quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Resenha - Uma criatura dócil

DOSTOIEVSKI, Fiódor. Uma criatura dócil. São Paulo: Via Leitura, 2017.


Fala, meu povo! Vou confessar que tenho um fraco por Dostoievski. Deve ser porque ele também fala de dramas sociais e, claro, porque ele tem a habilidade absurda de mergulhar no psicológico de seus personagens de um jeito que eu me pergunto se um psicólogo conseguiria. Bom, mas vamos à resenha.

Este livro trata de uma história simples. Um narrador sem nome, um homem dono de uma loja de penhores, conta um pouco da sua história, especialmente seu relacionamento com uma jovem (bem jovem mesmo) que se torna sua esposa e que tem um fim trágico.

Agora, como classificar esse livro? O próprio Dostoiévski chama de "conto" essa história e eu mesmo tenho dificuldade em chamar de romance. Mas... nunca vi conto dividido em capítulos (e estes com títulos ainda por cima!). Seria, então, uma novela? Ou seja, uma história curta mas com vários capítulos mesmo? 

Eu acho que não. Embora eu não entenda nada de teoria literária, pra mim uma novela precisa ter um aspecto mais seriado ou episódico, em vez de uma história tão una. Por isso que, conforme a leitura foi passando, fiquei cada vez mais convencido que era um conto mesmo. Estranho, mas é um conto subdividido em capítulos. Já vi contos grandes, mas nunca algo assim (talvez seja só minha falta de leitura falando). 

Ainda que a história realmente seja centralizada num único personagem, nós temos aqui uma boa dose de psicologia e elucubrações da mente dele que não seria comuns em contos, uma vez que nestes não são necessariamente os personagens, mas a trama que os tornam únicos e, bem, contos. 

Achei bem legal ter encontrado no texto expressões como um "hehehe!", "Hummm..." (p. 14) e até "A-ha!" (p. 18). Digo isso porque às vezes a gente acha que alta literatura não pode ter coloquialismos ou expressões simplórias; mas isso faz parte da nossa linguagem e, portanto, não devemos menosprezá-las.

E por causa disso a tradução está de parabéns. Aliás, acho que essa foi a primeira vez que li Dostoievski de maneira tão fluida. Trabalho incrível da tradutora Natália Petroff, que tornou acessível esta obra e traduziu não só as palavras, mas o estilo também. 

Aqui eu percebi algo que mencionei na resenha de Morro dos Ventos Uivantes. Novamente temos aqui uma narração repleta (re-ple-ta) de "shows" em vez de "tells". E mais uma vez eu percebo que esse "pecado literário" pode até ser útil quando serve a uma função da história. Vou dar um trecho aqui de exemplo (mas reforço que isso acontece em vários e vários momentos do texto):
"Mais à noite, ela acabou perdendo por completo as forças; eu a convenci a dormir e ela adormeceu na hora, profundamente." (p. 78-79)
E já que estamos agora entrando na história, é preciso lembrar que Dostoievski sempre escreveu personagens detestáveis (coisa que até muitos críticos apontam como uma impressão negativa do povo russo) e neste livro não é diferente, só que dessa vez o personagem é abertamente odiável e deixa isso bem claro:
"... Simplesmente informei então, sem nenhum constrangimento, que em primeiro lugar não sou muito talentoso, nem sou muito inteligente, talvez nem mesmo muito bondoso, um egoísta bastante contumaz..." (p. 23-24)
Fica muito, mas muito evidente, que o personagem principal faz toda a narração carregada de uma tentativa de se justificar ao leitor e a si mesmo dos atos cometidos. Isto torna evidente como ele é cheio de contradições e ironias. O personagem se confessa mal porém não exista em acusar a outra quando esta não obedece os caprichos:
"...essa doçura, essa criatura dócil, esse céu, era uma Tirana, uma tirando insuportável, torturadora da minha alma!" (p. 40)
Ao ler a história, chamou-me atenção na história como se tratava de uma época onde muita coisa era movida na base da honra. E, justamente por isso, como a honra de um homem pode ser destruída pela fofoca. Sim, pela fofoca. Numa época em que a palavra era algo valioso, a quebra dela era o maior pecado.

