sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Café com pão de queijo

Tive muita vontade de ir embora depois que tudo aconteceu. A pandemia havia acabado e nós resolvemos fazer uma viagem juntos pra comemorar. Íamos à Manaus visitar minha avó. Nessa época meu avô já havia falecido e minha mãe queria ficar o máximo de tempo possível com ela. Não que estivesse solitária (outro neto morava com ela), mas não há nada como um carinho especial pra melhorar nosso dia.

Preparamos tudo. Tínhamos provisões e sabíamos que a viagem pela frente seria longa. É, meu povo, oito horas de carro não é pra qualquer um. Deus sabe que eu não queria ter feito a viagem de carro, é tempo demais perdido. Mas eles insistiram e eu fui. À frente, meu pai guiava o carro com minha mãe e irmã; eu vinha logo atrás no meu carro, com minha esposa. Saímos cedo, pra chegarmos cedo. 

Chegamos cedo demais pro meu gosto. Já havíamos passado do Jundiá e entramos na reserva indígena que fica na fronteira Roraima-Amazonas. Chovia muito e era tanto buraco na via que a dúvida era se havia mesmo estrada ali. Aquilo nos atrasou muito e acho que foi a impaciência que nos levou a fazer o que fizemos. Finalmente em estrada lisa, nos danamos a correr. Recuperar o tempo perdido.

Pff. “Recuperar o tempo perdido”.

Em resumo: aquaplanagem. Nos dois carros.

Eu vi a hora que o carro do meu pai desceu a encosta e rolou barranco abaixo. Não tive muito tempo pra processar aquilo, porque eu fui atrás logo em seguida. O mundo virou uma confusão de cores e sons. O air-bag do carro estourou, protegendo minha cabeça e fazendo um som que deixou meu ouvido zunindo. 

Não tenho ideia de como aconteceu, porque, quando abri os olhos, o mundo estava de cabeça para baixo. Foi horrível. Não sei quanto tempo fiquei daquele jeito, nem quem foi a pessoa a ver o acidente. 

Meu primeiro instinto foi ver se minha esposa estava bem. Hoje, olhando para trás, acho que eu preferia não ter visto. O seu pescoço estava num ângulo impossível para um ser humano e seus olhos estavam sem vida. Eu me desesperei e entrei em choque. É muito difícil pra mim processar e explicar o que aconteceu em seguida. 

Quando finalmente me tiraram do carro, lembrei que meus pais e minha irmã também haviam tombado. Olhei para o carro deles, em frangalhos. Minha mãe chorava, desesperada. E era o único som que eu ouvia de lá. 

Nos dias seguintes recebemos muitas condolências e o funeral estava lotado. Eu não tinha compreendido tudo. Não. Na verdade, me recusava a compreender. Foi só quando eles fecharam a tampa do caixão que eu percebi que nunca mais veria o rosto de nenhum deles. Entrei em choque de novo. Lembro de ter gritado, mas não lembro de muita coisa depois. 

Então estávamos em casa. Na casa dos meus pais, digo. Minha mãe não tinha escolha senão voltar pra lá e eu não tive coragem de voltar pra minha. Nós dois ficamos sentados no sofá sem falar nada. Na nossa frente a televisão estava muda e fria. Que nem o resto da casa. 

As semanas que se seguiram foram de muito choro. Acho que se eu e minha mãe não tivéssemos um ao outro naquela ocasião, teríamos os dois ficado loucos. Nossos corações eram confortados apenas pela presença do outro e pela certeza de que na Eternidade ainda encontraríamos de novo com eles. E embora a gente soubesse daquilo racionalmente, na prática, a eternidade estava muito longe. Quem já viu a morte de perto sabe muito bem como é.

Mas o tempo passa, a gente se regenera. Isto é, na medida do possível. 

Na época minha mãe já era aposentada, mas eu continuava trabalhando oito horas por dia. Morria de medo de deixar minha mãe sozinha em casa. Graças a Deus ela buscou outras ocupações, pra não ficar parada. Quando eu chegava, já quase noite, ela sempre tinha café pronto. Eu sabia e por isso já vinha da rua com pão de queijo quentinho. Nós sentávamos, agradecíamos a Deus pelo alimento e comíamos em silêncio. Eventualmente surgia alguma anedota de algum causo jornalístico ou algo referente ao meu trabalho. Mas até isso era difícil, porque meu pai trabalhava no mesmo órgão público que eu.

