessário ao gênero da distopia, mas achei exagerado. Só depois que fui entender que esse é o estilo do livro: bagunçado e digressivo.

    Eu já havia lido textos com narrativa difusa, em que um fio muito tênue de trama compõe o caminho que o leitor vai seguir. Foi preciso ativamente ligar o switch e entender que era uma narrativa difusa, onde pensamentos, ações, reminiscências, etc., tudo se mistura à narrativa da trama propriamente dita. Não tenho como explicar direito, só lendo pra entender... ou não entender, que, imagino eu, seja o caso.

    O autor brinca com a ideia da loucura (ou pelo menos os limites da normalidade) como porta para entender algo mais profundo. Não é o primeiro e tampouco será o último a ver na loucura um caminho para a verdadeira liberdade – é novamente uma revisitação a Nietzsche e sua moralidade, imagino eu.

    As digressões são compreensíveis, uma vez que a história é contada do ponto de vista de uma criança/adolescente traumatizado. Porém, ainda que plausível, essa escolha do autor deixou o livro muito pesado, cheio de cacoetes. A narrativa poderia ser mais limpa e ainda assim transmitir este sentimento de incômodo ao leitor. 

    Leva tempo demais até chegar na questão. Sinceramente só vamos entender o que está acontecendo de modo mais evidente lá pela página setenta e pouco, conforme as citações:
    "During those ten years your time will be strictly regulated, there will be very few occasions when you are in doubt as to where you should be or what you should be doing, very few hours altogether where you have to decide anything for yourself." (p. 78)
    "There is a selection that takes place. People are selected according to the laws of nature. The school is an instrument dedicated to elevation." (p. 79)
    Do meu ponto e vista há pelo menos duas falhas estruturais na história. A primeira é que as crianças não estão realmente em perigo e isso faz com que a gente não se importe muito com o destino delas. Os seus próprios transtornos e paranoias são as principais fontes de movimento pra história e até isso é reservado a uns poucos momentos decisivos, cheios de digressões entre eles.

    A segunda falha é que, embora haja uma conspiração de fato, ela é, no entanto... benéfica, eu diria. Não é uma conspiração para fazer algo ruim, mas para algo bom! Pra completar a situação, a escola e o "ditador" sequer empregam a violência como meio para alcançar os fins (justificativa essa que seria clássica das distopias). 

    A escola quer impor a ordem por meio de horários definidos, disciplinas bem ensinadas, comportamentos orientados e etc. Como isso é ruim para crianças desajustadas cujo destino fora da escola seriam os orfanatos ou, em alguns casos que vimos no livro, até mesmo o reformatório? Sinceramente não vejo motivação o suficiente para todo o alarde que o livro quer fazer.

    Aliás, bote alarde nisso. O autor adora terminar parágrafos com frases marcantes ou de efeito porém que, de fato, não servem para quase nada senão tentar atingir esse propósito. Não são frases moralistas de revirar os olhos, mas elas cansam pela repetição e, justamente por isso, também perdem a sua eficácia.

    A dúvida que fica seria: então por que gastei meu tempo lendo? Bom, tenho que pensar que sou, afinal, um Escritor ao Acaso. Por conta disso, achei que seria interessante ter contato com uma narrativa não linear (embora essa não tenha sido a primeira vez que o fiz). Pra ser honesto, lá pro final já estava até me acostumando com a loucura, com as narrativas fora de ordem cronológica, com as digressões e as reviravoltas pífias. É a vida, eu acho.

    No fim das contas, o livro entrou para a pilha de doações, porque não tem nem perigo desse troço ficar na minha estante. Chato que dói, talvez valha apenas como exercício acadêmico. Mas se você é um leitor que quer apenas passar seu tempo e desfrutar de uma boa leitura, então, nesse caso, eu não recomendo.

    quarta-feira, 30 de junho de 2021

    Resenha – Um deus passeando pela brisa da tarde

    CARVALHO, Mário de. Um deus passeando pela brisa da tarde. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.


