quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Crônicas musicais – I

Hoje estive conversando com um maestro, digo, um regente de São Paulo e ouvi uma coisa que me fez refletir. A conversa era pra ser uma pesquisa, mas em determinado momento acabou se tornando um bate papo sobre as agruras e os causos da vida musical no Brasil. E isso foi muito legal, nossa, como foi legal!

Mas a coisa à qual me referi é a seguinte: música totalmente perfeita, sem erros, sem desafinações, sem problemas de entrada, sem absolutamente nada de imperfeito, bem, essa música não existe. Ela até existe, mas não é real. Se você ouve isso em CDs, shows gravados ou filmes, conscientize-se de que você está ouvindo uma edição.

A vida é assim. A gente erra e, poxa!, como dá vontade de voltar atrás e editar um errinho, gravar de novo e masterizar o som com aquela nota bem afinadinha. Mas não dá, né? E, de certa forma, é isso que torna a vida... a vida, oras!

Eu falo isso porque já faz algumas semanas que tenho gravado eu mesmo tocando cello. Olha, convenhamos, não é nada super profissional (até porque eu estava há meses sem tocar absolutamente nada, então já viu, né?); mas, pelo menos, é algo com o qual eu me divirto.

Existe na indústria da música – na indústria da arte, for that matter – o culto ao perfeito. Sem erros, sem mácula, a arte "pura". Cara... me diz quem é que faz música sem o elemento humano? Dá pra fazer, claro. Mas na hora que você bate o ouvido você sabe: tá faltando alguma coisa ali. 

Eu já tinha percebido isso há um tempo, inclusive foi o que me motivou a gravar meus vídeos de cello e postar eles no Youtube mesmo quando eu errava. Claro, eu não ia postar qualquer porcaria; mas chega um ponto em que a gente precisa aceitar que não dá pra acertar toda vez. E fazemos nosso melhor. Por isso eu toco e gravo. Não porque é perfeito. Mas porque é algo que eu gosto e – mesmo não sendo impecável – é bom.

O que me animou tanto em conversar com esse regente (dane-se, vou falar maestro mesmo) foi perceber uma outra coisa. Conquanto eu tivesse chegado a essa conclusão sozinho, meu ânimo foi perceber que havia outros que pensavam como eu. Céus, foi perceber que eu não estava só. Que ainda há gente por aí que ama fazer o que faz e não se limita a fazer só porque as condições não estão perfeitamente adequadas.

Nós lutamos para que estejam, claro. Mas nem sempre dá. E boa parte da maturidade está em aceitar isso e seguir em frente. 

É bom quando a gente vê que há outros por aí como nós; ver que, embora estejamos sozinhos nas nossas lutas particulares, não estamos realmente sozinhos. Às vezes é só questão de olhar pra cima, ver o movimento da batuta e sentir a orquestra fluindo como um todo para criar algo diferente, algo maior que ela, na plena consciência de que jamais poderia fazer isso sozinha. 


Pro caso improvável de alguém querer ver esses vídeos de cello, eles estão aqui.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Resenha – Além do planeta silencioso

LEWIS, C. S. Além do planeta silencioso. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019.


E aí, meu povo! Vamos então para mais uma resenha. Eu descobri faz um bom tempo que sou muito fã de Lewis. Depois de ter lido e resenhado as Crônicas de Nárnia (aqui, aqui e aqui), O Grande Abismo, Cartas do Inferno e o compêndio que o classificou como O Racionalista Romântico, entro agora numa nova empreitada de Lewis. 

Enquanto nos outros era bem evidente sua temática cristã vinculada à fantasia ou mesmo textos religiosos per si, aqui nós estamos diante de uma ficção científica! E não de qualquer tipo, uma space opera. Neste livro vamos acompanhar a jornada do professor Ransom ao espaço sideral e a mundos fantásticos, mais especificamente: para Malacandra.

Antes de começar, eu preciso falar dessa edição lindíssima que foi a da Thomas Nelson Brasil. Olha... estão de para. Parabéns! Capa dura, corte das páginas de uma cor que combina com a capa. Folhas de gramatura daquelas que a gente pega sem medo, editoração, tudo. Excelente trabalho. É daqueles livros que dá gosto de ter a coleção completa. 