Por estes tempos eu já havia escrito meus dois primeiros livros e pensava num terceiro. Digo “pensava” porque, diante do que aconteceu, minha criatividade praticamente morreu. E não sem razão. 

Engraçado é que adquiri um hábito inusitado (pelo menos pra mim, dentro daquele contexto). Da minha herança literária, o que mantive, pela força do costume ou a necessidade do presente, foi a leitura de livros mais diversos. A possibilidade de encontrar uma boa história e mergulhar nela era um alento. O hábito inusitado a que me referi foi que eu passei a ler para minha mãe toda noite. 

Eu pegava um livro (de preferência algo baseado em “fatos reais” – expressão que ela adora) e sentava-me numa cadeira junto à sua cama. Ela ainda deitava apenas no seu lado, deixava o outro sempre arrumado e limpo, como se meu pai pudesse voltar a qualquer momento e dizer:

– Eita, comadre, que o calor lá fora tá tinindo – ocasião em que ele tomaria um bom banho frio e depois se deitaria na cama, ao lado dela. 

Eu pegava então o livro e não apenas lia, mas o interpretava. Eu era o narrador, os personagens, as onomatopeias, eu era o homem-livro. 

Minha mãe ouvia tudo quietinha, até que em certo momento eu percebia que ela havia dormido. Nunca sabia em que ponto ela tinha dormido. No dia seguinte eu precisava voltar algumas páginas pra que ela lembrasse da história. 

Fora de casa minha rotina não mudou muito. Trânsito, trabalho, almoço, trabalho, trânsito. E talvez essa mesmice me fosse até suportável, não fossem os olhares das pessoas. Enquanto eu tentava a todo custo deixar o passado pra trás, ainda com as feridas sangrando de memórias, as pessoas miravam-me com a pena e dor que eu tanto precisava esquecer. Talvez não “esquecer”, mas, pelo menos, não me fixar nelas. 

Atormentavam-me os abraços do meu pai, os comentários sarcásticos da minha irmã e os beijos da minha esposa. Ninguém me falou que as memórias seriam tão terríveis assim. 

Um dia cheguei em casa e o café não estava pronto. Chamei por minha mãe, mas não tive resposta. Larguei a mochila na sala e corri para o quarto dela. O lado do meu pai na cama estava feito, perfeito. No outro, ela dormia, com o livro que eu lia para ela toda noite sobre o ventre.

Eu estava assustado, mas aquela imagem se apresentou tão serena, tão cheia de paz que eu dei um suspiro de alívio. Sorri para mim mesmo e fechei a porta do quarto devagar. Deixe a velha descansar um pouco mais, sua vida já é muito sofrida.

Desci para fazer o café. O pão de queijo ainda estava quentinho. Coloquei água na chaleira e preparei o coador com o pó. A tarde ia se findando e eu via o sol pronto para seu repouso, também mais do que merecido. Enquanto a água fervia, eu me dei ao luxo de sair no quintal pra ver esse por do sol mais de perto e lembrar que ainda havia beleza na vida. 

Um som me tirou a concentração. Virei a cabeça e minha mãe saía do quarto, com o livro na mão. 

– Bibinho? – ela me chamou e me viu no quintal. – Acho que eu dormi demais, né?

Olhei para a cara de sono dela e sorri. Entrei em casa e abracei-a, dando-lhe um beijo carinhoso na testa. 

– Só um pouquinho – sorri pra ela. – Bora tomar café?

– Bora.

Na cozinha, a chaleira anunciava que a água estava pronta.


Texto publicado na 25ª edição da Revista Literalivre (p. 43-45), disponível aqui.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Resenha – Feliz ano velho

RUBENS PAIVA, Marcelo. Feliz ano velho. São Paulo: Círculo do Livro, 198(5?)


Depois do esplendor que foi Camilo Castelo Branco, eu precisava mesmo era de um português velho escrachado do Marcelo Rubens Paiva. Chega foi um alívio. Não tem jeito, tudo que é demais é exagero. Bom mesmo é variar a leitura. E vamos à resenha.