    Esse livro foi uma agradável surpresa. Emprestado por um colega de trabalho, eu não estava botando muita fé quando comecei. Mas não demorou quase nada para me ver fisgado pelo livro de um autor português contemporâneo – e eis aí uma novidade: eu curtindo um livro de autor contemporâneo. Mas vamos à resenha.

    Essa história aqui se passa na cidade de Tarcisis, no século II d.C., onde acompanhamos a história de Lúcio Valério Quíncio, o duúnviro da cidade (uma espécie de prefeito). Na sua administração, ele terá que lidar com a ameaça da invasão dos mouros, politicagens entre cidadãos da própria Tarcisis e ainda sua atração por uma mulher vinculado a uma seita considerada perigosa pelo império romano: os cristãos.

    Esse livro é de ficção histórica, mas é facilmente algo que poderia ser ficção cristã. Acho que hoje em dia este último ainda tem um aspecto mais "confessional" ou "preachy", no sentido de não apenas contar uma história, mas informar (de certa forma) uma fé. Creio que meu primeiro livro se encaixe bem neste último. A diferença para a obra de Mário de Carvalho, é que ele fez isso totalmente pelos olhos de um não-cristão – o que também foi muito interessante.

    O livro é escrito num português culto e fluido ao mesmo tempo, de um jeito que há um bom tempo não via. Pra se compreender absolutamente cada palavra, me pergunto se alguém conseguiria ler sem consultar um dicionário. Ao mesmo tempo, porém, não creio que seja aquele português erudito e quase esnobe de Machado de Assis. O autor consegue fazer uma combinação fascinante de elegância e acessibilidade ao mesmo tempo.

    Gostei de ver na obra o sentimento de cotidiano trazido em momentos pontuais. Por exemplo, interessante a descoberta das camadas mais pobres pelo rico duúnviro. Sentimento de que existem outras histórias além da sua, não raro tão complexos e interessantes quanto, se não mais.

    O autor fez um trabalho de pesquisa absolutamente sensacional. Não são apenas termos, mas ele realmente reproduz uma sociedade da época. Eu que estudei algo nesse estilo, sei como é difícil encaixar tudo sem que soe acadêmico demais, sem que o autor se deixe levar pela ânsia de colocar no livro tudo que se esforçou pra aprender.

    Confluência de acontecimentos natural, bem encadeada e, o melhor, não segue uma fórmula padrão hollywoodiana. Achei maravilhoso perceber que o personagem se desenvolve sem pressa, que os conflitos e problemas vão surgindo de modo quase inevitável, não são forçados. Muito bom sentir que o autor está realmente caminhando conosco pela história, sem forçar nada goela abaixo.
    "Por mais que eu quisesse esquecer-me, ou deixar os cristãos para depois, havia sempre alguém que mos vinha lembrar." (p. 120)
    Não poderia deixar de comentar sobre a seita perigosa que surgiu em Tarcisis. Ao duúnviro informaram sobre gente que se reunia e praticava rituais macabros como sacrifícios humanos, orgias e crimes. Acusados de obscenidade por juntar num mesmo ambiente cidadãos e escravos; de envenenar os poços da cidade; de promover a desordem e o caos social. A seita terrível: os cristãos.

    Foi muito interessante ver como o povo de Deus era visto naquela época pelos ímpios e, mais, como estes reagiam àqueles. A perseguição social começou branda, mas não tardou a ficar cada vez mais intensa, até chegar o ponto em que os fiéis foram acusados publicamente e precisaram fazer a escolha fatal: renunciar ao seu Deus e cultuar o imperador, ou morrer. 

    O livro é mais do que recomendado, muito bem escrito e concatenado. Tenho agora que colocar ele na minha lista de compras e esperar uma promoção ou um presente (#ficaadica), porque esse eu li emprestado. Mas é tão bom que posso garantir que vai entrar pra minha estante.

