sábado, 10 de outubro de 2020

Resenha - Solo de clarineta: memórias – II

VERÍSSIMO, Érico. Solo de clarineta: memórias – II. São Paulo: Globo, 1995.


É, gente. Não sei quantas pessoas realmente leem o que escrevo aqui, mas agradeço a quem quer que tenha acompanhado até aqui. Com esse discurso parece até que vou parar de escrever, mas não é isso. Refiro-me, claro, à jornada com Érico Veríssimo. Porque acabou. É triste dizer isso, mas é a verdade: acabou. Eu não tenho mais nada dele ler quanto à sua literatura. Este foi o último livro de Érico Veríssimo.

O maior escritor da literatura brasileira escreveu este segundo volume em continuação à primeira parte (que já resenhei aqui), que terminou com o casamento da sua filha Clarissa e sua mudança para os EUA. Já no segundo volume, Érico vai contar da sua carreira como escritor já consolidado e gasta boa parte do livro com relatos de viagens. O livro não foi terminado, ele faleceu antes de completar. O que nós temos em mãos aqui é uma obra póstuma, organizada por Flávio Loureiro Chaves.

Eu li esse livro num misto de completude e terrível sensação de perda. Aliás, em determinado momento, já no último 1/4 do livro, me vi em negação. Tão absorto eu estava na "fala" do meu amigo que a todo momento eu pensava: "Não vai acabar." Mas não era como se eu tentasse negar de modo irracional, era só que não cabia na minha cabeça que não haveria mais nada dele pra ler, que aquilo acabaria. Meu Deus por que eu estou tão triste? Por que a morte é tão terrível assim? Por que eu estou com tanta vontade de chorar?

Minha esposa me viu lagrimar com esse pensamento e disse: "Nem o filho dele chora mais!". Duras palavras, mas muito verdadeiras. Em outra ocasião ela falou: "Amor, mas ele já morreu.". E eu só conseguia responder: "Eu sei", com o sentimento de perda ainda maior dentro do peito. 

É terrível a sensação de ser prisioneiro do tempo. De ler sobre pessoas que eu nunca vou encontrar, sobre estranhos que nem lembram daqueles fatos (se é que ainda vivem). A impressão que tenho é que sou a única pessoa no mundo que se importa. Pelo menos desse tanto.

Quando comecei a escrever esta resenha, disse para mim mesmo que faria algo simples e curto. Mas a quem estamos enganando, não é mesmo? Deixe eu falar do livro em si pra ver se eu dou conta de falar pelo menos um pouco do seu conteúdo.
"Ah! Repito que invejo os homens que têm a coragem de gritar, gemer ou chorar quando sentem alguma dor forte. Esses, sim, são os verdadeiros heróis." (p. 26)
Não vou comentar sobre o primeiro infarto dele, tampouco sobre os anseios, só quero deixar bem claro que Érico Veríssimo era um cara que realmente gostava de viver, de explorar, de conhecer. Aqui está ele nas suas últimas memórias incapaz de resistir ao impulso de relatar a viagem que fez à Grécia ou a Portugal, encantado pelo que viu. Na verdade, ele havia planejado este volume para ser repleto de suas viagens, para, num terceiro, falar de modo mais claro de si mesmo – pena que isso não pôde acontecer a tempo.

Nota mental: se um dia viajar a Portugal, reler esse livro antes.

Muita gente diz que no final da vida prefere lembrar das coisas que fez do que lamentar pelo que deixou de fazer; mas quase sempre fazem isso para justificar algo ruim que estão prestes a fazer. Se não algo ruim, mas algo que elas sabem que não deveriam estar fazendo.

Eu vi Érico comentar em uma ocasião sobre algo que ele lamentou não ter feito. Na verdade, vi-o falar disso em mais de uma ocasião, quando ficou com a garganta entalada das coisas que não falou. A grande diferença é que ele ficou triste por causa das coisas boas que deixou de fazer ou falar quando tinha a oportunidade.

Pra ser bem honesto, teve um ponto do livro em que achei-o cansativo. A viagem para Portugal toma espaço demaaaais. Mas coitado, né? O bichinho queria registrar ali as memórias de um país que ele tanto almejava conhecer. O que me ocorre é que teria sido melhor que ele tivesse retirado toda essa parte e escrito um livro específico só sobre esta viagem. Então eu lembro: "Ah..."

Interessante que nesse relato de Portugal, ele foi acompanhado de sua esposa Mafalda e do filho Luis Fernando. Me chamou a atenção que ele mal cita o rapaz. Enquanto de vez em quando relata conversas que teve com a esposa; com o filho ele não destaca muitas interações. Acho que acabou vencendo nele o distanciamento pai-filho tão comum na cultura gauchesca tradicional. 

