sexta-feira, 18 de março de 2022

Resenha – Flood

MCPHERSON, Brennan. Flood: The story of Noah and the family who raised him. Sparta: McPherson Publishing, 2017.


Ok, vamos por partes. Pra começo de conversa, este é o segundo livro da série "A queda do homem", de Brennan McPherson. Eu descobri essa vertente incrível da ficção cristã lá em 2019, quando li o agora já não mais publicado "Cain" (resenha disponível aqui); e depois continuei a curtir o gênero quando li a obra "Eden" (também fiz uma resenha). Dessa vez, porém, infelizmente a coisa não foi igual.

O livro de 354 páginas narra a história de Noé, começando com seu pai Lameque, passando pela história do em tese personagem principal, até finalizar com o Dilúvio. A edição é bem trabalhada, paperback, e segue o tema e estilo dos outros livros da série. 

O prólogo é bem trabalhado, de um jeito que até lembra o Silmarillion de Tolkien (resenhado também). O livro funciona muito bem como uma continuação de "Cain". Porém, conquanto eu tenha curtido o começo, não tardei a identificar algumas coisas que tornaram a leitura desse livro um verdadeiro suplício.

O que me pareceu é que o autor teve uma série de boas ideias e tentou juntar todas elas de uma única vez num só livro. No fim das contas, elas acabam mal trabalhadas e súbitas demais. Aliás, todos os temas iniciais são muito súbitos. Pá, invasão. Pá, escravidão. Pá, ainda penso na sua mãe que morreu. Nem dá tempo da gente se conectar direito com as histórias e os personagens.

Isso se traduz também nos diálogos entre alguns personagens, que soam bem "preachy". Enquanto há vários trechos que são naturais, os diálogos entre Lameque o pai Matusalém, por exemplo, soam como falas de teatro, não pai e filho conversando. Mais tarde, a mesma coisa se repete nas falas do Noé adolescente com Enoque. Pra mim, na parte que Noé finalmente aparece, as coisas soam desajeitadas. O jeito como a personalidade do rapaz é contada, parece muito tell e pouco show.

Enquanto eu elogiei tanto a construção psicológica dos personagens em Cain e Eden (vide as resenhas), aqui eu tive um banho de água fria. A tensão pai-filho de Matusalém e Lameque não funciona, não teve espaço suficiente pra construir, soa forçado (o mesmo para as relações Noé-Matusalém e até Noé-Enoque). 

A construção do próprio Noé é muito súbita, quase forçada. Logo dele que deveria ser o personagem principal (deveria?) está cheio de mudanças de personalidade muito rápidas. O livro tem até adolescentes com inteligência emocional absurda, sabendo exatamente o que e por que estão sentindo o que sentem.

Teve mais de um momento que deu o famoso "cringe". Só em filme e livro mesmo pra pessoa estar toda lascada, fugindo da morte e tentando sobreviver, e ainda achar tempo pra se apaixonar. Basta assistir qualquer seriado de sobrevivência na selva pra mostrar como essa romantização está longe da realidade. Outra parte que me deixou agoniado foi quando Enoque praticamente força um "treinamento Jedi" em um Noé adolescente.

[Pausa para notar o drama do autor em vários momentos (aliás, várias vezes ele tenta criar esse drama por meio de capítulos curtos e eu não estou bem certo até que ponto eles funcionam):
"In all those long years, no dreams came to Lamech, but every so often, as he hovered between sleep and wakefulness, he would think he saw eyes glinting in the night, and feel a stab of fear Each time he opened his eyes, he found his fears unfounded.
Each time but one" (p. 155)
Pam, pam, pam! (...) Ok, continuando.]

Novamente, o que me parece é que há uma série de boas ideias, mas em vez de escolher as melhores, colocou-se todas no livro. Por exemplo, no começo, o autor desenvolve a história de Lameque e Adah. Ele faz isso tão bem, que Adah se torna a personagem principal do livro e tudo converge muito bem na história dos dois... Aí ele mata Adah (spoiler alert).

