sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Resenha – O vendedor de sofás

BERNARDES, Anderson; MARCON, Franciele. O vendedor de sofás. Itajaí: Ipêamarelo, 2022.


Este livrinho chegou pra mim como premiação do 3º Concurso de Minicontos da editora Ipêamarelo. Mais uma daquelas clássicas antologias que encontramos por aí, distribuídos numa edição pocket book (devo admitir) muito fofinha. Literalmente cabe na palma da mão. Achei o acabamento muito bem feito de modo geral, dá pra ver que é um trabalho de qualidade.

Cada página do livro é uma história, tipo eu fiz no "É a vida: microcontos de risadas, amor e morte". Mas a verdade é que não gosto muito de coletâneas de autores. O livro nunca tem uma identidade muito certa. Os estilos são diferentes, os tópicos são diferentes, os gêneros são diferentes. Por mais que se tente organizar o livro, não fica algo uniforme. 

Por isso, limitei-me a destacar aqui os contos e autores que gostei. Não vou transcrever aqui os contos deles porque já estão publicados no livro e, como os contos são bem pequenos, pra transcrever eu teria que copiar praticamente o texto inteiro. Vamos aos destaques:
  • Branca Sobreira traz o conto "The Hand". É cru, pesado, real. Gostei DEMAIS da abordagem dela, ao ponto de ir pesquisar no Google outros textos dela e gostei de todos. Se peca em alguma coisa aqui é ter colocado o título em inglês – não colabora em nada com o conto e só serve pra ser um estrangeirismo que diferencia o título.

  • Cintia Laud, no conto "Não há cordões em mim", constrói um clima muito bom, um ambiente bem trabalho em pouco tempo, com direito ainda a uma excelente revelação no final, pra dar aquele punch. Tem uma abordagem mais seca, direta, mas sem revelar demais. Muito bom o texto.

  • Glauber Santos Wisniewski, no conto "O motorista do shuttle ouvia jazz", tem um estilo clean, agradável de ler. Dessa vez não condeno o estrangeirismo, porque casou com o tom geral do conto, contribuiu para dar um ar de "exterior" e viagem – ou seja, o título serviu a algum propósito dentro do texto, não sendo só um título em si.

  • Quando li Isadora Rodrigues, em "Um estalo", senti que não foi o melhor trabalho da autora, mas tem potencial.

  • Marina Barrichello Marone ganha fácil o título de melhor conto de terror do livro com a história narrada em "A janelinha". 

  • E por fim Wanderson Mota Silva fica com o título de melhor trocadilho no conto "A toalha" – conto este que encerra a coletânea. 
Incomodou-me um pouco o aspecto visual dos contos. A maioria das histórias no livro são "blocadas", ou seja, um único parágrafo enorme com todas as informações. Acho que isso foi por causa do método de submissão do concurso, que era preenchendo um formulário no Google e isso acabou levando as pessoas a essas construções. (Interessante essa influência aspecto visual não só do texto final, como também na sua produção.)

O livro é um pouco cansativo de ler, não sei se por conta desse aspecto blocado, ou talvez pela disposição dos contos, que tendem a ser muito densos. Ou seja, toda vez que a gente passa a página, temos que refazer nosso comprometimento mental de começar uma história do zero. O fato de ela ser "micro" facilita bastante; mas quando o texto é muito pesado, isso cansa. Não que isso seja ruim, talvez seja até bom pra que o leitor seja convidado a revisitar o livro com frequência. Só foi algo que notei.

Não gostei da maioria dos textos, simplesmente porque não me chamaram a atenção. Vários deles me fizeram revirar os olhos com muito lirismo em prosa que me fez questionar se os textos eram mesmo contos ou divagações escritas num caderno estudantil.

É inevitável que eu faça uma comparação com o "É a vida" e agora com meu novo livro, o "Pois é". Meus livros têm a vantagem de terem sido escritos por um único autor, o que ajuda demais a manter o estilo e a coesão interna da obra. De modo geral, penso que a disposição dos contos nos meus também foi mais assertiva, deixando espaços pro leitor respirar com contos mais leves e intercalando temas de maneira mais sensível. Só que falar do próprio livro é fácil, né? Melhor parar por aqui então.