Gostaria de iniciar dizendo que, mesmo sendo cristão, não tenho medo de livros cujos autores sejam profanos ou heréticos. Sei filtrar o que é bom (exemplo claro é eu gostar da linguagem direta de Rubens Paiva). Sinceramente gostaria que mais cristãos fossem assim, com um mínimo de maturidade pra filtrar e não ter medo das coisas do mundo. Elas não me contaminam. Mais interessante, porém, é que elas podem me ensinar.

Pra quem não sabe, o livro é um relato autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, um moleque de 20 anos (na época) que resolveu mergulhar de cabeça num lago raso, quebrou uma das vértebras da coluna e ficou tetraplégico (depois paraplégico). Além da história do acidente em si e da recuperação, o autor pincela trechos da vida pré-acidente, com destaque para suas aventuras amorosas e o desaparecimento do seu pai quando era criança, devido a perseguições da ditadura.

O que me chama atenção logo de cara é o estilo. Rubens Paiva é tão direto e seco que em menos de duas páginas eu precisei fechar o livro como se tivesse levado um soco. Não é só o jeito que ele fala, mas o conteúdo cheio de verdades sobre seu acidente e tratamento.

A realidade na descrição da vida pós-acidente me deixou com dor de barriga em uma ocasião. Não é só a tristeza de ver o mundo passar enquanto se está preso num hospital, mas a agonia de pensar que aquela pode ser a sua vida para sempre. Conforme você lê, porém, é que vem a parte mais aterrorizante: esta, na verdade, é a vida de muita gente.

É inegável a fluidez da narrativa. É difícil desgrudar do livro. Os parágrafos curtos e os blocos de texto são separados de modo agradável e instigante. Como são bem condensados (dado estilo direto e seco do autor) são carregados de informação e deixam a gente sempre na expectativa do que virá depois.

Existe gente que consegue fazer a separação do autor e da sua obra. Via de regra, eu sou um deles. A exceção a essa regra acontece só quando eu conheço o autor pessoalmente e aquela famosa frase "não conheça seus heróis" começa a fazer sentido.

No caso de Marcelo Rubens Paiva, porém, eu tenho a nítida impressão de que é o tipo de gente arrogante com quem eu não aguentaria conviver muito tempo. Pode ser, é claro, só impressão de um texto que ele escreveu falando sobre um evento muito traumático. Sei que isso altera um pouco as circunstâncias. mas não foi só uma vez que tive essa impressão da soberba do autor.

A narrativa é bem erotizada, mas não julgo o autor. No auge dos 20 anos, universitário, morando em república, sua vida se resumia em boa parte a essas aventuras. Por outro lado, eu canso do drama. Do "será que ela quer?" ou "como vou chegar nela?". Sinceramente taí uma coisa da qual não sinto a menor falta. Drama demais, energia demais gasta com tão pouco resultado. Canso só de pensar. 

Único parágrafo sobre política que vou fazer nessa resenha. Primeiro: Marcelo Rubens Paiva é esquerda caviar do jeito mais claro que eu já vi. Segundo: tanto faz o seu lado, leitor, o poder no Brasil se traduz em conhecidos e QI (quem indica). Agora, voltando, saca só esse trecho:
Todos precisavam me ver, não sei por quê, aliás eu sei, é que agora estou com preguiça de explicar. (p. 96)
Essa citação mostra não só o estilo direto, mas o caráter bem despojado que o texto tem. Gosto dessa autenticidade do autor, em escrever não só o que está na superfície e também não fazer meandros pra dizer o que quer.

Uma coisa eu preciso admitir: o cara é corajoso. Eu acho que são poucos, bem poucos, que teriam coragem de se expor no nível que ele se expôs. Relatar os detalhes do dia a dia, mas não só os constrangimentos do acidente; mas até mesmo os sentimentos guardados em segredos por diferentes pessoas ao seu redor – gente que, tenho certeza, leu este livro (e o autor sabia que eles iriam ler).

Não tenho dúvidas que essa coragem foi uma das principais contribuições pra garantirem ao livro o Prêmio Jabuti de Literatura. O livro foi publicado em 1982 e, segundo pesquisa, foi o livro mais vendido da década de 1980 no Brasil. Não foi à toa que o autor ganhou repercussão. 