Bom, prosseguindo, eu achei o começo lento, não dá vontade de continuar a leitura. Mas no capítulo 3 somos fisgados de maneira exasperante. O choque de realidade é grande – embora alguns leitores e cinéfilos contemporâneos possam não achar nada demais (especialmente depois de alguns filmes space opera que temos por aí). Vale lembrar que este livro foi escrito em 1938.

As descrições de Lewis nunca me chamaram muito a atenção, especialmente pelo lugar-comum que elas ocupam na minha estante mental de autores (ou seja, ele lembra de mais outros). Mas tenho que abrir aqui uma exceção para a descrição que ele faz de Malacandra, inclusive com as pérolas que ele deixa no caminho como: 
"Além disso, não sabia de nada para o qual valesse a pena olhar: não se pode enxergar as coisas a não ser que se tenha pelo menos uma ideia do que elas são." (p. 55)
Ainda nessa questão, Lewis faz um exímio trabalho em descrever o que não se sabe como descrever! Ou seja, a sensação de estar num mundo estranho onde não se sabe o que pode ser uma árvore ou um animal, ou objetos cuja forma não fazem sentido para uma mente terráquea. Eu fico pensando que foi assim que o apóstolo João se sentiu ao escrever o Apocalipse!

Via de regra eu critico textos com poucos diálogos ou cujos diálogos são espaçados demais, ficando com longos trechos de narração ou descrição. É exatamente isto que acontece aqui, mas eu não consigo reclamar, porque é muito interessante! A jornada do humano perdido em outro planeta é fascinante demais pra gente sequer sentir falta de diálogos – o que, diga-se de passagem, seria inverossímil no começo, pois com quem ele conversaria?

Mas, invariavelmente, isso cansa. Tem horas q o excesso de descrição dá sono. Seria isso uma característica da época? Seria uma influência do seu contemporâneo Tolkien com o descritivismo supérfluo? Não sei. Só sei que teve mais de uma vez que eu dei uns bocejos bem grandes, tentando aguentar a leitura.

O personagem principal, Ransom, é muito passível pra alguém que foi sequestrado. Fica evidente que sua inércia serve ao propósito da trama, e isso é muito ruim. A trama em si não é ruim, mas falta um bom gancho que realmente carregue o leitor adiante.

Falta mesmo é um senso de urgência. Em alguns momentos a narrativa é como um passeio. E é justamente por isso que as descrições se tornam tão cansativas, por que não entendemos de modo claro o propósito delas senão o de deslumbrar o leitor com paisagens – algo que até funciona por algum tempo, mas, como falei, depois cansa.
"O amor ao conhecimento é uma espécie de loucura." (p. 74)
Ca-ram-ba! Que capítulo foi aquele do primeiro encontro? Gente, não dá pra negar que o livro tem seus momentos de genialidade. Daqueles que fazem valer a pena a leitura. O primeiro encontro entre um humano e um malacandriano foi incrível, tanto que precisei deixar registrado aqui. Ainda nisto,  foi fascinante ler aquela conversa sobre a luz como limite do visível e do transponível.

Lewis trata como uma espécie de fantasia um cenário que tinha tudo pra ser ficção científica (afinal estamos falando de viagem a outro planeta). Mas longe de der algo ruim, isso cria um tipo de aventura que poucos escritores são capazes de criar. Me vem a cabeça o filme John Carter, que vai nessa leva do meio termo.

O autor provou-se muito inteligente naquele final, usando o post-scriptum como forma de corrigir alguns erros que ele mesmo encontrou na construção da história (verossimilhança, principalmente) e enriquecendo com algumas ideias ou cenas que ele não conseguiu (ou não quis) inserir na história principal. É trapaça? É, mas a gente perdoa porque também tava curioso, hehehe.

Embora parte de uma trilogia, o livro não deixa gancho para o próximo, sendo até bem redondinho no final. As pontas soltas que sobram, ficam à guisa de "reverberação" do texto e não necessariamente de necessidade de continuidade (a frase ficou meio complicada, mas é isso mesmo).

Nem por isso significa que eu não queira ler o próximo volume. Não só eu sei que é Lewis, mas agora eu já estou imerso neste universo e curioso pra saber quais outras aventuras virão nos próximos acontecimentos. Perelandra, me aguarde.

Resenha - Vinte mil léguas submarinas

VERNE, Júlio. Vinte mil léguas submarinas. Curitiba: Hemus, 2000.