Aliás, não entendi o porquê de "O vendedor de sofás". O título faz referência a um único conto dentro da obra e não transmite bem o que o livro tem a apresentar. Mas não dá pra negar que o título é bem legal. Um daqueles clássicos que faz a gente, no mínimo, pegar o livro pra ler a sinopse.

De modo geral, acho que a editora Ipêamarelo fez um bom trabalho com o que tinha em mãos. A produção foi bem feita, mesmo que o conteúdo – pra mim – não tenha sido dos melhores. Mas não tem muito o que fazer, este será sempre o resultado dessas coletâneas. 

Este é um livrinho para se ter na mochila, ou pra levar no banheiro. Não vai mudar sua vida, algumas poucas histórias terão real impacto – o que não é demérito nenhum para um livro, nem todos têm esse propósito. Em suma, é uma obra que pode ser um bom passatempo. É isso. 


P.S.: tem um conto meu neste livro. Clique AQUI para ler.

Buraco

Tem um buraco na minha sala que leva ao Inferno. O demônio sai de lá de vez em quando pra relaxar.

— Bom dia, Rosana.
— Oi, Naberus. Vou fazer café, tu quer?
— Só se for sem açúcar e bem forte, igual a gente toma lá no inferno. 

Passei o café e servi-lhe uma xícara. Ligamos a TV, era o jornal. Guerras, pandemia, corrupção. O demônio puxou uma prancheta e começou a anotar.

— Naberus, tu bem que podia falar com teu chefe pro Brasil ter uma folga, né?

Ele bebericou o café e balançou a cabeça:

— Rosana, tu acha que o diabo vai perder tempo lascando o Brasil?

Naberus levantou e foi lavar a xícara. Rosana espiou a prancheta: “Brasil, pesquisa de campo.” Da cozinha, ele disse:

— Eu venho aqui é pra aprender.


Conto publicado na coletânea "O vendedor de sofás", fiz uma resenha dele AQUI.

Remanso

— Doutor, fui picado por um carapanã no lavrado.
— Quem não foi, né? — ele sorriu. — Deixe eu ver.

Apresentei-lhe minha mão arroxeada e inchada, mostrei bem pra ele as veias onde os vermes passeavam.

— Que é isso?!
— Doutor o senhor já foi a um igarapé num fim de tarde?
— Sim, mas o que isso…
— O senhor sabe aquele horário em que os piuns e carapanãs saem? Bem perto do pôr do sol?
— S-sim.
— Então o senhor sabe que naquela hora, aquela mesma hora, em que Cruviana não sai, fica escondida com medo do silêncio, aquele momento entre a luz e a escuridão em que você tá mas não tá ali, sabe? Em que os buritizais ficam parados, esperando pra ver o que vai acontecer naquela hora específica.

Levantei da maca devagar e caminhei até ele. Minha mão roxa pesava e doía, eu comecei a suar. O médico deu dois passos pra trás, ele olhou pra porta, mas então já não tinha porta porque era o crepúsculo.

— O que tá acontecendo? — tinha medo na voz dele.
— Não tá acontecendo nada, nada mesmo. O senhor não entende que é exatamente isso? Não acontece nada. Não é mais dia, mas também não é mais noite. E só o que resta é o enxame de insetos que vem nos morder, tirar o sangue, a sanidade, porque eles entram no seu olho, no seu nariz, no seu ouvido, e não importa quanto você se debata eles não param de te atacar, porque você é só um e eles são centenas, milhares, centenas de milhares.

E no fundo dos olhos daquele médico eu vi que ele sabia também. Quem é de Roraima sabe. Sabe que quando o mormaço entorpecente vem, não tem rede que resolva, não tem ventilado que aguente, não tem ninguém que consiga suportar. Todo mundo acha que gosta do silêncio, até a hora que ele vem.

O médico continuou recuando até que os pés dele entraram na água do igarapé. A água também corria sem fazer som. Ele estava descalço e agora eu também. Na verdade, estava nu. Porque agora eu já não conseguia impedir o fluxo, e senti quando meus olhos começaram a inchar e o mundo começou a ficar arroxeado e tudo se espalhava. O médico ainda conseguiu gritar:

— O que é isso?! — e já o grito dele estava abafado, engolido pela infinitude do lavrado.
— Silêncio, doutor… — eu sussurrei.

Silêncio…


Conto publicado na Newsletter da revista Égua Literária, disponível AQUI.