Na verdade a história toda é uma tragédia anunciada – o próprio autor dá o spoiler antes mesmo de iniciar a narrativa. Mas a tragédia maior, penso eu, não está no que aconteceu. A tragédia maior é o arrependimento pelas más escolhas, pelas palavras mal ditas, pelas oportunidades que passaram. 

Foi assim no passado do personagem principal, quando ele era um hussardo; foi assim no presente quando ele tratou a esposa do jeito que tratou; e é com isso que ele vai precisar lidar no futuro, porque, também nesta história, ele perdeu a oportunidade – ou pelo menos é como ele se justifica para o leitor e para si mesmo:
"Tivesse chegado cinco minutos antes, e o momento voaria como uma nuvem, e isso nunca mais viria a sua mente." (p. 92)
A verdade é que a maldade e a hipocrisia estão constantemente buscando desculpas para seus atos maus – porque sabem que seus atos são maus. É nessas coisas que a gente vê com Dostoievski é brilhante em retratar as contradições da condição humana. A gente julga o personagem, mas quantas vezes não agimos de modo similar ou, pelo menos, somos coniventes com situações parecidas?

É, minha gente. Se tem uma coisa que vale a pena ler nessa literatura doida é Dostoievski. Talvez eu colecione toda a obra dele agora, por que não? Vale demaaaaais a leitura!

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Resenha - Perelandra

LEWIS. C. S. Perelandra: viagem a Vênus. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2019.


Preciso parar. Porque neste exato momento – em que eu acabei de terminar o livro – não tenho a menor condição de escrever esta resenha. Eu preciso digerir, pensar. Minto. Eu preciso me recuperar dessa leitura. Volto em breve, com a mente mais clara.

[No dia seguinte]

E aí, meu povo! Agora sim, com a mente um pouco mais calma, acho que consigo escrever essa resenha sem me deixar arrebatar pela inundação de sentimentos que surgiram ontem por conta deste livro incrível, Perelandra, o segundo livro da Trilogia Cósmica de C. S. Lewis.

Como já comentei na resenha anterior, esta trilogia surgiu (reza a lenda) por conta de uma aposta com Tolkien, amigo de Lewis, que propôs que ambos escrevessem livros de ficção científica, sendo que Lewis ficou com viagem no espaço. E, depois de Além do planeta silencioso, temos novamente o personagem Ransom viajando a outro planeta: Vênus, um mundo em surgimento. Ah, em determinado ponto desta resenha HAVERÁ SPOILERS, mas não se preocupem que vou deixar bem claro.

A ficção científica no começo do século XX ainda caminhava para sua maturidade. Não eram muitos os nomes que criavam este gênero de maneira séria; mas os poucos que fizeram deixaram sua marca. Uma das características deste tempo era o cientificismo dos livros. Comentei algo sobre isso na resenha de Vinte mil léguas submarinas e no começo de Perelandra, vejo Lewis pincelando algo assim.

Mas isto se dá por pouco tempo, porque também aqui vemos traços do estilo de Lewis, que cria uma obra cujo foco não é o conflito homem-tecnologia (como é clássico na ficção científica), mas entre homem-homem. Por isso, o livro pende muito para fantasia, num misto interessante de gêneros que poucos conseguem fazer.

Algo que começou no primeiro livro agora ganhou mais forma. Lewis cria um idioma fictício chamado Solar Antigo, que seria o idioma falado por todos em todos os planetas, uma vez que apenas na Terra teria acontecido a maldição de Babel, em que as pessoas foram dispersos por muitos idiomas. E isto é interessante porque tem outro autor que conhecemos e que adora criar idiomas: Tolkien.