    Resenha – A senhora do trílio

    BRADLEY, Marion Zimmer. A senhora do trílio. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.


    Sabe quando você se arrepende do tempo que perdeu fazendo alguma coisa? Pois é, foi assim que me senti quando terminei esse livro. Já tendo lido todos os outros da série Trílio, eu sabia que não deveria esperar muita coisa; mas, putz, foi o fundo do poço.

    Depois de vencer o preconceito peguei o livro. Tudo já começa errado. Esse livro foi escrito antes do Trílio Celeste e simplesmente ignora tudo que aconteceu naquela história. É como se o leitor tivesse sido transportado para uma realidade paralela onde nada aconteceu e ele tem que se satisfazer em ver novamente a arquimaga Haramis se comportando feito uma adolescente numa história sem pé nem cabeça.

    Isso sem falar no começo muito abrupto da história. A criança (moça de 12 anos de idade) vê seu amigo de infância ter a cabeça arrancada e no momento seguinte está viajando e se aventurando animada nas ruínas da cidade perdida. Gente, que isso? Pra piorar: essa é uma constante do livro. Coisas sem sentido a torto e à direita.

    Clichês e mais clichês. Diálogos explicativos desnecessários, cenas totalmente descartáveis, personagens ora super maduros, ora pueris. Até a própria arquimaga tem comportamentos que não fazem sentido às vezes. A autora introduz temas do nada e depois os deixa morrer no parágrafo seguinte como se nada tivesse acontecido.

    Chamado à Aventura fraquíssimo, um festival de simplificações, personagens-tampão e um calhamaço de "contar" em vez de "mostrar". Sinceramente, eu devia ganhar um prêmio por ter aguentado esse livro até o fim. A autora sequer se deu ao trabalho de criar um nexo que desse unidade à história do começo ao fim, foi simplesmente jogando as coisas e empurrando com a barriga.

    Caramba, será que isso era uma época onde ainda não havia pipocado autores de fantasia e por isso os poucos que havia faziam sucesso? É a única explicação que posso encontrar pra um livro tão fraco como esse ter ido tão longe. O meu chute aqui é que: 1) o livro só vendeu porque a autora já tinha outras produções de sucesso; 2) a autora não queria escrever isso e foi obrigada.

    Os heróis não tem inimigos, não têm um objetivo definido, não têm uma jornada. A gente só vê eles sorrindo e pululando em aventuras e desenvolvimentos pífios. Fica bem claro que eles não correm perigo, a gente não tem como se preocupar com eles ou engajar com seus problemas. Já vi livros infantis pra bebês com mais estrutura do que essa porcaria.

    Não vou entrar em detalhes como a sucessora da arquimaga, Mikayla, ser uma jovem de 12 anos e ter um comportamento totalmente incondizente; não vou comentar a hora que ela resolve se unir a uma Seita maligna sem sequer perguntar quem são eles; não vou falar do abutre albino que ela encontra do nada e que serve de transporte pra ela por conveniência; não vou falar dos feitiços que envolvem lágrimas e sangue e ela executa como se fosse passar manteiga no pão; não vou falar do sacrifício estúpido e gratuito que ela poderia simplesmente ter ignorado e seguido com a vida; e isso tudo sem falar dos inuendos sexuais gratuitos que a autora traz à tona e ignora no parágrafo seguinte. Em suma, não vou falar sobre com minúcias sobre as imbecilidades que esse livro tem, porque eu, ao contrário da autora, respeito o tempo do meu leitor e quero que ele ganhe alguma coisa com sua leitura.

    Só o que posso fazer, novamente, é ficar abismado com o fato deste livro ter chegado a estantes de tantos lugares. Uma clara jogada de nome e fama, não de conteúdo. Esse livro vai pra doação por falta de opção, porque é tão ruim que minha vontade era jogar fora.

    sábado, 26 de junho de 2021

    Resenha – O livro dos seres imaginários

    BORGES, Jorge Luis; GUERRERO, Marieta. O livro dos seres imaginários. São Paulo: Globo, 2000.