E-mail

– Pode enviar.
– O quê?
– O e-mail.
– Ué, já enviei.
– Eita, já? Pera, deixa eu ver aqui. Ah, é. Chegou mesmo. Vish, mas veio sem anexo.
– Alô? Oi? A ligação está cortando.
– Eu disse que o e-mail chegou sem anexo.
– Sim eu mandei o e-mail, já disse.
– Já entendi isso, mas estou dizendo que veio sem anexo.
– Oi? O anexo? Sim, eu fiz a tabela, já te enviei.
– Marcos, eu tô dizendo que veio sem anexo. Sem. Anexo. Ouviu?
– Hum… acho que entendi agora. Foi sem anexo, é?
– Isso!
– Ah, tá. Desculpa. Fica aí na linha que vou enviar de novo. Enviando. Nossa, a ligação tá cortando demais, difícil te ouvir. Pronto, agora foi! Recebeu?
– Recebi sim.
– Pronto, tá aí o e-mail. Posso ir?
– Marcos.
– Que foi?
– Veio sem anexo.


Conto publicado na coletânea "A vida é uma piada", da editora Apparere. Disponível para compra AQUI.

Anfêmero

Há um deserto no fundo do mar. Lá os crustáceos andam sem ver o fim do mundo, apenas contemplando os pássaros-peixes que os sobrevoam com ar ameaçador. O crustáceo precisa ser esperto, as coisas não são mais como antigamente.

Antes, ainda se podia passear, levar a família para ver um pequeno gêiser, essas coisas que só quem vive no fundo do mar sabe apreciar. Mas hoje não tem mais condições. Cada esquina é uma moreia, um molusco bêbado perdido, um detrito que caiu do espaço.

O fundo do mar é um deserto, mas não significa que a gente não posso gostar do deserto.

Existe um lugar, porém, que a gente gosta de evitar. São as fossas oceânicas. Reza a lenda que lá embaixo existem seres horripilantes e é para lá que vão todos os peixes que boiam. Sim, é um paradoxo. Eles boiam, mas no final vão parar no mais profundo do mar.

O fundo do mar é cheio de histórias. Se olhar para baixo, tem as fossas; mas, se olhar para cima, tem o Grande Espaço. Não falo ali onde voam peixes, falo de onde caem os detritos. Há histórias até de gente que foi abduzida. Nunca conheci um desses, só ouvi falar. Há histórias.

Certo dia eu andava com minha esposa à procura de plânctons. Nossas patas vasculhavam a areia. Procurávamos e montávamos guarda ao mesmo tempo. Um peixe sobrevoou nossa cabeça e tentamos nos enterrar na areia, mas ele falou conosco:

– Esperem! Estou perdido.
– Como é?
– Vocês sabem o caminho para as fossas?

Eu e minha esposa nos entreolhamos. Era um robalo qualquer, não havia nada de especial nele, parecia inocente o suficiente.

– E o que diabos o senhor vai fazer lá? – minha esposa interpelou.
– Vou buscar meu pai.

Silêncio. Um vento de ondas levantou a poeira no fundo do mar e eu tossi.

– O senhor está falando sério? – dessa vez eu que falei.
– Já disse que sim. Vocês sabem o caminho ou não?

Novamente ficamos em silêncio, mas viramos a cabeça para o leste. O robalo entendeu tudo e pegou o rumo à toda velocidade.

– Moço, faça isso não – minha esposa disse, mas ele já não conseguia escutar.

O fundo do mar é um deserto e no deserto a gente vê miragens, coisas estranhas. Será que aquele peixe estava lá mesmo? E como o doido conseguiria resgatar alguém das fossas? Olhei para minha esposa e ela não disse nada, começou a cavucar a areia de novo. Imitei-a.

Mais tarde, já em casa, nenhum dos dois teve coragem de comentar o causo. Se falássemos aos vizinhos, seríamos motivo de chacota, como aqueles que dizem ter sido abduzidos. O deserto é um lugar com poucas novidades e, nós aprendemos naquele dia, era assim que preferíamos.

No dia seguinte, apenas eu saí para procurar comida.

– Estou indisposta, você se importa?
– Tranquilo, querida, sem problemas.