Na outra resenha não comentei nada da tradução porque nada me chamou a atenção; mas nesse aqui vi algo preocupante: um erro. Não preciso ter lido no original pra saber que ali deveria ter sido "pistas" em vez de "dicas":
"Como se deu uma viagem num caixão celestial Ransom nunca descreveu. Ele disse que não podia. Mas umas dicas estranhas sobre a jornada acabaram aparecendo aqui e ali, [...]" (p. 42)
Do meu humilde ponto de vista, a palavra "dicas" aponta para o caminho que o autor quer e talvez até seja a tradução literal mais correta (presumo que a palavra em inglês seja "hints"); mas quando estamos falando de entendimento do texto, não basta apenas traduzir do modo mais literal, é necessário ver o contexto e adaptar para o melhor entendimento. É, eu repito, um humilde ponto de vista.

As descrições, novamente. Lewis é muito bom pra descrever um mundo onde a mente não saberia bem dizer o que é o quê. Infelizmente ficou bagunçado demais e tudo muito repleto de "então ele não sabe como mas estava" ou "de repente, ele se viu em". Isso me soa como preguiça ou incapacidade de descrever. E olha só essa citação (Poxa, Lewis! Falei descriçãozinha barata kkkkkkk): 
"De alguma maneira, ele conseguiu subir nela e se grudou em sua superfície..." (p. 246)
A descrição inicial de Perelandra (ou Vênus, para os terráqueos) não me agradou nadinha. Não só as descrições são exuberantes e pomposas em demasia, não há senso de urgência na ação do personagem e, assim como ocorreu algumas vezes no primeiro livro, parece que ele está passeando e é chato pra caramba ler isso.

Por outro lado, não posso negar que Lewis tem um exímio domínio do tempo na narração quando diz coisas do tipo: "eles ficaram três horas conversando" ou "a escalada não durou mais que vinte minutos". Parece besteira, mas quando a gente está escrevendo é meio complicado encontrar um meio termo entre narrar cada pequena passagem do tempo e narrar de modo suficiente e agradável para o bom entendimento do leitor. Lewis encontrou esse equilíbrio e isso não é um pequeno feito.

[A partir daqui haverá pequenos SPOILERS, mas, se eu fosse você, continuava, porque eles são leves e não vão estragar sua leitura tanto assim – a não ser que você seja um daqueles puristas radicais. Eu vou falar basicamente dos aspectos da obra mais relacionados diretamente à ficção cristã]

O livro traz uma interpretação do autor sobre vida fora da terra: existiam seres inteligentes nos planetas. Planetas mais antigos podiam ter qualquer tipo de forma humanoide ou até mesmo animalesca; mas depois que Maledil (que é um nome que ele dá pra Jesus) tomou a forma de homem, todas as novas raças passaram até aspecto humanoide porque esta seria a melhor representação da imagem e semelhança dele. Não sei se é o que o autor realmente acredita, mas é o que foi apresentado no livro.

Aqui há um limite que nós sempre vemos quando lemos ficção cristã: criar um ser que não tenha pecado. Nossa própria estrutura de pensamento é marcada pelo pecado, não temos como evitar. Embora a Mulher em Vênus não tenha a mesma proibição que os humanos da Terra quanto ao pecado, fica evidente em vários momentos que ela já tinha o conhecimento do bem e do mal – não necessariamente porque tivesse, mas porque é impossível para o autor (ou qualquer ser humano) se desvencilhar dela.

Vou ser honesto e dizer que em determinado momento, Lewis quase chegou no limite da minha paciência. Aquele papo teológico no meio da história me pareceu sem sentido, não fosse aquela subida reviravolta no final do capítulo eu até diria desnecessária. 

Mas isto foi um engano, porque o livro é deveras bem intrigante e o que eu achei que seria só uma divagação do autor, era na verdade o começo do que se tornaria o âmago de toda essa aventura: a história da Queda, mas acontecendo em outro planeta, com outros dois seres criados. 

