sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Crônicas do cotidiano – IX

Uma coisa não se pode negar. Manaus é uma cidade viva e alerta na noite de Ano Novo. Não sei se como ela é nos outros dias; mas neste, eu garanto que ela fervilha. 

Essa cidade me traz sentimentos conflitantes. Por um lado, eu a odeio. Já escrevi sobre isso antes. É barulhenta, bagunçada, feia mesmo em alguns momentos. Por outro, quase toda vez que eu venho aqui, isso rende um texto. E eu não costumo escrever por qualquer coisa.

O que é, então? 

Não sei. Este ano passamos a virada na casa dos meus avós. E lá havia um elefante no meio da sala. Na verdade, havia a ausência dele. E esta ausência era nítida, mas não falávamos nela. Isto não significa que a ignorávamos, tampouco. Não. Não era um medo da memória, era respeito. E éramos cúmplices nos nossos sentimentos mistos de alegria e tristeza.

Este foi o primeiro de muitos anos sem meu avô ali, sem seu sorriso desdentado na cadeira de balanço, sem seu boné na cabeça, o verdadeiro índio negro garotão. A vida continua, as lembranças ficam.

Em determinado momento da noite meu primo fez cantar a antiga vitrola, relíquia do século passado. A vitrola tocava a programação da rádio, mas para gente ela ecoava a presença do meu avô. 

Quando os fogos estouraram, as lágrimas foram inevitáveis. Mas nos aliviávamos nos olhares uns dos outros, nos abraços apertados, no amor que percorre nossas veias e vai além delas. E por isso comíamos felizes, ríamos das piadas e causos uns dos outros, a saudade não era mais apenas um silêncio estranho sobre nós, era um convidado extra. 

E nós a abraçamos também, convidando a sentar conosco, dividir nossa mesa. Porque entendemos que ela sempre vai estar ali, então não custa nada fazê-la de casa também. E aí nós compreendemos a saudade em outro nível, naquele sentido inexplicável da palavra "saudade" que os linguistas tentam explicar. Uma tristeza alegre, uma lembrança presente, um caboco que chora quando os fogos de artifício começam a explodir e mesmo assim diz sorrindo: 

"Vai-te embora, ano velho!"



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