Fala, meu povo! Eu esqueci de postar essa resenha (por que já li o livro faz um tempo). Quem é que nunca pegou um livro de Júlio Verne? Pois eu garanto que até quem nunca leu, pelo menos já assistiu algum filme baseado na sua literatura. Este aqui é um clássico e tenho algumas coisas a comentar sobre esse.

A primeira característica que salta aos olhos é o cientificismo do livro, que foi alvo de críticas na época de Verne. Os literatos achavam os livros mais "ciência do que literatura"; por outro, os cientistas chamavam as descrições científicas de Verne como "ciência barata". Para mim, isto também foi um problema, porque em alguns momentos parece que eu estou lendo uma aula e não literatura. Pra mim isso é perda de foco.

Mas veja bem, isto precisa ser inserido no contexto em que o livro foi escrito. No século XIX não havia televisão, internet. As notícias estavam nos jornais, nas rádios e havia não poucos que não tinham acesso nenhum à informação. Por isso o livro é algumas vezes informativo demais. Para muitos leitores, aquilo era o mais próximo que teriam de acesso a uma ciência, ainda que "barata".

Isso é relevante porque o livro está realmente numa época de transição. Quem pegasse o livro pela primeira vez, talvez pensasse se encontrar numa ficção naturalista. E é muito bem trabalhada a transição para ficção científica por parte do autor. É ao mesmo tempo uma transição suave e impactante, que prende o leitor com força.

Ah, e não recomendo que vocês leiam nesta edição que peguei. Comprei-a na adolescência e, agora, com um olhar mais atento, vi alguns erros de português na edição. Deixei passar o primeiro e o segundo, mas quando chegou no terceiro erro de digitação (com "senhnor") aí eu achei que era digno mencionar. Isso sem falar em alguns problemas de diagramação do texto.


Pra finalizar as coisas "ruins" do livro (porque depois vocês verão que só tem coisa boa pra falar), preciso abordar a estrutura do livro por meio da trama. Porque eu acho que ela tem um problema no segundo ato (embora o livro não seja dividido claramente numa estrutura de três atos). Mas penso que isto está ligado ao modo como o livro foi publicado.

E, se em alguns momentos há descrições demais com aspectos do cientificismo, em outros as descrições são de menos e partes interessantes são negligenciadas, como em: "O combate durou um quarto de hora. Os monstros, derrotados, mutilados, feridos de morte, abandonaram o local e sumiram sob as águas." (p. 151)

Aliás, é importante lembrar que Vinte mil léguas submarinas e vários outros livros naquela época não surgiam como um livro pronto, mas como publicações seriadas em jornais da época. Imagine que você acesse algum jornal e lá tenha uma seção de "literatura" com uma historinha que você pode ler toda semana, cada vez saindo um capítulo novo. Foi assim que este livro foi publicado originalmente.


Isto traz algumas vantagens ao livro: por ser publicado em jornais, os capítulos não podiam ser longos. Isto ajuda bastante o leitor a continuar a história, porque todos os capítulos são curtos e bem escritos dentro deles mesmos. 

Por outro lado, percebi que os capítulos do meio só cumprem tabela ou, pior, enchem linguiça. Eles não contribuem em nada para a trama de maneira direta, apenas enriquecendo a mitologia em torno do Nautilus e do capitão Nemo. O livro perde o senso do ticking clock e acaba patinando, chegando em pontos que o leitor perde a imersão.


Pronto, agora podemos falar das belezas que o livro tem. 


Cada vez mais tenho construído um apreço todo especial por primeiras frases. Quando a coisa tem um começo bom, parece que eu posso relaxar e dar uma chance para a leitura. Não é sempre que isso traz bons resultados, mas, na maioria das vezes, sim. É preciso lembrar que Júlio Verne não foi um marco na literatura da época à toa. Olha só como ele realmente é um mestre. Olha a primeira frase do livro:

"Em 1866, deu-se um fato inexplicável que provocou muitos comentários entre a gente do mar." (p. 11)

Nesta pequena frase ele estabeleceu: 1) a época, pela informação do ano, inserindo num contexto histórico que salta à mente com facilidade; 2) pelo menos dois ganchos (ou um único ganho com intensificação): que fato inexplicável? Por que provocou comentários? Aliás, por que foram muitos comentários? E veja só, os comentários não aconteceram a esmo; porque ele aponta para 3) a direção da história: a gente do mar. Fantástico. Simplesmente fantástico o uso da primeira frase. 