    Essa será uma resenha bem curta. Este livro veio parar nas minhas mãos só porque um colega resolveu me emprestar. Eu por mim não sei até que ponto curto Jorge Luis Borges. Acho que ele se encaixa na mesma categoria de Machado de Assis: intelectual demais pro meu gosto. Mas vamos ao livro.

    Borges fez uma enciclopédia de animais fantásticos. Ele seguiu o modelo dos "bestiários", que eram realmente compêndios de fauna exótica escritos durante a Idade Média, um verdadeiro catálogo de diversos animais (alguns deles até imaginados mesmo).

    Não sei dizer até que ponto ele criou informações, porque várias das entradas (e há muitas delas) contém referências a outros livros e até mesmo citações de outros autores. Não fosse zoologia fantástica, eu até classificaria esse livro como acadêmico. Eu diria até que não é um livro pra ser lido de uma vez, mas consultado de vez em quando. 

    Interessante notar que Jorge Luis Borges não tem pena do leitor. Ele conta as coisas com o trem já em movimento e você que se vire pra acompanhar o tranco. Via de regra, a gente consegue, mas quase sempre com a certeza de que perdeu alguma coisa no meio do caminho e precisa voltar pra pegar. Por um lado vejo que isso é bom, por outro, o leitor fica com a constante sensação de ter sido deixado para trás – é o problema que falei sobre um texto "intelectualizado" demais.

    Acho que o tradutor poderia ter feito a cortesia de traduzir os textos em espanhol. Sei que há uma série de escolhas editoriais por trás, mas do meu ponto de vista é o leitor que deve estar no centro das preocupações. Que a maioria dos brasileiros vai conseguir ler o espanhol isso não é problema, mas a fluidez do texto fica comprometida.

    No fim das contas, o livro é deveras bem interessante por funcionar como um bestiário e ter uma excelente compilação de dados. Não dá pra negar que o autor foi bem abrangente sem, ao mesmo tempo, tornar o texto cansativo. Não sei como recomendar essa leitura, só me resta repetir: achei interessante.

    quarta-feira, 23 de junho de 2021

    Resenha – É todo um processo...

    NOVA, Duda Vila. É todo um processo...: histórias de um judiciário que você não vê na TV. Alagoinhas: UICLAP, 2021.


    Este livro representa pra mim exatamente o estado da arte dos novatos escritores brasileiros contemporâneos: excelente premissa, péssima execução.

    A começar pela premissa: causos dos bastidores do Judiciário brasileiro. Excelente! Quem não gostaria de ouvir o que acontece por trás dos panos? Que histórias esse pessoal não deve ter pra contar sobre juízes, advogados, e outras personalidades do mundo jurídico? Interessante, quero ouvir!

    Execução: em vez do autor ser honesto e simplesmente dizer o que quer falar (as histórias), não. Ele resolve criar cenas, inventar personagens e tentar nos familiarizar goela abaixo com eles pra então contar o que realmente interessa: os causos.

    Cara, ninguém quer saber do personagem. Ele é praticamente uma nota de rodapé. O autor perde muito tempo caracterizando as pessoas, enchendo os contos com novos personagens a torto e à direita, só pra lá no final chegar no âmago da questão, que era o que realmente importava desde o início. Até em histórias em que o personagem é bem importante, o autor perde um horror de tempo contando vários detalhes inúteis da vida egressa ou então gastando linhas com caracterizações totalmente descartáveis para o enredo.

    Foi uma verdadeira luta conseguir ler o livro até o fim. Já no primeiro 1/4 tava com raiva do tempo que o autor estava fazendo eu perder. Era possível pular vários e vários parágrafos sem que isso afetasse em absolutamente nada a compreensão do texto ou a "familiarização" com os personagens. Histórias que tinham tudo para ser boas como o "Dormientibus...", acabaram sendo perdidas com a necessidade de criar toda uma situação pra uma personagem, que no fim das contas nós descartamos logo em seguida.

