sexta-feira, 15 de maio de 2020

Resenha - Antes do Éden

LITTLETON, Mark. Antes do Éden. São Paulo: Candeia, 2001.


Fala, meu povo. Vamos começar direto com o enredo desse livro, porque a maior parte dos comentários será sobre outros tópicos, pouco relacionados com a história em si. 

Antes do Éden conta a história de Aris, Rune, Cere e Tyree: anjos que estão nos eventos da rebelião ocorrida no céu, antes mesmo da criação do mundo. Como é de se esperar, eles veem o surgimento da rebelião de Satanás e depois sua consequente expulsão do céu, junto de seus anjos. 

Na revolução, Rune e Cere escolhem ficar do lado de Kyrie (Deus) enquanto Tyree e Aris escolhem "não escolher." Deus concede essa oportunidade, mas logo Tyree se debanda para o lado de Satanás, deixando Aris nesse "limbo celeste", em que ele não adere a nenhum dos lados e pode transitar tanto no céu quanto no inferno. Daí você já começa a perceber como a coisa é sem pé nem cabeça.

Depois o autor estende a história até pouco antes de Noé e o dilúvio, com os descaminhos do personagem principal, Aris. É isso. 

A primeira coisa que tem que ficar clara é: isto é FICÇÃO! Ninguém sabe ao certo o que aconteceu naqueles tempos, a Bíblia não revela. Não sabemos como ou por que as coisas aconteceram daquela forma, mas somos livres para conjecturar. Isto é, desde que entendamos que tudo isso não passa de ficção! Eu fico triste quando vejo gente lendo isso e tomando como verdade as interpretações (e acreditem, acontece).

Por ser ficção, o livro naturalmente tem algumas limitações que são esperadas. Como falar ou pensar como um anjo? Não dá. Como descrever ou saber como se comportar no céu? Não dá. Tudo bem. É ficção e a gente entende isso, são as regras do jogo. Logo, algumas limitações previsíveis se tornam presentes, como: o comportamento dos anjos e sua forma de pensar se tornam humanos, as descrições do céu são necessariamente terrenas, e por aí vai.

Eu conheço que há momentos em que o livro não deixa de brilhar. Na cena da eclosão da rebelião, quando Lúcifer desafia Deus diretamente, ficamos com o coração na mão. Também na cena de Aris e seu encontro quase fatal com a humana Motta somos tomados pelo sentimento que o anjo sentia. Infelizmente não há muitas outras como essas.

Penso que o livro perdeu foco por estender o enredo. Talvez a história devesse ter acabado após a Rebelião e a criação do ser humano. Mas o autor foi muito além, chegando até o dilúvio! A leitura ficou muito extensa, numa sucessão interminável de eventos, mas sem saber onde de quer chegar. Essa falta de propósito objetivo prejudica o desenvolvimento da trama.

Passando à escrita em si, logo no começo já vemos algumas coisas. Logo de cara encontrei um problema que se repetiu pelo resto do livro: excesso de adjetivos. Por favor, não me diga que o prédio era "sombrio e tenebroso, cheio de rachaduras medonhas". Faça o favor de escrever direito e mostrar ao leitor, não apenas contar.

Os adjetivos a gente pode até deixar passar, mas o problema mesmo é o vício terrível e insuportável do verbo "parecer" (veja como eu usei muitos adjetivos nessa frase e ela ficou carregada, né?). Sobre o vício: ou é ou não é, meu filho. Decida aí. O uso exagerado do verbo parecer só aponta pra uma insegurança do autor em falar as coisas. Além disso, "parece" para quem? Pra mim? Pro personagem? Pra um terceiro? O verbo leva a muitas subjetividades que só prejudicam o bom entendimento do texto.