Depois desse ponto, o autor tem que reconstruir todas as regras do jogo com o leitor, fazendo de Lameque o personagem principal – e mais à frente ele ainda vai quebrar isso mais uma vez, dando a Noé o papel de protagonista. São muitas mudanças num espaço muito curto. A premissa é válida, mas não no pouco espaço que se tinha para trabalhar. 

Se parar pra pensar, o único personagem sempre presente na narrativa é o vilão. E falando nele, engraçado como as coisas ruins parecem estar acontecendo só porque o vilão falou seu plano maligno e, por coincidência, está tudo se encaixando pra que o plano aconteça com sucesso. 

Pra mim o ápice da ruindade foi a parte de Noé "escolhendo" o caminho que queria seguir. Ali foi o fundo do poço. Não só foi teologicamente complicado demais pra mim, como também o autor perdeu a oportunidade de falar da conversão de Noé de um jeito que o leitor pudesse se relacionar. (E pra completar, não muito depois disso, tem o vegetarianismo. Sem comentários).

A verdade é que quando li Cain, tudo era novidade. Quando li Eden, o patamar subiu. Agora tornou-se inevitável: meu padrão aumentou e, por consequência, o nível de exigência também. 

Mas, afinal, quem sou eu, né? Acho que o que mais me assusta no livro é que eu acho que se eu escrever um romance ele vai sair exatamente do jeito que Flood saiu: cheio de boas ideias, porém mal trabalhadas. Eu me vejo escrevendo várias das cenas. Pior, cenas ruins. Pior ainda, cenas que eu saberia que são ruins, mas que eu não saberia como consertar.

No fim das contas, acho que o se o autor tivesse optado por contar a história de Lameque e Adah, finalizando com a chegada de Noé (ou até se tivesse optado por falar de Noé e Jade, finalizando com o dilúvio) ele teria sido mais feliz nas escolhas. Simplesmente não há espaço pra fazer tudo de uma vez. 

Se esse fosse o primeiro livro que eu tivesse lido do autor, nem teria pego outros dele para ler. Mas porque sei que ele é bom, creio que ainda merece o benefício da dúvida. Tem ainda mais dois livros dele que preciso ler: Babel e Abram. Vamos ver o que ainda temos pela frente.

sábado, 12 de março de 2022

Resenha – Ben Carson

CARSON, Ben S.; MURPHEY, Cecil. Ben Carson. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2002.


Conversava eu com meu bom amigo Craig Chapman, quando, no meio da conversa, ele citou o nome Ben Carson. Eu parei no meio da video-chamada e disse "Ei! Eu conheço esse cara! Olha só, tenho a biografia dele!". Dito e feito, lá estava o livro na estante. 

Eu o lera a primeira vez na época da adolescência, quiçá fim da infância. Eu não lembrava de detalhes da história, mas lembro que gostei do livro, porque achei a história bem interessante. Ora, uma vez que o livro tinha bons antecedentes, por que não lhe dar outra chance? Lá fui eu.

Antes de falar do livro, vamos falar sobre o livro. A começar pela edição. Confesso que nem sei quem é essa tal de Casa Publicadora Brasileira. Só sei que o livro é velho. A cópia que tenho em mãos tem as páginas todas amareladas e é uma brochura normal. Não obstante, a leitura é bem agradável e, pra ser honesto, as páginas amareladas até me ajudam na leitura.

Agora se for pra falar da tradução, devo dizer que infelizmente o tradutor caiu no erro de traduzir. Eu consigo ver as expressões que fazem sentido em inglês, mas que quando traduzidas diretamente quase não têm nexo. Disso resultam, por exemplo, diálogos sôfregos, exatamente aquele tipo de diálogos que eu condeno veementemente na literatura (perdão pelos advérbios).
"– Continuarei fazendo tudo corretamente – respondi bruscamente. – Estarei bem. Não tenho trazido boas notas para casa?" (p. 58)
Na moral, quem fala assim? Ainda mais um adolescente conversando com a mãe. Não, não dá. Claro que depois de um tempo a gente se acostuma; mas, poxa, custava adaptar só um pouquinho pra leitura ficar mais verossímil?