    No conto "Jandira", eu até entendo a opção do autor por colocar um "caboquês" no texto. Mas ele cai no erro do exagero. Quando colocamos regionalismos no texto ou coloquialismos, isso tem que ser feito com cuidado, porque senão emperra a leitura. A gente já entendeu que a personagem é uma mulher simples e pouco letrada, não precisa forçar o diálogo com essa grafia maluca. O leitor não precisa ser lembrado de absolutamente cada detalhe do texto, ele (no caso eu) é inteligente o suficiente pra montar a cena na própria cabeça.

    De longe o melhor conto foi "O crime não compensa". Não porque ele seja bom em si, mas é que, comparado com os outros, ele foi o que chegou mais perto de ser uma história interessante de ler, que foca no que acontece nos bastidores, nos causos mesmo, e não na perda de tempo em situar cenas.

    Existe, tranquilamente, muita coisa que dá pra cortar. Excessos como definir o ano e modelo do carro, destacar minutos e segundos, trazer à tona minúcias que são totalmente desprezíveis tanto para entender o personagem como para fazer o enredo caminhar. Só enche o livro e as páginas, perdendo tempo.

    Sobre a edição em si, não há muito o que falar. Autores independentes brasileiros não têm condição de fazer nada lá muito elaborado (eu incluso), então dá pra perdoar. Mas na capa penso que foi erro do autor colocar seu nome em preto com fundo escuro, quase não dá pra ver.

    No final, a última página tem o currículo do autor. Pelas publicações que ele tem em seleções que eu sei que são difíceis, não posso dizer que ele não tenha capacidade de escrever coisa boa. Só sei que, neste livro, não teve muita coisa para me acrescentar. Perdi meu tempo e desde já informo que o livro está disponível para doação.

    sexta-feira, 18 de junho de 2021

    Resenha – O idiota

    DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O idiota. 3ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2015.


    Galera, vamos começar falando dessa edição. Pra ser bem honesto com vocês, assim que eu peguei o livro e vi que era da Martin Claret me deu um frio na espinha. Não precisa ser muito literato pra saber que essa editora é ruim que dói e tem umas edições deploráveis de clássicos. Mas, para minha surpresa, dessa vez ela acertou! Não sei quem foi contratado por lá, mas deu certo. Edição maravilhosa! 

    A tradução foi muito bem trabalhada, inserindo aí traços de coloquialismos que são tão importantes para a obra de Dostoiévski, que decididamente não escrevia para elites. Temos palavras simples e até algumas expressões que soam estranhas quando lemos histórias "de época", mas que são totalmente verossímeis e se encaixam como uma luva na obra.

    Mas eu me adianto, vamos voltar um pouco. Em linhas gerais e à guisa de sinopse, este livro conta a história do príncipe Míchkin e suas aventuras na sociedade russa do fim do século XIX. Ele é um cidadão simples, embora tenha título real não é rico e acaba se relacionando com personagens como a belíssima mas imprevisível Nastássia Filíppovna, o dúbio amigo-rival Rogójin e a família Epantchín.

    Embora Míchkin seja doente e epilético, nosso herói é chamado de "idiota" porque, no fundo, é uma pessoa boa e não faz joguinhos de segundas intenções igual aos outros. "Idiota" porque é alguém simples, ingênuo e (por causa disso) com pouco tato social. Nas palavras do próprio autor:
    "Mas Michkín não via nada pela outra face, não sabia reconhecer correntes submarinas." (p. 677)
    Quanto à estrutura do livro, ele é divido em quatro partes. Lembro que assim que terminei a parte I do livro, me peguei pensando que se Dostoiévski tivesse vivido na época do capitalismo, tê-lo-iam acusado de burrice. Acontece que essa primeira parte é tão boa, tão completa e termina de um jeito tão impactante, que teria sido mais inteligente fazer uma série ou trilogia, em lugar de juntar tudo num lugar só. É brilhante, é fascinante. É um absurdo de bom. As outras partes nem tanto, mas esta primeira foi sensacional.