O livro não ganhou o prêmio à toa, ele tem qualidade sim. Não precisa ser moralista pra saber que tudo precisa ser filtrado, é claro, pra absorver aquilo que nos faz bem (seria meu único "porém"). Por isso, sinceramente, não tenho medo de indicar essa leitura. Basta ter uma cabeça boa.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Murchar

Dona Raimunda foi até a área de serviço e colocou um pouco de água no regador. Fazia frio e as juntas doíam a cada passo que dava. Mas as plantinhas, coitadas, precisavam se hidratar.

Ela pegou a água e voltou para a janela. Dali as plantas viam as ruas solitárias abaixo e passavam o dia tomando sol, quando este se dignava a aparecer. Molhou-as com cuidado quando sentiu uma pontada.

— Ai — ela pôs as mãos nas costas —, mais dia menos dia esse frio acaba comigo.

Havia uma cadeira de balanço ali. Sentou-se a apoiou o regador no colo. As folhas das plantinhas balançavam com o vento frio. Que bonito… era como se estivessem aproveitando a brisa. Será que só ela não teria direito a um minuto de vida sem dor? 

Balançou-se devagar na cadeira e falou sozinha:

— Já que isso faz efeito. Só aguardar.

E sorriu para si mesma. Alguns minutos se passaram e a cadeira balançou cada vez mais devagar. Era o frio.



quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Resenha – Amor de perdição

CASTELO BRANCO, Camilo. Amor de perdição. São Paulo: Dicopel, 198? (ano desconhecido)


Corona me pegou, então o jeito foi me danar a ler. Não vou comentar sobre a doença, mas sobre o presente que ganhei quando li esse livro. Aliás, obra esta que foi resgatada lá na casa da minha avó (relatei isso aqui) e acabou sendo um bálsamo para esses dias cheios de leitura.

E já que estou comentando sobre como consegui essa edição, preciso novamente relatar o pesadelo que são algumas edições antigas. Eu não tenho ideia de que editora é essa tal de "Dicopel", tampouco há informação alguma no livro quanto à data de publicação. Eu chuto na década de 1980 só pra ter um chute mesmo.

Este livro na verdade contém duas obras (vê-se aí "Eurico, o presbítero" – que, aliás, será minha próxima leitura) e faz parte de uma coleção de três volumes da "Literatura luso-brasileira". Presumo eu que isto talvez seja parte de um material didático ou tenha vindo como brinde em alguma revista de assinatura da época. 

O livro parece ser de coleção e encomendado para estes clubes do livro ou coisa assim. Difícil, se não impossível, definir a origem. De qualquer forma, dá gosto pegar num livro de folhas grossas, com gramaturas que não se veem mais hoje em dia. Pena que estava jogado num armário velho, senão tinha tudo pra estar um brilho.

Bom, pra continuar, Camilo Castelo Branco (1825-1890) é um daqueles nomes que todo mundo ouve falar na época da escola. Acaba sendo obrigatório pelo menos reconhecer o nome da literatura portuguesa. Agora, ler e gostar são duas coisas diferentes. Por isso eu sinceramente creio que não teria conseguido apreciar o autor da mesma forma que o faço hoje.

A dificuldade na leitura está presente até hoje, acredite se quiser. A verdade é que trata-se de um português antigo. Eu consigo ler todas as palavras, mas entender o significado às vezes escapa. Por exemplo, quem aí sabe o que "chiste"? Se eu não conhecesse um pouco de espanhol (e veja só que coisa né) jamais saberia que esta palavra significa "piada".

Já quanto à história em si, o que dizer? O autor era um romântico inveterado (basta ver o período em que viveu). Aliás, vale o registro de que ele escreveu essa obra toda em meros 15 dias, enquanto estava preso! O enredo traz amor, morte, triângulos amorosos, decepções e aqueles sentimentos típicos dos apaixonados:
À hora da partida, Simão tremia e a si mesmo pedia contas da timidez, sem saber que os encantos da vida, os mais angélicos momentos da alma, são esses lances de misterioso alvoroço que aos mais serôdios de coração sucedem em todas as sazões da vida, e a todos os homens, uma vez ao menos. (p. 40)
Agora, além dessa tragicidade extrema, típica do Romantismo, acho que o grande tema do livro, na verdade, é o orgulho. Temos ali o apaixonado que é tão inseguro e orgulhoso que prefere matar o rival a simplesmente conquistar a donzela; temos o pai que é orgulhoso e proíbe o casamento, a ponto de preferir ver a filha morrer do que casada com o mocinho; temos o orgulho da mulher apaixonada que, caso similar, prefere perder a vida a ficar sem o amante. Se pararmos pra pensar, o orgulho e a paixão desenfreada andam lado a lado mesmo.