CA-RAM-BA! Que diálogo absurdo de fascinante sobre a obediência! O que parecia um tratado de filosofia solto no meio do texto é na verdade um estudo brilhante (eu repito, brilhante!!) sobre a primeira obediência. Olhe esse trecho:
"Ah, quão bem eu entendo isso agora! Nós não podemos andar fora da vontade de Maleldil, mas Ele nos deu uma maneira de andar fora da nossa vontade." (165)
Eu escrevi esse parágrafo acima logo depois que li e me deparei com o que Lewis realmente propunha no livro: um estudo avançado da condição humana e do pecado. Parece loucura falar destes temas num livro de aventura; mas eu vi que é justamente o contrário: é essa profundidade que dá ao livro uma dimensão mais completa e à própria história um significado a mais, uma reverberação que vai além dos feitos dos personagens ou suas falas.

Lewis é muito competente em mostrar a capacidade do inimigo de perverter a verdade, todo o seu método ardiloso para enganar (método esse que não precisa ser elegante, podendo até ser infantil, não importa. Desde que ele atinja seus objetivos). E não só a capacidade, mas as estratégias, como a subversão da ordem natural de Deus, tal como aconteceu na Terra.

[Fim dos SPOILERS mais fracos que eu já vi na vida – sério, se você ler não vai nem sentir depois]

Assim como aconteceu no primeiro livro, o autor tem seus momentos de genialidade com as palavras – que é o que, convenhamos, foi um marco seu para toda a obra da literatura cristã (e eu não me refiro apenas à ficção). Além da citação que eu mencionei na seção acima, veja também este trecho abaixo:
"O silêncio interior é uma conquista difícil para a nossa raça. Existe uma parte tagarelante da nossa mente que continua em ação até que seja corrigida, tagarelando mesmo nos lugares mais santos." (p. 196)
O nome "Ransom"!!! (eu ia colocar isso aqui na parte dos spoilers, mas resolvi deixar assim solto mesmo porque vale a pena ler essa parte – se eu pudesse esquecer e ler de novo eu faria... aliás, quer saber? Acho que vou ler de novo mesmo lembrando, de tão bom que é).

Gente, pra concluir, vou dizer que poucos livros me fazem chorar. Mas fazem. Eu choro porque me emociono com os personagens, com os acontecimentos, com as lutas e as vitórias tão almejadas. Mas, no fundo, eu choro por algo que é ficção. Eu não sei explicar como, mas Lewis me fez chorar pela Verdade. Não. Eu chorei pela falta da plenitude da Verdade e isso dilacerou meu coração, porque eu lembrei de onde estava e para onde eu deveria ir. Eu quero viver na perfeição da Verdade e da Vida.

O Eduardo Ribeiro do Instagram @paragrapho_cristao havia comentado que este era seu livro favorito da Trilogia Cósmica. Eu geralmente penso bastante antes de concordar com alguma opinião assim, pra não ser influenciado; mas dessa vez talvez ele tenha completa razão, porque eu me peguei pensando aqui: "Como é que Lewis vai superar esse aqui?". É tão bom que eu tenho minhas dúvidas se dá. 

Mas isso eu vou dizer depois que vencer Aquela fortaleza medonha. Nos vemos em breve, meu povo!

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Resenha - Morro dos ventos uivantes

BRONTË, Emily. O morro dos ventos uivantes. CAMARA, João Sette (trad.). Jandira: Ciranda Cultural, 2019.


São poucas as vezes que eu posso chegar aqui e dizer: eu li a obra completa de autor tal. É verdade que já fiz isso com Érico Veríssimo. Mas agora posso dizer que também fiz com Emily Brontë. Talvez tenha ajudado o fato de que ela tenha escrito apenas um livro. Talvez.

Este livro aqui me surpreendeu mais do que eu esperava. Pra ser bem honesto, eu estava até com um pouco de preconceito antes de pegar a obra. Graças ao trauma que foi ler Jane Austen (ô coisa chata!), eu temia do que pudesse vir da literatura inglesa do final do século XIX. Mas devo confessar que o livro é muito interessante.