    Passando à resenha, no quesito de técnica literária, interessante como, com o passar do tempo, nossos olhos se abrem para algumas coisas que não conseguimos ver antes. Não é a primeira vez que leio Dostoiévski e tenho certeza de que esta não foi a primeira vez que ele fez isso: um monte de "tell" em vez de "show", ou seja, em vez de mostrar as cenas, ele simplesmente passava por alto, inclusive sem mostrar exatamente o que os personagens falavam.

    Já é a segunda vez em pouco tempo que vejo um escritor renomado fazendo isso (a primeira havia sido Emily Bronte, resenha AQUI) e novamente eu fico aqui me perguntando até que ponto a máxima "mostre, não conte" deve ser levada como absoluto em todos os casos. Não digo que eu tenha cacife pra quebrá-la assim de chofre, mas que, pelo menos, possa ousar de leve quando a situação permitir.

    Até agora não consegui descobrir o que há em Dostoiévski que fisga a gente de um jeito tão certeiro. No fundo, acho que é seu realismo combinado com uma linguagem franca, como nós realmente entramos nas cenas dos personagens e seus sentimentos. Aquela descrição que ele fez do cadafalso, nossa!, foi de arrepiar e ao mesmo tempo capturou minha atenção de modo que não tive escolha senão ler tudo. Veja só esses trechos:
    "Ficou tão desconcertada que nunca mais abriu os lábios. Naqueles outros tempos o povo ainda era bom com ela, mas quando voltou, escangalhada e doente, ninguém mais teve pena." (p. 90)
    "Despojado de tudo, e de tudo carecendo, outra coisa não sendo aqui embaixo senão miserável átomo no vórtice da circulação humana, natural é que ninguém me respeite e que eu não passe de um joguete para o capricho alheio, sendo apenas pontapés a vantagens que de tudo isso me resulta." (p. 255)
    Ah, e outra coisa! É reviravolta atrás de reviravolta! A trama fica cada vez mais complexa a cada capítulo. Impressionante! Na verdade, tem vários capítulos que terminam praticamente num cliffhanger, ou seja, força você a continuar a leitura pra saber o que vai acontecer. Tática velha, mas eficaz.

    Existe uma coisa que Dostoiévski e Érico Veríssimo fazem que é uma espécie de contrassenso literário: eles contam histórias e causos que em nada contribuem para o enredo; mas que são terrivelmente fascinantes e se não estivessem no livro, seria um buraco. Histórias simples, causos de personagens, mas que fisgam e dão trechos interessantes como esse:
    "E em seguida, de uma vez para sempre, completo vácuo, tudo acabara, fora deixada sozinha, como... mosca execrada desde o começo do tempo." (p. 191)
    Não é sempre que um autor faz referência a seus heróis por meio de seus livros. Aqui, ouso dizer que Dostoiévski mostrou uma de suas influências: tão somente, Dom Quixote de La Mancha, por Miguel de Cervantes.

    Mas o que mais apaixona no livro é o estilo e o conteúdo do próprio Dostoiévski. Cheguei a comentar isso em outra resenha dele (creio que foi nos Irmãos Karamazov): não canso de me assustar como os dilemas trazidos pelo autor podem ser tão contemporâneos. Ele fala da Rússia czarista, eu falo do Brasil do século XXI e tanto eu como ele não temos escolha senão concordar com Lizavéta Prokófievna e dizer:
    "Arre! Tudo está de pernas para o ar, tudo está de cambalhotas!" (p. 360)
    Ou então o trecho o herói do história, o príncipe Mitchkin, comenta:
    "— Apenas quis significar que uma perversão de ideias e de concepções — conforme se expressou Evguénii Pávlovitch — com a qual nos defrontamos muitas vezes, é, infelizmente, muito mais a regra geral de que um caso excepcional." (p. 426)
    Temos aqui, como não poderia deixar de ser, vários personagens doentes. Aliás, me parece que a grande doença de Michkin é a bondade em excesso, o auto-sacrifício não saudável, que leva à perdição. E temos aqui uma abordagem sociológica bem interessante: quem pode delimitar com clareza os limites desse auto-sacrifício? O que é loucura pra um pode ser um grande ato de amor para outro? Eis a questão.