Mas é inegável que o livro é super bem escrito. Os diálogos, as personagens, tudo é bem desenvolvido. A trama tem algumas reviravoltas boas, daquelas que deixa a gente preso e curioso em saber o que vai acontecer. E, ah... tem mais uma coisa... o português. Gente do céu. É nesses momentos que vemos como nosso idioma é lindo, putz, olha isso:
O coração é a víscera, ferida de paralisia, a primeira que falece sufocada pelas rebeliões da alma que se identifica à natureza, e a quer, e se devora na ânsia dela, e se estorce nas agonias da amputação, para as quais a saudade da ventura extinta é um cautério em brasa; e o amor, que leva ao abismo pelo caminho da sonhada felicidade, não é sequer um refrigério. (p. 142)
Não é à toa que um cara se torna um marco da literatura portuguesa; tampouco que um caboco devora um livro desse em poucos dias. O livro não é um clássico por pouca coisa, não. Vale a pena a leitura. 

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Resenha – O ladrão honesto e outros contos

DOSTOIÉVSKI, Fiodor. O ladrão honesto e outros contos. São Paulo: Hedra, 2013.


Eu declaro o ano de 2021 como o ano de Dostoiévski. 

Dramático, né? kkkkkk. Acontece que depois de 2020, não há mais nenhuma obra de Érico Veríssimo para eu ler. Me peguei sem norte, sem rumo. Descobri que preciso colecionar boas leituras. Foi então que lembrei desse russo do século XIX e de todas as coisas que já li dele (até que não foram tão poucas). E vi que ele também gosta da temática social, não tem medo de falar a verdade e descrever as entranhas da sociedade ou de seus personagens. E aí pensei: por que não?

Eu acho que todo mundo que fala de Dostoiévski fala a mesma coisa: psicologia profunda, personagens doentes, problemas sociais numa Rússia decadente. E o pior é que aqui não é diferente. Um detalhe deste livro, porém, é que ele contém contos do autor (em vez dos longos romances que marcam sua obra).

Estes contos foram escritos no começo da sua carreira, entre 1846 até sua prisão em 1849. Mas já aqui vemos traços da obra que vão marcar todo o seu estilo. Aliás, em um dos contos deste livro, O ladrão honesto, encontramos o arquétipo do homem doente que – segundo os especialistas – foi o protótipo de todos os outros que se seguiram.

A primeira vez que li literatura russa, o que mais me chamou a atenção foi ver que a linguagem é usada de um modo estranhamente intrincado, mas interessante ao mesmo tempo. É um mergulho gradual nas situações, revelando atitudes de um modo profundo, não sei explicar. Talvez depois de ler mais eu o compreenda melhor. Mas sempre tive essa impressão de Dostoiévski (e agora me pergunto se não vi algo parecido em Gogol ou é coisa da minha cabeça).

Quanto ao conteúdo dos contos, sinceramente acho que não vale a pena debruçar-nos sobre eles de um por um. Mas gostaria de trazer um trecho do conto O pequeno herói, conto este escrito em 1849 quando Dostoiévski já estava na prisão (segundo ele mesmo, este conto foi um alento para suportar aquele lugar):
De repente meu peito hesitou, doeu como se algo perfurasse, e lágrimas, doces lágrimas jorraram de meus olhos. Cobriu o rosto com as mãos e, tremendo todo, como uma plantinha, entreguei-me livremente ao primeiro reconhecimento e revelação de meu coração, à primeira intuição, ainda confusa, de minha natureza... Minha primeira infância terminou nesse momento... (p. 101)
Veja como Dostoiévski caminha no limite entre o romantismo poético e o realismo fisiológico que seria a grande marca da sua obra. Este limiar entre poesia e prosa é visível em vários outros momentos da sua obra e é o tipo de coisa que dá gosto de ler.