Quanto à trama, logo no começo eu pensei: "Ah, essa vai ser mais uma daquelas histórias de amor." O mocinho chega, tem uma mocinha que ela não é bem tratada numa casa, todas as peças estavam ali. Mas, para minha grata surpresa, autora explora com muita elegância as histórias subjacentes e o contexto tanto do lugar quanto dos outros personagens. É aí que percebemos que a história é de outro mocinho e outra mocinha.

Em vez de ser a história do jovem Lockwood, que chegou ao Morro dos Ventos Uivantes (que é o nome da fazenda no interior da Inglaterra que é o centro da história), na verdade trata-se de uma rememoração da história de Heathcliff e Catherine e todos os antigos ocupantes da casa, contados pela voz da empregada doméstica Ellen Dean.

Caramba, é impressionante como a autora consegue captar nossa atenção, a gente realmente fica vidrado – e não tenho ideia de como ela fez isso. outra coisa que me impressionou é que tudo, tudo, acontece no Morro dos Ventos Uivantes. Sequer foi necessário mudar o cenário e mesmo assim o livro prende a gente! Não é que não existam outros cenários, eles até existem. Mas o jeito como a autora escreve os torna supérfluos.

Enquanto eu lia as repetidas interações malucas entre Catherine e Heathcliff eu não consegui evitar o pensamento: "Mas que diabos de 'amor' é esse entre os dois?". Uma coisa muito no limite entre paixão e ódio (bem pouco de "amor", pra falar a verdade). E aí eu lembrei: era o século XIX. O Romantismo está aí, bem aos moldes de Byron – que marcou toda aquela geração.

De modo geral, a história realmente nos prende, mas eu percebi alguns problemas nisso. Voltarei a eles lá no final. Por enquanto, gostaria de abordar algumas questões referentes ao estilo da autora (se é que eu tenho algum cacife pra analisar isso né).

Eu estava prestes a reclamar que o livro tem um excesso de descrições, o que é característico da época (tempos em que não havia televisão e até fotografias não eram tão comuns); mas foi logo fisgado pela exime a capacidade narrativa da autora, que nos prende aos personagens logo no começo. Esta é uma marca que será mantida durante todo o livro.

Brontë fez uma coisa que eu adoro. Aliás, foi exatamente isso que Érico Verissimo fez quando eu percebi que o cara era genial: ela insere informações no texto que não contribuem direto para a trama; mas são de tal modo tão deliciosos, que ficamos gratos à autora por tê-lo feito. Você pode abrir em qualquer capítulo e identificar isso. Longe de ser descartável, estes pequenos acréscimos trazem um sabor a mais.

Este livro me fez repensar a máxima da literatura: "show, don't tell." Conquanto eu compreenda que esta é realmente uma máxima que não deve ser menosprezada, agora eu fico em dúvida se ela deve ser evitada por completo. Digo isto porque eu percebi vários momentos deste "problema" no texto (eles eram até bem óbvios); mas, sinceramente, eu deixei passar e nem me prejudicaram, porque esse tell ajudava na fluidez do texto e isso foi muito bom.

Agora eu preciso reservar um espaço aqui para falar da tradução. Num primeiro momento, tive a impressão que havia algumas coisas que poderiam ser traduzidas de outra forma, não sei. Confesso que me deu uma agonia danada quando li a palavra "selvagemente". Mas a verdade é que achei a tradução bem trabalhada. 