Com esta simples frase o autor cria uma atmosfera de curiosidade e a intensifica, convidando e quase intimando o leitor a continuar a leitura. Talvez essa atmosfera de mistério possa parecer simplória para alguns de nós. Digo isto porque poderíamos olhar hoje e dizer: "Tá, tudo bem, tem um monstro marinho nos oceanos." Mas vejam o contexto, meus caros!

Naquela época o mar era o principal meio de locomoção e de circulação da vida. Estamos falando não apenas de passeios, mas de viagens intercontinentais, de comércio, de sobrevivência de muitas pessoas. Falar de 20 mil léguas submarinas era falar de um aspecto da vida que impactava todo o mundo. E ainda colocar neste oceano um mistério como esse era dizer: não podemos mais fazer comércio e estamos isolados da sociedade. Note como isto fala de maneira tão direta ao imaginário daquela época.

Só este aspecto já serve pra mostrar a riqueza do livro. Apesar de todas as dificuldades, é evidente que a criatividade do autor é um marco da sua literatura. E não é um criar por criar, mas cheio de verossimilhança e uma profunda preocupação com detalhes. Tanto foi que ideias do autor acabaram "prevendo" futuros desenvolvimentos tecnológicos.

Minha gente, todo mundo precisa, pelo menos uma vez, ler algum livro de Júlio Verne. E se você for começar com um, eu mais do que recomendo Vinte mil léguas submarinas.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Crônicas do cotidiano - VIII

Hoje é meu aniversário.

Acho que levei só uns vinte anos pra finalmente naturalizar a ideia de que este é só um dia como todos os outros. Um dia em que, mesmo sendo meu aniversário, eu ainda tenho que acordar cedo pra fazer o café; em que eu ainda preciso ir trabalho; um dia que eu ainda preciso lidar com tudo que acontece todos os dias. E eu não acho isso ruim.

De uns tempos pra cá me peguei reflexivo nos meus aniversários. Fico pensando no que foi que eu já fiz e se isto é digno de dizer "Maravilha! Estou aproveitando bem meu tempo aqui na terra". 

Mas, embora eu tenha até um senso de realização ao pensar e rever estas coisas, sei que isto não é tão saudável assim. Por que quem é que pode dizer se estamos aproveitando bem nosso tempo ou não? 

De qualquer modo, me alegra olhar pra trás e ver que não perdi boas oportunidades quando elas surgiram. E tampouco fico me lamentando quando as oportunidades que eu busquei não funcionaram. Se elas não funcionaram, foi porque assim preferiu o Senhor. E não tem nada melhor do que o que Ele quer.

Eu já vivi na Música, hoje estou mergulhado na Literatura. Já me aventurei na graduação e no mestrado. Tentei fazer de tudo para ascender na vida profissional (sem absolutamente nenhum sucesso). Quais serão os próximos caminhos?

Hoje eu digo que pretendo escrever mais um livro, isto é certeza, já tenho até algo em mente. Mas e quanto à vida acadêmica, será que eu arrisco um doutorado? E na vida profissional, mergulho em concurso ou tento buscar novos horizontes onde eu já estou? 

Sei lá. Mas continuo com a certeza de que, seja lá o que for, o que o Senhor tiver escolhido será o melhor pra mim. Por isso que eu fico tão relaxado assim. Eu tenho certeza, eu posso confiar. Se é Deus que comanda tudo, pra quê ficar preocupado?

Aliás, hoje não é dia de ficar preocupado com nada. Hoje é meu aniversário.



sábado, 10 de outubro de 2020

Resenha - Solo de clarineta: memórias – II

VERÍSSIMO, Érico. Solo de clarineta: memórias – II. São Paulo: Globo, 1995.


É, gente. Não sei quantas pessoas realmente leem o que escrevo aqui, mas agradeço a quem quer que tenha acompanhado até aqui. Com esse discurso parece até que vou parar de escrever, mas não é isso. Refiro-me, claro, à jornada com Érico Veríssimo. Porque acabou. É triste dizer isso, mas é a verdade: acabou. Eu não tenho mais nada dele ler quanto à sua literatura. Este foi o último livro de Érico Veríssimo.

