domingo, 23 de fevereiro de 2020

Resenha - Saga

VERÍSSIMO, Érico. Saga. São Paulo: Globo, 1995.


Eita, e aqui estamos nós com mais uma obra do grande Érico Veríssimo. Até o dia que eu completar a leitura de todas as obras dele, podem esperar vê-lo por aqui. O livro vem pra finalizar a primeira grande fase do escritor, que retorna a personagens trabalhados nos seus primeiros livros como Clarissa, Vasco, Eugênio, D. Eudóxia e por aí vai. Achei interessante esta capa, porque é uma das poucas desta edição da Globo que não tem uma característica totalmente abstrata.

Já no começo há um deslocamento em relação às outras obras: a primeira parte se passa na Europa, mais especificamente no contexto da II Guerra, quando brasileiros voluntários (e gente de outras nacionalidades, claro) se alistam para compor a Brigada Internacional, na Guerra Civil Espanhola.

Outro destaque que vem logo no começo do livro é a narração em primeira pessoa. Aliás, acho que é a primeira vez que o Vasco fala com a gente na primeira pessoa. É ele quem apresenta a arena onde as coisas acontecerão (a Europa e o pelotão do qual Vasco faz parte) outros personagens. Vejo como os personagens latino-americanos são sempre mais amigáveis e me pergunto se isto não alimenta um favoritismo de Veríssimo por nosso povo (coisa que ele já deu a entender outras vezes).

Veríssimo sempre teve uma seria aversão às guerras e à própria violência de maneira geral. Isto é muito evidente e fato consolidado entre seus analistas: ainda que não fosse um pacifista militante, sua ojeriza à guerra é evidente:
"Estan locos, locos! Sim, estamos todos loucos. O mundo inteiro é um vasto hospício. O bom-senso desapareceu da terra. Os homens se estraçalham. É a guerra." (p. 6)
E aqui já começa o profundo questionamento do autor quanto à própria condição humana. O paradoxo da busca eterna pela paz, porém utilizando meios violentos para isso. Ele reconhece nos seus próximos um desejo ardente e quase uma necessidade física pela guerra:
"Conheço um florentino esguio e rijo como um punhal que condena a guerra com o espírito ao mesmo tempo que a ama desesperadamente com o corpo. [...] A paz para eles seria dolorosa e a vida se lhes tornaria insuportável." (p. 40)
Justamente por conta destes contrastes, Veríssimo tem a oportunidade de explorar insights fantásticos quanto à condição humana:
"Qual é a verdade sobre Ettore Sarto? Como única resposta a meus pensamentos, encolho os ombros. Que posso eu saber da alma desses homens que conheci ontem, quando a minha própria alma ainda tem recantos desconhecidos para mim?" (p. 55-56)
"— Na escola em Estocolmo nos contavam muitas sagas... Belas lendas de heróis, conquistadores, príncipes perfeitos e homens do mar. — Sua mão muito grande e clara pousa no meu ombro, numa pressão amiga. — Mas como em todas as outras escolas do mundo eles se esqueceram de nos preparar para a vida, a mais estranha das sagas..." (p. 60)
Sim! Esta é a grande frase do livro. Frase que ele gostou tanto que não tem medo ou vergonha de repetir em outros momentos. E é interessante como o uso da palavra "saga" na história é utilizada de modo a esconder um sentido profundo, mas também explícito, numa quase síndrome de vira-lata: 
"— Sabes? — diz depois o chileno a Axel em tom mais calmo. — A melhor das tuas sagas não vale um capítulo de Cervantes. O maior dos teus heróis não tem a metade da estatura moral de Dom Quixote." (p. 12)
Como é absolutamente característico do autor, mais uma vez a poderosa descrição de Veríssimo nos imerge na cena. Esta habilidade tremenda por um lado é ótima, mas, por outro, há um preço a pagar por ela. O preço é ver-se tão imerso na cena e ter que imaginar na mente imagens como essa:
"Tomamos de nossas ferramentas e pomo-nos a trabalhar. Uma massa feita de terra, sangue, pedras, sacos de areia e pedaços de corpos humanos nos barra a saída. Estamos gotejando suor mas não cessamos de trabalhar." (p. 88)
Novamente, como é a próprio ao estilo de Veríssimo, história caminha pra frente de um jeito diferente: não tem grandes acontecimentos, há vários capítulos que descreve apenas o cotidiano (cotidiano!!) dos homens na Brigada Internacional e os diferentes tipos com os quais se encontra Vasco nas trombadas do dia a dia. Mas é incrivelmente fascinante.