Mais uma vez os melhores contos falam de personagens doentes. Agora é interessante notar que a doença que não começa no físico, mas na alma. E os personagens tem a maldade na alma. Não é que façam maldade, não. O autor refere-se ao mal que é intrínseco à natureza humana, que os corrompe devagar, até o ponto que transborda e afeta todo o seu corpo:
O caso era que Vássia não cumprirá seu trabalho, sentia-se culpado diante de si mesmo, sentia-se grato diante do destino, estava esmagado e abalado pela felicidade e se considerava indigno dela [...] (p. 146)
Quanto a esta edição, pra finalizar. Achei extremamente agradável e de bom gosto o trabalho da Hedra em fazer esta coletânea no formato pocket book. A tradução é boa, fluida. Apesar dos parágrafos longos (e aí a culpa é de Dostoiévski mesmo), não é cansativo ler e se debruçar sobre as narrativas.

O único problema que encontrei aqui foi algo que caracterizei como um problema na diagramação (veja foto ao lado). Note como a palavra "Emeliánuchka" passa da margem estabelecida pelo editor de textos. Será que foi uma boa escolha do diagramador? Eu entendo que não. Melhor teria sido hifenizar o termo e gerado mais uma linha mesmo, porque do jeito que ficou chama a atenção demais e faz o erro saltar aos olhos do leitor.

Fora este detalhe (porque é realmente um detalhe velho besta), a edição é linda maravilhosa, a leitura é super agradável e as histórias são boas e dignas do velho Dostoiévski. Leitura recomendada demais e um ótimo jeito de iniciar 2021. Vamos ver o que mais este cabra tem reservado.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Crônicas do cotidiano – X

Conceda-me a gentileza de não perguntar o porquê. Nem eu sei. Eis-me aqui novamente com a necessidade de falar algo sobre este lugar. Talvez sejam as descobertas misteriosas e inesperadas que fazemos naqueles momentos em que menos esperamos.

Há dois dias passeávamos no Largo de São Sebastião, também conhecido como "aquela praça que fica em frente ao Teatro Amazonas". Eu já havia ido lá antes, mas dessa vez algo diferente aconteceu. Eu me peguei gostando de tudo aquilo. Da brisa agradável, das crianças brincando na praça, dos velhos sentados em bancos vendo o mundo passar. Por um acaso, eu estava sentado num banco.

Quando nos pusemos a andar, contemplei o Teatro e pensei nas tantas histórias que aquele lugar já presenciou. Afinal, de 1896 pra cá, haja história! Lembro de uma vez que meu primo comentou sobre a realidade do Teatro nos idos de dois séculos atrás, quando carruagens chegavam para levar os mestres às casas ou outros compromissos. 

A vida sempre foi a vida. Não é à toa que existem ainda hoje registros históricos de problemas de trânsito em frente ao Teatro. Existe, inclusive, registros de multas que os guardas aplicaram na época e até colisões entre carruagens. 

E eu andava por ali pensando em tudo isso.

No dia seguinte fui uma última vez à casa da minha avó, antes de voltar para Boa Vista. Lá eu encontrei o velho calor de sempre, aquela presença sufocante que só era suportável por causa das pessoas que estavam ali. Não estava meu avô, já comentei, mas ainda está minha avó, e nisso está meu foco.

Sentei-me ao lado dela enquanto ela mandava minha mãe fazer café – coisa que minha mãe não estava muito a fim de fazer. Enquanto esperávamos, ela aproveitou pra me contar que o povo anda muito isolado, que depois que as visitas vão embora ela agora fica ali sozinha. Chegou até a me convidar para ir mais vezes. O quarto que era do meu avô é agora um quarto de hóspedes, todo mundo é bem-vindo. 

Por fim, fomos à cozinha onde falamos sobre tudo que sempre se fala num café de final de tarde. Mal dos vizinhos, mal da política, mal do clima. E somos novamente cúmplices nos nossos desencantos com a vida. Até aqui, não houve nada de diferente, mas algo aconteceu.