Érico descreve Portugal como uma terra tão pitoresca e bela que não consigo deixar de lado a impressão de que ele estava sonhando demais. Gente, eu já viajei por aí e posso dizer: nem tudo é belo. Não tem como viajar assim. O menino estava mesmo deslumbrado.

Ah, e como sempre, embora sua capacidade descritiva seja um marco de todo seu estilo, não são as paisagens ou as geografias que me interessam quando ele fala de suas viagens; mas a interação com outras pessoas. Creio que ele mesmo concordaria comigo quando digo que estas interações têm o poder de nos marcar de modo bem mais intenso.

Eu falei mais acima que achei cansativa a parte sobre Portugal, e achei mesmo. Por causa disso, fiquei o livro inteiro esperando a parte dessa viagem acabar, só que me peguei surpreso quando, ao ler o último parágrafo desta seção, eu li, trêmulo:
"Está na hora de embarcar. Trocamos abraços, nossas más caras britânicas caem por um instante. E então a trinca Veríssimo sobe para o vagão e ficamos à janela até a hora de o trem partir. Depois, os acenos e as figuras que vão ficando para trás, diminuindo de estatura física, mas de certo modo se gravam na nossa memória onde o tempo lhes vai modificando um pouco as feições." (p. 253)
É muito difícil, senão impossível, não se identificar com várias das experiências dele, ainda mais se você já viajou um pouco. Tem algumas experiências que realmente ficam marcadas, ainda que anuviadas pela memória e pelo tempo. Eu mesmo, nos meus poucos anos de vida, consigo pensar em uma ou dias viagens assim.

Já na parte final do livro – e sim, já caminho para o término –, Érico resolve abrir-se um pouco mais com o leitor. Como disse antes, o plano dele era escrever um terceiro volume para esta série onde ele faria isso de modo mais claro e amplo. 
"O perigo das memórias está no fato de que, com raras exceções, memorialista, como a maioria dos outros homens, tem um pande apreço, amor e admiração pelo seu próprio eu [...] Nunca é tarde demais para uma confissão. Uma das razões que por muito tempo me impediram de escrever memórias foi o temor de resvalar para essa ridícula autovalorização." (p. 235)
Pra ser bem honesto com vocês, nessa última parte eu achei triste ler o posicionamento religioso dele. Um agnóstico que nunca poderá dizer que Cristo não foi apresentado a ele. Embora estivesse cercado de uma mitologia católica (mãe, esposa, etc.), conhecia muito bem as doutrinas reformadas – coisa que ele mesmo declara abertamente em mais de uma ocasião.

Por outro lado, o posicionamento político é bem interessante. Ele se considera um "humanista" de esquerda – algo que eu vou classificar aqui como centro-esquerda. Achei bom este posicionamento, porque é uma atitude que convida ao diálogo. Eu mesmo me classifico como centro-direita e sei que é bem difícil manter uma posição de centro (e aqui cometo uma heresia, porque Érico achava que ser de centro era sinônimo de ser acomodado – coisa da qual eu discordo, naturalmente).
"Se me perguntarem que constantes de meu temperamento sinto com mais freqüência, eu diria que é uma curiosa combinação de preguiça – física e mental – e timidez." (p. 319)
O que me assusta em toda essa leitura desses volumes, é como eu me identifico com o cara em vários momentos. Ele é minha influência declarada e eu almejo um dia escrever como ele escreveu. Nunca ganhou um Nobel, nunca se candidatou à Academia Brasileira de Letras, e nem por isso é um escritor medíocre ou mesmo desconhecido. É o maior escritor da literatura brasileira.

O livro não traz sensação de completude, porque realmente não foi terminado. Permanecemos com aquele vazio que tanto senti no começo do livro. Mas será que o leitor realmente ficaria satisfeito um dia? Será que chegaria o dia em que eu diria: "Não quero mais ler nada dele"? Eu duvido muito, duvido. Afinal de contas, o que nos entristece de verdade não é que o livro ficou incompleto: é a morte. E a morte sempre vem. 

Apesar de tudo que falei, eu fiquei bem satisfeito com o livro – talvez pela carga emocional que ele traz, claro. E já antecipando a leitura que você fará da citação abaixo, eu digo: "Não, Érico, eu queria isso mesmo. Obrigado por tudo. Foi infinito enquanto durou."
"Querias um concerto de jazz ou uma grande peça sinfônica. Eu te dei um solo de clarineta." (p. 323)

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