O maior escritor da literatura brasileira escreveu este segundo volume em continuação à primeira parte (que já resenhei aqui), que terminou com o casamento da sua filha Clarissa e sua mudança para os EUA. Já no segundo volume, Érico vai contar da sua carreira como escritor já consolidado e gasta boa parte do livro com relatos de viagens. O livro não foi terminado, ele faleceu antes de completar. O que nós temos em mãos aqui é uma obra póstuma, organizada por Flávio Loureiro Chaves.

Eu li esse livro num misto de completude e terrível sensação de perda. Aliás, em determinado momento, já no último 1/4 do livro, me vi em negação. Tão absorto eu estava na "fala" do meu amigo que a todo momento eu pensava: "Não vai acabar." Mas não era como se eu tentasse negar de modo irracional, era só que não cabia na minha cabeça que não haveria mais nada dele pra ler, que aquilo acabaria. Meu Deus por que eu estou tão triste? Por que a morte é tão terrível assim? Por que eu estou com tanta vontade de chorar?

Minha esposa me viu lagrimar com esse pensamento e disse: "Nem o filho dele chora mais!". Duras palavras, mas muito verdadeiras. Em outra ocasião ela falou: "Amor, mas ele já morreu.". E eu só conseguia responder: "Eu sei", com o sentimento de perda ainda maior dentro do peito. 

É terrível a sensação de ser prisioneiro do tempo. De ler sobre pessoas que eu nunca vou encontrar, sobre estranhos que nem lembram daqueles fatos (se é que ainda vivem). A impressão que tenho é que sou a única pessoa no mundo que se importa. Pelo menos desse tanto.

Quando comecei a escrever esta resenha, disse para mim mesmo que faria algo simples e curto. Mas a quem estamos enganando, não é mesmo? Deixe eu falar do livro em si pra ver se eu dou conta de falar pelo menos um pouco do seu conteúdo.
"Ah! Repito que invejo os homens que têm a coragem de gritar, gemer ou chorar quando sentem alguma dor forte. Esses, sim, são os verdadeiros heróis." (p. 26)
Não vou comentar sobre o primeiro infarto dele, tampouco sobre os anseios, só quero deixar bem claro que Érico Veríssimo era um cara que realmente gostava de viver, de explorar, de conhecer. Aqui está ele nas suas últimas memórias incapaz de resistir ao impulso de relatar a viagem que fez à Grécia ou a Portugal, encantado pelo que viu. Na verdade, ele havia planejado este volume para ser repleto de suas viagens, para, num terceiro, falar de modo mais claro de si mesmo – pena que isso não pôde acontecer a tempo.

Nota mental: se um dia viajar a Portugal, reler esse livro antes.

Muita gente diz que no final da vida prefere lembrar das coisas que fez do que lamentar pelo que deixou de fazer; mas quase sempre fazem isso para justificar algo ruim que estão prestes a fazer. Se não algo ruim, mas algo que elas sabem que não deveriam estar fazendo.

Eu vi Érico comentar em uma ocasião sobre algo que ele lamentou não ter feito. Na verdade, vi-o falar disso em mais de uma ocasião, quando ficou com a garganta entalada das coisas que não falou. A grande diferença é que ele ficou triste por causa das coisas boas que deixou de fazer ou falar quando tinha a oportunidade.

Pra ser bem honesto, teve um ponto do livro em que achei-o cansativo. A viagem para Portugal toma espaço demaaaais. Mas coitado, né? O bichinho queria registrar ali as memórias de um país que ele tanto almejava conhecer. O que me ocorre é que teria sido melhor que ele tivesse retirado toda essa parte e escrito um livro específico só sobre esta viagem. Então eu lembro: "Ah..."

Interessante que nesse relato de Portugal, ele foi acompanhado de sua esposa Mafalda e do filho Luis Fernando. Me chamou a atenção que ele mal cita o rapaz. Enquanto de vez em quando relata conversas que teve com a esposa; com o filho ele não destaca muitas interações. Acho que acabou vencendo nele o distanciamento pai-filho tão comum na cultura gauchesca tradicional. 

Érico descreve Portugal como uma terra tão pitoresca e bela que não consigo deixar de lado a impressão de que ele estava sonhando demais. Gente, eu já viajei por aí e posso dizer: nem tudo é belo. Não tem como viajar assim. O menino estava mesmo deslumbrado.