E surgem as questões: mas como? Se não tem ação, não tem grandes acontecimentos? Ora, talvez seja o vislumbre que todos ansiamos de conhecer mais o outro e a nós mesmos. Assim como ocorreu com Veríssimo, talvez, no fundo, o que nos interessa é a verdadeira humanidade das histórias, na perfeita expressão da fantasia do cotidiano.

E já que estamos falando do método de escrita dele, fico em dúvida se aprovo ou não o uso que Veríssimo faz dos advérbios de modo. Mais de um autor já me alertou quanto à quase inutilidade deles na escrita e eu mesmo já cheguei a constatar isso: grande parte das vezes, os advérbios de modo só traduzem de maneira mais direta aquilo que você foi incapaz de fazer por meio da própria estrutura do texto. Olhem só o caso abaixo:
"À tarde os aviões inimigos nos atacam encarniçadamente." (p. 91)
Vejam só como permanece a dúvida. Porque não consigo entender direito a escolha que ele fez aí em cima. Que diabos de palavra é essa? Ao mesmo tempo: fica clara a ideia de chacina que a palavra traz, ou não? Bom, permanece a questão: não sei se aprovo ou não o uso.

Seguindo e reforçando o que já comentei, talvez a citação mais importante de todo o livro seja esta abaixo, 100% relacionada com o despropósito da guerra:
"Os homens complicaram muito a vida. Veja... Rádio, jornais sensacionalistas, televisão, aviões. Press, muita pressa. Vive-se depressa, morre-se depressa, come-se depressa, ama-se depressa. É como se quiséssemos chegar o quanto antes a um ponto determinado. No fim veremos que não há nenhum objetivo sério. E os homens, cansados e gastos, vítimas das máquinas e dos mitos que eles mesmos criaram, chegarão à certeza de que é preciso procurar outra coisa..." (p. 125)
Senti calafrios na cena final com Juana. Aliás, não tem como a gente ler Veríssimo e não ficar com as emoções à flor da pele: a gente torce pro final feliz! Mas eu te conheço, Érico. És um cretino! Um safado, ordinário! Tu vais levar eles pra um final ruim não é, seu cachorro? Se soubesse o ódio que eu estou agora do que talvez tu venhas a fazer. E, o pior, tenho raiva de mim mesmo por conta da tolice de ficar com raiva de uma história de um livro, de um cara que já até morreu. Miserável. Morreu, mas ainda vive.

Encontro fantasmas, suspiros de ideias, que apontam para um caminho que Veríssimo explorou com maestria em "O tempo e o vento" (obra que iniciaria poucos anos depois), referente à própria história do Rio Grande do Sul e a formação do caráter de seu povo. Também há literalmente uma citação que fala sobre "Olhai os lírios do campo", livro que veio antes de Saga.

E é muito bonito ver como Veríssimo relaciona seus personagens de outros livros. Embora não façam  sempre parte da mesma aventura, vemos ali menções ou até mesmo participações de gente que conhecemos em outras histórias, tudo num grande cosmos. Isso aumenta a coesão e nos dá uma sensação de familiaridade de quem diz: "Ah, o Eugênio? Sim, claro que conheço. Sei da história dele todinha!"

Mas aí, falando dos personagens, ou Vasco (que é o narrador) encontra sempre personagens dotados de alta capacidade filosófica e reflexiva, ou muitos diálogos da segunda parte não são verossímeis. Sério, gente, quem é que vocês conhecem que são capazes de analisar sua condição ou dos outros de maneira tão profunda? Este é o mesmo problema que eu via na série House, em que o médico sempre tinha pacientes muito intelectuais ou muito conscientes da sua condição.

Enquanto na primeira parte do livro estamos acompanhando a saga de Vasco na Espanha e na guerra; na segunda parte o herói volta para Porto Alegre e Érico explora a "fauna" local sem pressa, colocando Vasco num outro tipo de batalha, com inimigos não menos piores. A história anda a passos lentos, quase como a modorra do cotidiano, mas sem o tédio.

Acho que tive sorte de ler Saga depois de já ter lido os grandes clássicos dele como o tempo e o vento, além claro de "Um lugar ao sol", porque consigo ver as sementes de algo que germinaria no futuro ao mesmo tempo que desfruto de uma quase infantil curiosidade de Veríssimo pelas coisas simples, que sei que vão maturar nos próximos livros.