    O livro traz muito bem os melindres da sociedade russa do fim do século XIX. Como falar ou abordar um assunto, o que é considerado digno ou não. Problemas da high society mas de um jeito muito humano e introspectivo: uma verdadeira aula para Jane Austen, que tenta fazer o mesmo mas que tem como resultado só um sono inesgotável pro leitor.

    Assim como Veríssimo, Dostoiévski traz o que a sociedade realmente tem pra mostrar, passando pelas camadas mais baixas e mostrando também a vileza e futilidade das mais altas. Interessante notar que, muitas vezes, a ficção parece exagerada, mas quando se fala da realidade, descobre-se que ela é ainda pior. Érico falou sobre isso, mas o próprio autor deixa seu parecer:
    "Se qualquer autor o inventasse, os críticos e aqueles que sabem a vida do povo gritariam imediatamente que era falso e inverossímil; lendo-o nos jornais, como coisa que acontece mesmo, a gente só tem de, através desses fatos, ir estudando a vida russa, em sua múltipla realidade." (p. 626)
    Sou muito suspeito pra falar, porque eu simplesmente amo Dostoiévski. Não creio que tenha lido nada dele e não tenha gostado (e olha que já li um bocadinho). Engraçado que toda vez que leio algo dele, eu penso no fim: "Este é meu livro favorito dele". Não foi diferente com este aqui.

    "O idiota", no fim das contas, é uma história com a qual a gente pode se conectar – muito embora não sejamos russos, tampouco vivendo no fim do século XIX. E é justamente isso que torna a obra mais atemporal e impressionante. Um livro magnífico, de um autor que um dia terei lido todas as obras. Mal posso esperar por isso.

    quinta-feira, 6 de maio de 2021

    Resenha – O trílio celeste

    MAY, Julian. O trílio celeste. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.


    E é isso aí, meu povo! Chegamos ao último livro da trilogia Trílio (embora este não seja o último livro da série). Pra revisar, já fiz a resenha dos dois primeiros: O trílio negro e O trílio de sangue, além do spin-off O trílio dourado, que acontece entre o segundo e o terceiro livro. 

    Toda essa saga conta a história de Haramis, Kadiya e Anigel, as três princesas de Ruwenda que precisam salvar o mundo das intenções malignas de Orogastus, o feiticeiro. Toda a série envolve bastante fantasia, artefatos mágicos e tramas políticas entre nações do continente. A essência é: cada princesa necessita de um artefato mágico que, quando juntos, formam o Cetro do Poder e derrotam o mau.

    Vamos começar logo falando do grande problema da série. Os livros anteriores já haviam dado dicas neste sentido e esse aqui veio pra sedimentar a coisa de vez: escrever uma saga com autores diferentes é muito difícil. E olha que nem foi uma questão de estilo, foi de trama mesmo.

    Com muita tristeza que detectei traços de descontinuidade entre o "Trílio Celeste" e o "Trílio Dourado", respectivamente terceiro e quarto livros na linha cronológica da história (embora o "Trílio Dourado" seja uma história à parte da trilogia principal). Esse é o perigo do trabalho em grupo: necessariamente haverá diferenças e, se não forem bem trabalhadas, elas se tornam notórias com facilidade.