Ah, e como sempre, embora sua capacidade descritiva seja um marco de todo seu estilo, não são as paisagens ou as geografias que me interessam quando ele fala de suas viagens; mas a interação com outras pessoas. Creio que ele mesmo concordaria comigo quando digo que estas interações têm o poder de nos marcar de modo bem mais intenso.

Eu falei mais acima que achei cansativa a parte sobre Portugal, e achei mesmo. Por causa disso, fiquei o livro inteiro esperando a parte dessa viagem acabar, só que me peguei surpreso quando, ao ler o último parágrafo desta seção, eu li, trêmulo:
"Está na hora de embarcar. Trocamos abraços, nossas más caras britânicas caem por um instante. E então a trinca Veríssimo sobe para o vagão e ficamos à janela até a hora de o trem partir. Depois, os acenos e as figuras que vão ficando para trás, diminuindo de estatura física, mas de certo modo se gravam na nossa memória onde o tempo lhes vai modificando um pouco as feições." (p. 253)
É muito difícil, senão impossível, não se identificar com várias das experiências dele, ainda mais se você já viajou um pouco. Tem algumas experiências que realmente ficam marcadas, ainda que anuviadas pela memória e pelo tempo. Eu mesmo, nos meus poucos anos de vida, consigo pensar em uma ou dias viagens assim.

Já na parte final do livro – e sim, já caminho para o término –, Érico resolve abrir-se um pouco mais com o leitor. Como disse antes, o plano dele era escrever um terceiro volume para esta série onde ele faria isso de modo mais claro e amplo. 
"O perigo das memórias está no fato de que, com raras exceções, memorialista, como a maioria dos outros homens, tem um pande apreço, amor e admiração pelo seu próprio eu [...] Nunca é tarde demais para uma confissão. Uma das razões que por muito tempo me impediram de escrever memórias foi o temor de resvalar para essa ridícula autovalorização." (p. 235)
Pra ser bem honesto com vocês, nessa última parte eu achei triste ler o posicionamento religioso dele. Um agnóstico que nunca poderá dizer que Cristo não foi apresentado a ele. Embora estivesse cercado de uma mitologia católica (mãe, esposa, etc.), conhecia muito bem as doutrinas reformadas – coisa que ele mesmo declara abertamente em mais de uma ocasião.

Por outro lado, o posicionamento político é bem interessante. Ele se considera um "humanista" de esquerda – algo que eu vou classificar aqui como centro-esquerda. Achei bom este posicionamento, porque é uma atitude que convida ao diálogo. Eu mesmo me classifico como centro-direita e sei que é bem difícil manter uma posição de centro (e aqui cometo uma heresia, porque Érico achava que ser de centro era sinônimo de ser acomodado – coisa da qual eu discordo, naturalmente).
"Se me perguntarem que constantes de meu temperamento sinto com mais freqüência, eu diria que é uma curiosa combinação de preguiça – física e mental – e timidez." (p. 319)
O que me assusta em toda essa leitura desses volumes, é como eu me identifico com o cara em vários momentos. Ele é minha influência declarada e eu almejo um dia escrever como ele escreveu. Nunca ganhou um Nobel, nunca se candidatou à Academia Brasileira de Letras, e nem por isso é um escritor medíocre ou mesmo desconhecido. É o maior escritor da literatura brasileira.

O livro não traz sensação de completude, porque realmente não foi terminado. Permanecemos com aquele vazio que tanto senti no começo do livro. Mas será que o leitor realmente ficaria satisfeito um dia? Será que chegaria o dia em que eu diria: "Não quero mais ler nada dele"? Eu duvido muito, duvido. Afinal de contas, o que nos entristece de verdade não é que o livro ficou incompleto: é a morte. E a morte sempre vem. 

Apesar de tudo que falei, eu fiquei bem satisfeito com o livro – talvez pela carga emocional que ele traz, claro. E já antecipando a leitura que você fará da citação abaixo, eu digo: "Não, Érico, eu queria isso mesmo. Obrigado por tudo. Foi infinito enquanto durou."
"Querias um concerto de jazz ou uma grande peça sinfônica. Eu te dei um solo de clarineta." (p. 323)

sábado, 3 de outubro de 2020

Resenha - Guerra Fria (conto)

ARANTES, Márcia. Guerra Fria (conto). Goiânia: Building Dreams, 2020.