Eu saí de casa um pouco aliviado. Não queria sentir de novo o desconforto de pensar naquele peixe. Mas eu não conseguia evitar. No fundo eu sei que minha esposa também não e foi por isso que preferiu ficar em casa.

Eu andei pelo deserto infinito, mas estava distraído demais para conseguir o que precisava. Olhava para cima e ficava imaginando como seria ir além do Grande Espaço, lá onde só alguns peixes-pássaro conseguem ir. O meu devaneio me fez caminhar a esmo. Quando menos esperei, eu estava lá.

Eu olhei para a escuridão do profundo do mar e, como eu tanto temia, ela olhou de volta para mim. Fiquei procurando sinais do robalo, mas eu sabia que era impossível ver qualquer coisa ali. O chamado do abismo era cada vez mais forte. Precisei de muita força para olhar para trás e ver o que estava ali desde sempre.

Há um deserto no fundo do mar. Lá os crustáceos andam ignorando o fim do mundo, apenas contemplando os pássaros-peixes que os sobrevoam com ar sonhador. O crustáceo precisa ser esperto, as coisas ainda são como antigamente.


Conto publicado na 34ª edição da Revista LiteraLivre, disponível AQUI.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Resenha – Almas mortas

GÓGOL, Nikolai. Almas mortas. São Paulo: Abril Cultural, 1987.


Esse é um daqueles livros que é difícil de resenhar logo depois que se termina a leitura. É que ele reverbera demais, é profundo demais. Não só pelo teor do livro em si, mas pelo próprio destino do autor, que nunca terminou o livro. Na verdade, ninguém jamais saberá o final de Almas Mortas, porque o autor queimou seu manuscrito original, nove dias antes de morrer.

Neste livro acompanhamos a história de Tchítchicov, um ex-funcionário público corrupto, que bolou um esquema para enriquecer: acontece que todos os proprietários rurais (chamados de pomiêchtchik) têm que listar seus servos, ou seja, as almas que têm na sua propriedade e pagar tributos delas ao governo. Porém, o governo só atualiza essa listagem a cada tantos anos (como um censo). E se nesse meio tempo morrer algum servo, o proprietário continuará pagando tributo por ele até o próximo censo, quando finalmente poderá retirá-lo do seu rol de almas.

Como uma alma bondosa, Tchítchicov aparece na propriedade destes latifundiários e oferece para comprar essas "almas mortas", este peso que os proprietários carregam. A brecha que ele encontrou é que, embora as pessoas estejam de fato mortas, elas ainda existem como vivas no papel. E como servos são um tipo de propriedade, ele pode utilizá-los como caução ou moeda de barganha para conseguir altos empréstimos com o governo (e, teoricamente, sumir com a grana).

Só essa explicação já serve pra mostrar bem o caráter da história. Ela não trata de um herói, mas, como próprio Gógol diz, trata de um patife. Gógol ajuda a inaugurar, lá pelos meados do século XIX, o realismo na literatura russa. Ele não tem pena de retratar seu país tal como ele é – e, o mais interessante, isso não diminui em nada o seu patriotismo (embora, veja só, o autor tivesse nascido na Ucrânia). De qualquer forma, dá gosto de vê-lo falar do povo russo.