O tradutor teve sabedoria em manter um linguajar equilibrado entre a expectativa linguística do povo (algo mais fácil de compreender) e a característica dos romances de época traduzidos (com palavras complicadas e expressões que pouco ressoam em português, até porque não fazem parte do nosso uso comum, tampouco da nossa cultura). Eis um exemplo:
"Ele bateu a cabeça contra o tronco nodoso e, erguendo os olhos, gritou, não como um homem, mas como uma besta selvagem sendo espicaçada até a morte com lanças e facas." (p. 177)
Dou ainda mais um pouco de crédito para a tradução ao adaptar não somente a linguagem falada dos personagens – que soam ao mesmo tempo históricos e atuais –, mas também pela grafia escolhida. Refiro-me aqui diretamente ao trecho onde o tradutor colocou: 
"Hahaha! Ele tirou vocês de lá direitinho! Hahaha!" (p. 267)
Esta edição contou ainda com algumas notas do tradutor no rodapé da página. Olha, eu geralmente não gosto destes adendos ao texto, mas eles foram feitos de modo tão pontual que eu não tive escolha senão julgá-los de extrema valia para a compreensão do texto. Realmente valeram a pena todos eles.

Bom, agora eu preciso caminhar para o que considerei um problema no livro. Acho que há uma falha estrutural no comportamento de alguns personagens. Por mais que eu entenda que tem gente que realmente é má e cruel, acho bastante implausível que essa crueldade sádica possa se estender de maneira tão contínua para todos que estão ao redor. 

Eu notei esse problema no começo do livro, mas perdoei porque estava ainda dentro do contexto e não fora exagerado. Mas conforme me aproximava do final, ficou cada vez mais evidente que não faz sentido que que todos aqueles que entram em contato com Heathcliff sejam cruéis, e não somente ele – chegando até mesmo à governanta da casa. Isso só pode ser explicado por uma falha no roteiro, que está forçando os personagens a um comportamento destes para criar a atmosfera que precisa.

E saliento que é forçado mesmo. Há uma outra falha no comportamento dos moradores do Morro dos Ventos Uivantes. Conquanto Heathcliff seja um imperador cruel e ardiloso, isto é verossímil. Agora que todos, absolutamente todos, se submetam a este reino de impiedade sem revoltas, ahhhh, aí já não dá. Foi Jean-Baptiste Duroselle que postulou de modo muito claro: "Todo império perecerá". 

Não tem como. Quando eu cheguei naquele capítulo que foi a grande reviravolta, a cartada final de Heathcliff (quem leu entenderá); não pude deixar de sentir uma exasperação com a atitude passiva das personagens. Tudo bem que naquele capítulo eram praticamente só mulheres e enfermo, aí dá pra perdoar. Mas quando a gente volta na memória e considera que pelo menos três homens fortes viveram naquela casa e deixaram Heathcliff dominar sobre eles de tal forma, cara... não fecha a conta. 

Nenhum reino desse subsiste por tanto tempo sem aliados internos, por mais poderoso que seja. Avalie a História e me diga que estou errado. Porque nestes meus anos de graduação e especialização em Relações Internacionais, se teve uma coisa que eu aprendi com clareza é que Duroselle estava mais do que certo: todo império perecerá.

Este problema torna-se ainda mais acentuado no final, que foi extremamente mal explicado. Na verdade, pense num finalzinho borocoxô. Uma súbita e inexplicada mudança de pensamento (ou até personalidade!) e atitudes que vêm do nada. Fica tudo exageradamente subentendido e nada fica claro, como se o roteiro quisesse apenas terminar a história de um modo mais "feliz" à custa do comportamento de personagens que acompanhamos desde o primeiro capítulo.

Mas, apesar destes problemas, não posso concluir dizendo que o livro é ruim. Estas são apenas algumas notas destoantes se comparadas à sinfonia do livro. É importante até destacar a capacidade da autora para criar personagens odiosos. Tem várias cenas que nos deixam enervados com a tensão da situação. 

Gente, livros não se tornam clássicos à toa. Vale muito a pena a leitura, que não é cansativa e ainda pode ser extremamente atual. Ali no final do Romantismo, ouso dizer que Brontë já caminhava num meio termo em que não se deixa dominar demais por ele e propõe uma maneira até mais sóbria de encarar uma história de amor. Vale a leitura com certeza.