Olha, eu não costumo resenhar contos. Mas este será um caso diferente. Eu conheço a autora? Conheço. Ela sugeriu a leitura? Sugeriu. Mas ela já me conhece e sabe como são minhas resenhas? Conhece e sabe. Então não tem por que eu não fazer esta resenha, já que eu gostei da história. O lance é que, se um livro já sofre porque eu analiso as minúcias dele, avalie um conto. 

A história é bem simples: um casal decide que a única forma de eles aguentarem conviver um com o outro é redigir um contrato entre os dois que rege a vida doméstica. Quem quebrar as regras do contrato tem o direito de matar o outro. É isso.

Já no primeiro parágrafo eu encontro algumas coisas que me chamam atenção. Primeiro é que ele não está justificado (um erro de diagramação que dá pra deixar passar -- só me saltou aos olhos porque está no primeiro mesmo). Segundo, é que achei confuso. Eu já comentei isso por aqui antes. Para mim, um texto bem escrito deve e pode ser desfrutado tanto por um doutor quanto pelo tio da quitanda. Em mais de um lugar achei que o uso de palavras mais complexas foi desnecessário.

No segundo parágrafo (relaxem, não vou falar parágrafo a parágrafo, só estou ressaltando algo aqui que se repete em outros momentos) tem outra coisa: muitos advérbios de modo e adjetivos. Os advérbios de modo até que são discretos no texto, dá pra ignorar; mas os adjetivos são meio desnecessários, vários deles que só reforçam uma atmosfera tensa ou pesada que já havia ficado clara (tornando redundante a repetição de um "maldito", por exemplo). 

Parece que o narrador é que está com raiva e não o personagem. Enquanto entendo que este fluxo de consciência pode ser útil para criar um tônus interessante à trama, do meu ponto de vista ele só deixa o leitor cansado e já com uma impressão pesada bem no começo do conto. 

A impressão que eu tenho é que a pessoa que escreveu, escreveu isso com raiva e o sentimento dominou o texto. E aqui já não me refiro apenas ao segundo parágrafo, mas aos seguintes também -- essa impressão só vai se desfazer da metade do conto para o fim.

Aliás, da metade pro fim o conto ganha outro ar, quase outro estilo. E aí a gente não consegue evitar: somos enredados por ele. A partir desse ponto nossa experiência tem um up e a qualidade do conto nos dá ânimo pra continuar até o fim.

Em outro ponto, a autora tem a seu favor que um dos personagens principais se chama Gabriel (risos).

Na parte que há um flashback, penso que deveria ter pelo menos uma quebra de parágrafo. Quando li fiquei meio perdido nas cenas. E aqui foi o único ponto que eu achei que houve um erro na estrutura do conto. A premissa da história é boa demais pra ser dada de mão beijada aqui! Aliás, a premissa é boa demais pra ser colocada na descrição do conto na Amazon! 
"O casamento e a comunhão universal de bens uniram Tatiana, Gabriel e uma fortuna. Para evitar o divórcio e a consequente partilha, os dois entraram num acordo inusitado: é proibido reclamar. As consequências para quem quebrar o acordo são muito piores que divisão dos bens; [...]" (Sinopse na Amazon)
Essa informação deveria ser revelada só lá no final, final! Seria muito bom deixar o leitor sempre com uma pulga atrás da orelha: "Mas do que se trata esse acordo deles? Será que é um contrato? Por que diabos eles levaram isso num cartório?". Essa informação escondida do leitor, somada ao desenvolvimento da trama, traria uma excelente carga de tensão para que tudo fosse resolvido só no final.

(Aliás, não entendi por que a palavra "cartório" ficou em negrito e itálico no meio do texto. Achei até que fosse algum hiperlink. Isso aconteceu na posição 39.)

Ah, o título é super adequado. O final, quando inserido como metáfora do contexto geopolítico, reflete com perfeição a Guerra Fria (sem spoiler). O que eu me refiro aqui é a um não-conflito que, mesmo não sendo direto, resulta em muito dano para quem está ao redor.

A verdade é que não sei se gostei do conto. À parte das questões de linguagem, o final me pareceu absurdo demais. Só que aí eu penso: "Ora, mas os contos não servem também para lidar com o absurdo?". E eu tenho que concordar que sim. Resultado: fico em cima do muro.