    O mais triste é que todos os três livros da série têm a mesma trama! Cara, como isso é possível?! Em todos eles é a mesma coisa: Orogastus (o feiticeiro malvado) quer pegar as três partes do Cetro do Poder e dominar o mundo, aí vêm as 3 princesas brigando entre si, pra no final se unirem e derrotarem o vilão com o artefato mágico. Aff, isso não acaba nunca? Caramba, essa foi a trama DOS TRÊS livros!

    Daí não é surpresa nenhum quando o "Trílio Celeste" aparece com um final altamente previsível e idêntico: uma batalha num castelo e o vilão de posse de 2 dos 3 talismãs (inclusive, os MESMOS DOIS em todos os três livros). Pra completar, Haramis dessa vez é uma espécie de Gandalf: some o livro todo e chega no final pra salvar todo mundo.

    E se for pra falar de personagens, ai, sinceramente. Acompanhar até o último livro da trilogia o "romance" de Haramis com Orogastus é uma tristeza. Na verdade, se eu não tivesse lido o primeiro livro, teria sido mais fácil de engolir. Mas como eu li, sei que não houve nenhuma construção nesse "amor" que foi enfiado goela abaixo e agora é sustentado pela narrativa forçada da autora, em vez de uma construção adequada de personagens.

    Falando em construção, acho muito triste chegar no fim da série e ver a autora usando absurdos de imaturidade da personagem pra justificar algo no enredo. Às vezes nem justificar, é quase gratuito e estúpido. Sério que depois de todas essas "jornadas do herói" não houve nenhuma evolução nas personagens, que mantêm quase os mesmos comportamentos do primeiro livro? Aff. Serviu pra que essa jornada?

    O estereótipo das heroínas é exatamente o mesmo nos três livros da série: Haramis, a indecisa; Kadiya, a impetuosa; Anigel, a fricote. Não importa por quantas aventuras elas passem, quantas vezes entrem em conflito, quantas vezes tenham derrotado o mal e passado por provações terríveis. Não importa, elas sempre voltam à mesma personalidade inicial, como se não tivessem aprendido nada. 

    Sinceramente, pra mim essa é uma falha muito grave porque simplesmente tira a função da jornada do herói! Se torna uma aventura que desemboca numa mudança no fim de um livro, pra no começo do próximo essa mudança ser totalmente ignorada e a história recontada com personagens saindo do zero. Quando isto é somado à repetição da trama nos três livros da trilogia, putz, aí a tristeza bate forte.

    Não foi à toa, então, que o meu livro favorito continua sendo "O Trílio Dourado", que conta uma aventura solo de Kadiya. Dessa vez não tem o mesmo vilão e nem as irmãs pra gerar os mesmos conflitos. A gente fica mais próximo da personagem e entende melhor seus conflitos. Pra melhorar, neste livro ela constantemente luta contra sua impetuosidade e ganha – ou seja, aqui ela passou por uma jornada e isso a modificou.

    Bom, apesar de tudo isso, não posso negar que o livro tem algo positivo. A maior força do livro é que ele cumpre o que se propôs a fazer. Ele é o que todo livro de fantasia deveria ser e, nele mesmo, tem uma boa estrutura. O problema é quando colocamos ele na série da qual ele faz parte. Não tem como, os livros não existem independentes uns dos outros. E aí quando a gente olha pro todo é que começam os problemas.

    Mas sozinho, poxa, tem uma boa apresentação dos personagens, tem algumas boas reviravoltas, os personagens entram em conflito entre si, aparecem amizades inesperadas, etc. Além, claro, de ter magia, animais fantásticos, tramas políticas, etc. Se for pra um dia responder: "Qual um bom livro pra alguém que quer conhecer como funciona o gênero fantasia"? Aí com certeza a série Trílio.

    Eu tô falando aqui como se já tivesse lido tudo, né? Mas a verdade é que ainda falta "A senhora do trílio", o último e definitivo livro da série. Espero me surpreender; mas eu sei que, mesmo que não tenha nada espetacular, o livro em si será bem escrito e a história vai emocionar em alguns momentos, que nem aconteceu com "O trílio celeste".