Interessante notar que em quase todos os livros do Érico tem um ponto que a gente lê com uma volúpia tal que não dá pra absorver todos os detalhes. é um festival tão grande de humanidade, da saga do dia a dia, que ficamos num misto de curiosidade e reconhecimento nesta fantasia do cotidiano.

A grande conclusão que Vasco chega no final do livro é aprender a conquistar e desfrutar das coisas simples da vida. Num final que me surpreendeu (não por conta de grandes reviravoltas, mas por conta do conhecimento que tenho do estilo do autor), vejo o herói terminar quase como num final feliz: 
"[...] não basta viver intensamente e fazer coisas – é necessário também pensar em calma nas coisas feitas, ruminar as emoções experimentadas para melhor apreciá-las e compreendê-las. O ócio inteligente enriquece a alma." (p. 332)
No fim das contas, aqui Érico Veríssimo chega no nível de maturidade que o permitiria iniciar e conquistar seu espaço de uma vez por todas na literatura brasileira quando fosse escrever "O tempo e o vento". Esta, meus amigos, é uma saga e tanto. Mas eu garanto: a vida, ah, ela sim... a vida é a mais interessante das sagas.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Resenha - O peregrino

BUNYAN, Jhon. The Pilgrim's Progress. Nashville: B&H Publishing Group, 2017.


Se você é cristão e ainda não leu nem ouviu falar deste livro, está na hora de se atualizar. Este é um maravilhoso clássico da literatura cristã! Não é à toa que esta bela alegoria da vida cristã feita por John Bunyan, num livro escrito em 1678, permanece vivo até hoje.

E quando se fala em alegoria, estamos pensando em muuuitos significados escondidos em cada página do livro. Temos personagens como Cristão (nosso herói principal), Fiel, Esperançoso, mas também lugares terríveis como o Pântano do Desânimo, a Feira das Vaidades, o Castelo da Dúvida, demônios terríveis e viajantes enganadores, cujo único propósito é desviar Cristão da sua jornada.

A verdade é que o livro é muito profundo, não dá pra absorver a alegoria toda de imediato. É preciso degustar com calma e ainda assim ter a certeza que não dá pra compreender tudo. Bunyan fez isto de modo proposital, para que cada linha tivesse alguma parte da alegoria.

Eu já havia lido na adolescência e, pra se bem sincero, na minha cabeça ele tinha mais ação. Porém há diversos momentos da jornada em que ela não vai para frente: os personagens apenas conversam entre si. Tudo bem que na conversa tem muitas verdades teológicas explicadas de maneira alegórica; mas fica cansativo. A gente quer ver a coisa seguindo adiante. Nestes momentos o livro se torna efetivamente de teologia e aí já não curti mesmo, porque muda de foco.

Não tenho dúvidas que a parte mais bonita do livro é quando Cristão e seu amigo Esperançoso estão aprisionados no Castelo da Dúvida, onde toda toda noite um gigante chamado Desespero vem espancá-los. O bonito da coisa não é a prisão ou as surras, mas o dia em que Cristão lembra da Chave da Promessa a qual, cego que fora, esteve guardada com ele o tempo todo.

Há uma evolução no personagem de Cristão. Ele começa a jornada com muitas dúvidas, medos e caindo em diversas armadilhas. Mais pra frente é evidente seu amadurecimento, ao ponto de se tornar conselheiro e agir como verdadeiro mestre para Esperançoso. E a gente também vê a evolução de Esperançoso, saindo de fiel escudeiro para um conselheiro primoroso nos momentos de maior angústia.

Esta é uma resenha simples, para um livro tão profundo. Todo bom cristão deveria, pelo menos por uma vez, acompanhar a jornada de Cristão e ver como nossa vida está espelhada em diversos momentos da aventura. Como já disse, Bunyan tinha plena consciência do trabalho que estava fazendo. Tanto é que termina o livro com um desafio para o leitor. E com ele também encerro essa resenha:
Now, Reder, I have told my Dream to thee;
See if you can'st interpret it to me,

[...]
Put by the Curtains, look within the Vail;
Turn up my Metaphors, and do not fail
There, if you seekest them, such things to find
As will be helpful to an honest mind.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Resenha - Príncipe dos drogados

CORREA, Kinho. Príncipe dos Drogados. Boa Vista: Gráfisa, 2019.