Aliás, sempre que leio boa literatura russa fico assustado com as semelhanças com o Brasil. Burocracia, coronelismo, servilismo público e tudo que isso traz (da puxação de saco à corrupção). Chega a ser desconcertante tanta parecença. 
[...] a nossa pátria está perecendo, não pela invasão de vinte tribo estrangeiras, mas por nossas próprias mãos. (p. 444-445)
Gógol não chega a ser tão psicológico quanto Dostoiévski. E, justamente por isso, talvez ele consiga transmitir com mais gosto quem é o ser humano. Porque enquanto Gógol não explora com profundidade a psiquê, ele traduz isso de modo fenomenal no próprio comportamento dos personagens, em vários pontos apenas destacando o que já ficou visível ao leitor:
E ficou claro que espécie de criatura é o ser humano: é sábio inteligente e sensato em tudo o que se refere aos outros, mas não a ele próprio. (p. 250)
Deus do céu, que distância imensurável há entre conhecer o mundo e o saber utilizar-se deste conhecimento! (p. 396)
A tradução deste livro foi feita pela finada Tatiana Belinky, que fez um trabalho simplesmente fenomenal. Não sei se Gogol tinha a linguagem acessível que o livro parece ter; mas, ao julgar pelo teor das narrações, ouso dizer que sim. Tudo graças ao exímio trabalho da tradutora, que fez um equilíbrio sensacional entre coloquial e formal:
O dia, ao que parece, foi encerrado com uma porção de vitela fria, uma garrafa de sopa de repolho azedo e um sono ferrado, um ronco puxado, como se dizem algumas partes do vasto império russo. (p. 13, grifos meus)
Some-se a isso o próprio estilo sagaz e quase cômico de Gógol. Quem lê o livro, parece estar diante de um erudito, um sábio, um formalista. Mas quando a gente começa a ler e se depara com essas expressões ou até mesmo algumas construções, não consegue evitar, no mínimo, um sorriso de orelha a orelha com trechos como esse aqui:
[...] adormeceu logo, num sono forte e profundo, um sono maravilhoso como só é dado dormir àqueles felizardos que não conhecem nem as hemorróidas, nem as pulgas, nem os dotes intelectuais excessivos. (p. 156, com destaque para a equiparação de hemorroidas e dotes intelectuais excessivos)
Caramba, que escritor! Aliás, é interessante notar que o livro começa com pura narração, mas não cansa! Pelo contrário, é gostoso de ler. Quero entender o que tem de tão gostoso, saboroso até nessas obras realistas que nos fazem ter tanta vontade de continuar a leitura. É assim que eu quero um dia escrever.

Vale citar também que Gógol faz uso da viagem como elemento motor da sua narrativa. Até mesmo quando Tchítchicov está hospedado por um longo tempo numa cidade, ele ainda viaja para as fazendas dos latifundiários que pretende engabelar. Essa constante movimentação por meio da viagem faz o leitor sempre olhar pra frente, sempre traz sensação de movimento. E isso ainda livra o autor de precisar continuamente justificar os deslocamentos e abrindo um espaço não-forçado para divagações e digressões no trajeto entre os lugares. Este é um exemplo sensacional do uso eficaz da viagem como recurso narrativo.

Antes de concluir, vale dizer que o livro nos traz muitas características interessantes sobre a cultura russa. A começar pela centralidade do pomiêchtchik não só para a narrativa como para a própria forma de organização em glebas, com servos sendo propriedade, gerando pequenas vilas em cada fazenda, atraindo um clero próprio, etc. A propriedade rural, nesse caso, é um microcosmo próprio, cada uma como uma realidade paralela.

Além disso, me surpreendeu bastante a hospitalidade dos pomiêchtchik. O cara vai visitar alguém que nunca conheceu, mas o anfitrião faz questão que ele fique pro almoço. Se entabularem boas relações, o hóspede deve dormir no local, sob pena de ofender o dono dela. Se forem conhecidos, o hóspede deverá ficar pelo menos um mês naquela casa, presenteando o anfitrião com sua companhia.

Parece até estranho descrever dessa forma, mas é absolutamente verdade! Aqui no Brasil mesmo não é estranho que alguém, em viagem de férias, hospede-se por duas semanas na casa de um parente. Cheguei a comentar isso uma vez pra um amigo dos EUA. Ele arregalou os olhos e ele achou um absurdo.
Se a devassidão tem que entrar neste mundo, que não seja pelas minhas mãos! (p. 374)
Haveria muito mais a falar, tanto sobre as várias temáticas que Gógol traz da sociedade russa (propinas, jogo de influências, falsidade social, etc.) como outros traços muito interessantes da sua cultura (nessa época ainda muito influenciada pela França); mas vou concluir com esta pintura de Mikhail Clodt, que retrata o porquê de não termos o fim desse livro. 

O que acontece com Tchítchicov no fim das contas? Dá certo a maracutaia? Não sabemos ao certo. O livro termina com um discurso de outro personagem sobre a necessidade da nobreza de espírito do povo russo. Pra saber o que vem depois disso, precisaríamos ter acesso àquele manuscrito que Gógol queimou. Alguns dizem que foi um acesso de raiva, outros dizem que foi acidente. O fato é que aquilo o perturbou de tal modo que ele ficou acamado, recusou-se a comer, e morreu de inanição nove dias depois.

Fim de 'Almas Mortas"  (Gógol queima seu manuscrito). Mikhail Clodt, 1887