Conversa vai, conversa vem, chegamos no assunto deste escritor ao acaso e eu comentei que havia lido bastantes livros em 2020. Mencionei à minha esposa que na época da adolescência, em uma das muitas visitas à casa da minha avó, eu próprio salvei muitos livros do lixo. 

Depois que os filhos saíram de casa, minha avó não tinha mais serventia para aquele bando de papel velho. Aliás, um dos livros que eu salvei tornou-se, anos mais tarde, o meu livro favorito de todos os tempos: "Um lugar ao sol" de Érico Veríssimo.

Ocorre que, naquela mesma noite, havia alguns livros naquela casa que estavam em situação similar. Se não corriam o risco de irem para o lixo, certamente ficariam jogados num armário de canto onde as baratas adoram fazer morada. Eu prontamente fui ao resgate, vendo o que se salvava dali. E aí a outra surpresa inesperada aconteceu. 

Dentre livros didáticos, livros de receita, livros religiosos, até umas revistas velhas que eu nem me arrisquei a mexer (gente, se vocês vissem o tanto de poeira que estava aquilo ali... foi um milagre que eu não tenha morrido de choque anafilático), dentre todos eles, encontrei uma relíquia. Um único exemplar de uma coleção perdida de literatura luso-brasileira. Naquele volume, dois livros: "Amor de perdição" de Camilo Castelo Branco e "Eurico, o presbítero" de Alexandre Herculiano. Dois livros que eu nunca havia lido, bem ali, debaixo do meu nariz todos esses anos.

E eu fico aqui me perguntando quantos outros segredos estão escondidos por esses cantos que eu conheço há tantos anos. Por que somos tão desconectados dos legados de quem veio antes? Por que estamos sempre procurando tesouros em lugares deslumbrantes, em vez de olhar para o que está perto? E ainda me dá vontade de questionar por que é que... 

Eita! Acabei de me tocar que cometi um erro. Olha onde eu vim parar. Não concedi a mim mesmo a gentileza e estou agora a perguntar os porquês. Melhor seguir a vida. Dessa vez, com os olhos mais abertos.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Crônicas do cotidiano – IX

Uma coisa não se pode negar. Manaus é uma cidade viva e alerta na noite de Ano Novo. Não sei se como ela é nos outros dias; mas neste, eu garanto que ela fervilha. 

Essa cidade me traz sentimentos conflitantes. Por um lado, eu a odeio. Já escrevi sobre isso antes. É barulhenta, bagunçada, feia mesmo em alguns momentos. Por outro, quase toda vez que eu venho aqui, isso rende um texto. E eu não costumo escrever por qualquer coisa.

O que é, então? 

Não sei. Este ano passamos a virada na casa dos meus avós. E lá havia um elefante no meio da sala. Na verdade, havia a ausência dele. E esta ausência era nítida, mas não falávamos nela. Isto não significa que a ignorávamos, tampouco. Não. Não era um medo da memória, era respeito. E éramos cúmplices nos nossos sentimentos mistos de alegria e tristeza.

Este foi o primeiro de muitos anos sem meu avô ali, sem seu sorriso desdentado na cadeira de balanço, sem seu boné na cabeça, o verdadeiro índio negro garotão. A vida continua, as lembranças ficam.

Em determinado momento da noite meu primo fez cantar a antiga vitrola, relíquia do século passado. A vitrola tocava a programação da rádio, mas para gente ela ecoava a presença do meu avô. 

Quando os fogos estouraram, as lágrimas foram inevitáveis. Mas nos aliviávamos nos olhares uns dos outros, nos abraços apertados, no amor que percorre nossas veias e vai além delas. E por isso comíamos felizes, ríamos das piadas e causos uns dos outros, a saudade não era mais apenas um silêncio estranho sobre nós, era um convidado extra. 

E nós a abraçamos também, convidando a sentar conosco, dividir nossa mesa. Porque entendemos que ela sempre vai estar ali, então não custa nada fazê-la de casa também. E aí nós compreendemos a saudade em outro nível, naquele sentido inexplicável da palavra "saudade" que os linguistas tentam explicar. Uma tristeza alegre, uma lembrança presente, um caboco que chora quando os fogos de artifício começam a explodir e mesmo assim diz sorrindo: 

"Vai-te embora, ano velho!"