Meus amigos, devo iniciar confessando meu pecado: eu julguei o livro pela capa. Se for pra ser bem honesto mesmo, iniciei a leitura com baixas expectativas. Ao folhear o livro, de cara já me chamaram a atenção a formatação de baixa qualidade do texto, páginas que não estão bem cortadas, um livro não uniforme. A qualidade do papel não é de quinta, embora não seja de primeira. O pior de tudo isso é que, além de julgar o livro pela capa, o autor é também roraimense e (a coisa só vai afundando cada vez mais) eu estive no lançamento deste livro -- meu exemplar é até autografado. 

Mas são coisas que servem de lição. O livro foi uma BAITA surpresa. O conteúdo é de excelente qualidade, coisas que eu jamais imaginaria. Quero fazer aqui uma resenha honesta e portanto vou apresentar tanto as qualidades como os defeitos que encontrei. Vamos seguir.

O que fica evidente pra quem folheia o livro, como já disse, são os problemas com formatação. O exemplo mais nítido é usar hífen (-) para falas. Poxa, podia ser pelo menos o meia-risca, né? (–) Ou, o que seria melhor, o travessão (—). Ou, se optasse pelo hífen mesmo (o que já é feio pra caramba), que pelo menos mantivesse a uniformidade. Mas nem isso! Tem horas que é hífen, tem horas que é dois hífens juntos (--) tem horas que é meia-risca. Um caos. Infelizmente a revisão deixou muito, muito, muito a desejar. Não apenas na parte gráfica ou textual, mas na própria verossimilhança de algumas falas.

Quanto à distribuição dos textos no livro, eu alteraria a ordem. Tem 3 textos que são relatos pessoais de Kinho. Deixaria o primeiro no começo mesmo, pegaria o Mad Max e colocaria logo depois de Marinalva; depois pegaria o Luta por uma causa e terminaria o livro com ele. Assim o livro fica equilibrado: texto do Kinho, 2 relatos, texto do Kinho, mais 2 relatos e outro texto do Kinho pra finalizar. Uma humilde sugestão pra uma próxima edição.

Agora, olha, acreditem se quiser, por piores que estes problemas sejam, eles ficam eclipsados quando nos deparamos com o conteúdo do livro. A proposta é diferente e ousada. Pra começar que não é ficção (não mesmo!) Na ficha catalográfica está "testemunhos". Grande verdade. Há uma excelente contextualização do tema no começo. O que o autor faz é mostrar por meio de relatos o mundo das drogas em Roraima a partir da sua própria experiência e de outras pessoas.

É muito interessante ver este mundo escondido dos olhos do grande público, ainda mais em Roraima, onde há tão pouco material escrito sobre o tema. O livro é honesto. Nossa! E como é honesto! Como nunca pretendeu ser ficção, o autor é livre para compor seus ensaios de maneira clara. O texto é bem escrito e impactante por ser tão direto em alguns momentos: "Na época eu era um dos traficantes mais conhecidos na cidade de Boa Vista/RR [...]" (p. 29)

Temos nos escritos alguns belos testemunhos de conversão. E pense num livro extremamento imersivo. A gente fica vidrado nas histórias da vida real. Talvez justamente porque elas são isso: da vida real! Tem histórias no livro que, pra ser bem sincero, eu preferiria que fossem ficção. 
Eles não brigavam por controle de vendas de drogas ou qualquer outro tipo de tráfico, as violências eram pra mostrar quem tinha mais força. (p. 44)
Há um pouco de auto exaltação que achei desnecessária. Este tipo de informação deve surgir na mente do leitor e não ser forçada goela abaixo. Mas eu mesmo reconheço que Kinho é de extrema coragem. Retratou de maneira bem clara o drama pessoal de algumas famílias que tem dependentes químicos. É uma situação terrível. Eu não sei se teria coragem de contar do jeito que ele contou.

Essa resenha é curta e simples porque eu não tenho coragem de falar aqui dos pormenores dos conteúdos das histórias. Entendam, não há nada explícito. Mas pensar que aqueles são relatos reais, sobre pessoas que ainda existem (e outras que já partiram)... olha... é um livro que precisa ser lido. Realmente abre os olhos para uma realidade. Imagino quantas outras histórias não há para serem contadas.

Conte-as, Kinho.
Eu não vou desistir desse trabalho. Eu sei que eu sofro muitas represálias, sou muito criticado por causa disso, algumas pessoas até acham talvez que eu queira me aproveitar. mas não é isso. Eu quero é ver minha cidade, seus filhos e netos com paz. (p. 88)