Findados o pré-texto, podemos falar do conteúdo do livro, que nada mais é do que uma biografia do médico neurocirurgião norte-americano Ben Carson. O livro é dividido mais ou menos em três partes: infância e adolescência, faculdade e cirurgias (ou carreira profissional) até 1990, data da publicação do livro nos EUA.

Pegando o gancho da mãe, que citei ainda há pouco, se no começo o autor falou bastante da sua mãe (de modo bem emocionante até), fiquei surpreso em notar que ela não é mencionada quando de sua partida para universidade, já que esse evento é um marco para muitos pais (e talvez eu tenha aí minha resposta).

Não sei se Ben Carson escreveu esse livro ou foi um ghost writer. Seja lá quem for, é muito bom em narração. O encadeamento dos fatos é muito bem trabalhado, ao ponto de eu começar a ler num dia e no outro perceber que faltavam poucas páginas pro livro acabar. Pra ser exato, li o livro em três dias.

Tendo essa questão da autoria em mente, achei interessante que o autor várias vezes diz que não ligava pra posições de destaque, etc, mas o que eu via era ele no parágrafo seguinte se gabando de como tinha posição de destaque e quase um destino manifesto para sua posição de destaque. Ok, ok. É vero que há um limiar difícil entre se gabar e enumerar seus feitos, mas às vezes me parece que ele erra a mão.

Não obstante esses incômodos, é inegável que o livro traz algumas lições bem interessantes. Não sei se conscientemente, mas ter lido esse livro na adolescência moldou muito do que penso. Hoje ao reler me deparo com vários princípios que eu pensei ter adotado por mim mesmo mas agora me questiono se não foram influências desse livro (que nem a premissa "a inteligência supera a força" que vi, surpreso, o Merlin repetindo no filme "A espada era a lei".)

Pra citar apenas uma, lembro da ideia da mãe de Carson de que "se alguém consegue fazer, então você também consegue." Creio que findei adotando isso de maneira inversa e falava pras pessoas: "Se eu consigo fazer, então você também consegue."
"Outro capítulo da minha vida estava prestes a abrir-se e, como acontece frequentemente antes dos eventos transformadores da vida, eu não estava ciente disso." (p. 151)
Hoje lendo com outros olhos consigo ver algumas coisas na vida de Ben Carson que são na verdade coisas que acontecem com todo mundo, como a citação acima (talvez exatamente nesta época que vivo agora ela seja mais verdade na minha vida). 

Além dela, lembro que em determinado momento ele sentiu o baque que foi sair do Ensino Médio e ir pro Superior, quando percebe que na verdade ele não sabia estudar. Foi exatamente o que aconteceu comigo também na época da universidade.
"Jamais descobrimos porque Jennifer morreu. A operação foi bem-sucedida. Nada na autópsia mostrava que algo havia dado errado. Como às vezes acontece, a causa da sua morte permanece um mistério." (p. 189)
E eis a sina do médico. Apesar da nossa inteligência e criatividade (dois traços bem marcantes da história de Ben Carson), ainda temos que lidar com o que há de mais essencial na vida. Até mesmo o adventista de sétimo dia neurocirurgião. 

No fim das contas não é um livro que eu pretendo doar (atual destino de todos que não gosto muito), porque a leitura é interessante e, bem, creio que daqui a uns 10 anos minha memória não estará melhor do que agora, então talvez será uma boa surpresa encontrar o livro na estante e desprender algumas horas numa leitura agradável.

quinta-feira, 10 de março de 2022

Resenha – A morte de Ivan Ilitch

TOLSTÓI, Leon. A morte de Ivan Ilitch. Porto Alegre: LP&M, 2020.


Considerando a situação atual do mundo (estamos há quase um mês do início do conflito Rússia - Ucrânia), talvez eu deva conceder que os russos não produzam os melhores políticos; mas, diabos, como sabem fazer bons escritores. Não é meu primeiro livro de Tolstói e devo admitir que foi justamente essa experiência prévia que me levou a comprar esse livro (fiz uma resenha de Anna Karenina quando o li). Fiquei encantado com a capacidade da narrativa do autor que resolvi explorar outras obras. E, nossa, como valeu a pena. 

Pra variar começo elogiando a edição da LP&M. Não é segredo algum que amo literatura de bolso, especialmente quando esses livrinhos empacotam boa literatura russa. Na verdade, creio que já percebo os primeiros sintomas da velhice: quando abri o livro, uma das primeiras coisas que notei foram as letras grandes (não enormes, mas apropriadas) e o excelente trabalho de diagramação. 

Não há muito o que falar da narrativa do livro senão aquilo que já comentei em Anna Karenina: extremamente fluida, dá gosto de continuar lendo. Aliás, o autor imprime uma verossimilhança tal no comportamento dos personagens que o modo como narra e descreve o definhamento de Ivan Ilitch, me fez pensar que Tolstói realmente viveu aquilo, pra falar com tanta propriedade.

O grande tema do livro não é Ivan Ilitch, mas a morte. O autor faz um contraste entre a vida de Ivan, seu florescimento e ápice, pra depois mostrar sua decadência até chegar, enfim, na morte. Em poucas palavras, Ivan enfrenta o que há de mais básico na existência humana, talvez até mais comum do que a própria vida: o fato de que todos vão morrer. 
"Ivan Ilitch via que estava morrendo e desesperava-se. No fundo do coração sabia que estava indo embora e, longe de acostumar-se com a ideia, simplesmente não conseguia entendê-la." (p. 69)
Conforme lia a narrativa, fiquei pensando como deve ser horrível viver com esse medo – ou pior, morrer com esse medo. Confesso que me peguei triste por saber que esta é uma realidade não de poucos, para quem o futuro nada mais é do que a escuridão do desconhecimento do que há depois da vida.

Aliás, a reflexão que o autor faz no capítulo 9 sobre vida e morte é absolutamente genial. Penso até que aquele capítulo, por si, já justifica a honra que todo o livro leva (críticos consideram este livro como uma das novelas mais perfeitas da literatura mundial).

Não havendo mais o que ser dito, basta dizer que é realmente um livro incrível. E agora que parei pra verificar o blog, tenho lido bastantes autores russos nestes últimos tempos. É como falei. Não sei se produzem bons políticos; mas, meu Deus, como souberam fazer bons escritores.

terça-feira, 1 de março de 2022

Resenha – Notas do subsolo

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Notas do subsolo. Porto Alegre: LP&M, 2012.


Antes da resenha, um causo.

Sempre que viajo, preciso de um livro pra ler. É inegociável. Pois bem, estava eu às vésperas de viajar e percebi que queria algo novo para ler, mas que nada que eu comprasse chegaria à tempo da viagem. Percebi novamente que estava sendo burro. Ora! Eu tinha a Biblioteca pública no Palácio da Cultura à minha disposição, bastava ir lá e fazer minha carteirinha! Livros e livros disponíveis de graça pra mim, bastava ir lá, pegar e ler. Pois bem. 

Após reunir os documentos e me dirigir à biblioteca, fiz a carteirinha e fui explorar a seção de livros que podiam ser emprestados (romances e ficção), todo contente. O que descobri, porém, é que não tenho sistema imunológico suficiente para emprestar um livro daquela biblioteca. O mofo e a poeira eram demasiados até mesmo para tocar em alguns casos. 

Chegou ao cúmulo de encontrar uma senhora teia de aranha em uma das estantes. Mas não uma teia, mas uma teia, tipo aquela que Frodo e Sam caíram. Na verdade, fiquei com medo de tocar nela e Aragogue sair pra me capturar e me dar de alimento pros seus filhos. 

Saí de lá bem triste e decepcionado. Não só a biblioteca estava mal abastecida (obras de Dostoiévski por exemplo, se contavam nos dedos os exemplares – e alguns deles ainda eram da mesma obra), como também os livros que estão ali, do meu ponto de vista, são im-prestáveis. Temo que se alguém levar pra casa, o bicho se desfaça no caminho. 

Até que ponto não dá e até que ponto não se quer
Foi este o questionamento que ficou quando desci as escadas da biblioteca, sem nenhum livro na mão e ansiando por um álcool em gel pra me livrar das alergias.

Findado o causo, vamos à resenha.

O que este causo tem a ver com tudo? É que após decidir que não teria outra escolha senão encontrar um livro na minha estante e reler, tive a grata surpresa de pegar esta obra de Dostoiévski que eu já havia lido há tanto tempo que sequer lembrava o conteúdo. Tudo que eu lembrava é que tinha gostado. Ah! E como eu estava certo com essa lembrança. 

Como pode, um livro tão bom desse sentado na minha estante e, pior, ignorado quando uma oportunidade de escolha surgiu. Quantos livos bons não estão sentados em estantes? Essa obra de Dostoiévski foi comentada da seguinte forma: "Notas do subsolo é um verdadeiro golpe de mestre da psicologia." E quem disse isso? Ninguém mais, ninguém menos, que Friedrich Nietzsche. 

Era uma obra desse nível que estava sentada na minha estante. 
"Sou um homem doente... Sou mal. Não tenho atrativos. Acho que sofro do fígado. Aliás, não entendo bulhufas da minha doença e não sei com certeza o que é que me dói." (p. 11)
"Quanto mais consciência eu tinha do bem e de todo esse 'belo e sublime', mais afundava no meu lodo e mais capaz me tornava de atolar-me completamente." (p. 15-16)
Dostoiévski faz nas primeiras páginas deste livro um verdadeiro tratado sobre a Depravação Total: não só ele é mau, como também tem deleite e satisfação em causar o mal a outros; e queda-se indiferente se ele gosta disso ou não, porque percebe que isso é parte da sua própria natureza. Tanto quanto dois mais dois são quatro, ele não o pode negar.

[Curiosidade interessante: toda essa exposição é feita por meio de uma diatribe. (Fica aí a instigação para googlar).]

O livro é dividido em duas partes. Na primeira, há um caráter ensaístico do autor, que usa o personagem para falar da condição humana e tentar refutar várias ideias do seu tempo. Por exemplo, o personagem se nega a acreditar nas ideias do modernismo científico como base do comportamento humano. Ou seja, que há uma série de leis que regem o comportamento humano e basta descobri-las para se prever tudo. Dostoiévski estava à frente do seu tempo, uma vez que estas ideias seriam defendidas por um bom tempo, até eclodirem no caos da II Guerra Mundial e as justificativas "científicas" do nazismo.

Na segunda parte encontramos três episódios da vida do personagem sem nome que nos revelam quem ele realmente é: um homem perturbado, constantemente achando que é superior aos outros ao seu redor e sentindo-se injustiçado por que ninguém reconhece esta superioridade. 

Na verdade, o personagem tem uma espécie de síndrome do pombo enxadrista, com a possível diferença de que às vezes ele nota que é um pombo. Em determinado momento ele até me lembra aquele personagem do Guia do Mochileiro das Galáxias que, não importa a realidade ou tempo, é sempre "perseguido" por Arthur Dent, mesmo quando este sequer reconhece a existência do outro.

O personagem se coloca em situações terríveis e constrangedoras, mas seu orgulho é tamanho que ele só afunda cada vez mais nelas. Em determinado momento, por exemplo, ele tem uma crise nervosa e fica evidente que ele é provavelmente seu maior opressor – ainda que não se possa negar que as outras pessoas também o oprimam devagarzinho, cada um à sua maneira.

Ficamos ao mesmo tempo com pena e agonizando ao ver o personagem agir do jeito que age, aparentemente incapaz de escapar dos ciclos autodestrutivos em que ele mesmo se coloca, incapaz de sair do "subsolo" e todas as ramificações que ele traz.

Por fim, ressalto que amo as edições de livro de bolso. Tem alguma coisa nesses livros pequenos e tão cheios de coisas que me atrai, não sei dizer ao certo o que é. Mas o que vale a pena tirar o chapéu aqui é a tradução. Maria Aparecida Botelho Pereira Soares fez um trabalho excepcional trazendo um Dostoiévski que não fala bonito, mas também não fala feio. Aquele limiar entre a norma culta e o coloquial que só os mestres da arte conseguem dominar.

No fim das contas, não é à toa que pretendo um dia ter a coleção completa com todas as obras de Dostoiévski. O cara é um gênio no qual vale a pena se inspirar.