Ainda no começo do livro, há uma exuberância de nomes estranhos de categorias de anjos, plantas, lugares e não há tempo suficiente pro leitor se familiarizar com eles. Entendo o propósito a que serve, mas ficou um pouco exagerado. Como bom amante de fantasia eu aprecio, mas o excesso prejudica, alguns trechos ficam bem difíceis de entender, ainda mais porque o autor não é bem "didático" na hora de apresentar e explicar as categorias de personagens ou objetos que ele criou. Vejam só:
"[...] um Hauker com vários Liminnines nas costas e um membro óbvio dos Harpistrers. Nenhum de nós sabia quando o Kinderling olhos furtivos apareceria novamente [...]" (p. 67)
É o que? 
(Aliás, veja que nesse minúsculo trecho, o autor não consegue evitar dizer que o membro era "óbvio" e que os olhos eram "furtivos", isso sem contar com o advérbio de modo. O texto precisava de uma boa enxugada ainda).

Analisando como escritor percebo que o autor se valeu muito do intertexto para configurar o começo do livro, ou seja, ele usou o conhecimento que o leitor já teria dessa história pra não precisar contextualizar muito. Digo isso porque tem pouca ação, a história se move para frente de um modo devagar. O autor acaba não tendo tanta pressa porque todo mundo sabe o que vai acontecer.

Há vários problemas de verossimilhança, especialmente no relacionamento Adão e Eva pós-queda. Não creio que eles tivessem sido tão gentis um com o outro do jeito que o autor pintou. O comportamento de Caim e Abel no sacrifício fatídico é tão infantil que deu cringes. Inclusive, de maneira geral, ele coloca o comportamento do ser humano de modo muito infantil.

O trato entre cenas não é bem trabalhado porque é inconsistente: às vezes é bem encaixado, às vezes é bem desconfortável. E falando nisso, alguns diálogos são bem desconfortáveis: tem horas que são bem formais e outras cheias de gírias ou expressionismos, não raro com o mesmo personagem.

Passo agora a abordar algumas dificuldades de edição e diagramação do livro. 

Sobre a edição do livro em si (não do texto), embora tenha uma capa bem trabalhada e uma qualidade de páginas razoável, o livro é um pouco maior do que o comum e embora pareça besteira, isso dificulta a leitura. Como as páginas são muito largas, a leitura fica muito ampla e os olhos têm que ir demais até o fim da página, não dá pra centralizar direito. Sim, com o tempo eu fiquei mais fresco com leitura.

Sobre a diagramação, ela é um problema do começo ao fim do livro. Há problemas sérios com diálogos entrevistados no meio de parágrafos. Deixa poluído e confuso. No começo era só desconfortável; mas conforme isso se repetia, tornou-se cansativo. Frases quebradas, parágrafos iniciando no meio de outros, vírgulas soltas. Além de ler a história a gente tinha que ler a leitura pra saber o que estava lá. Eu, hein.

Quanto à tradução, ela tem problemas clássicos (tradutore, traditore, né?). O mais evidente é o de traduzir as palavras e não os significados. Em alguns momentos dá impressão que o autor ou o tradutor quis mostrar sua erudição ao escolher palavras complicadas que, no contexto, perdem toda sua elegância. Além, claro, de traduções literais sofríveis.

Por fim, nós temos as questões de doutrina, o grande perigo da ficção cristã.

Escrever sobre este assunto já seria complicado, avalie quando aborda um assunto tão difícil de entender. O âmago de todas as dúvidas na verdade é: qual é a origem do mal? Não pretendo responder essa pergunta, não é espaço para isso. 

O cerne do livro é um "livre arbítrio" dos anjos. Infelizmente não temos base bíblica para deixar isso claro e realmente não tem como saber com certeza. O interessante, porém, é que mesmo que fosse verdade, não explica o seguinte: por que seres santos, dotados de "livre arbítrio", logo, plenamente capazes de escolha, optariam por se rebelar contra Deus? Eis a questão (que também não vou responder).

O livro incorre no erro fatal que eu sempre condeno: tornar Deus um personagem da história. E aconteceu exatamente o que eu disse que aconteceria se isso acontecesse: ele vira humano, ele erra, ele tem dúvidas. Ele deixa de ser Deus.

Além disso, o autor não consegue compreender que Deus merece ser adorado simplesmente por quem Ele é. E que isso, por mais estranho que pareça, é na verdade o melhor para as criaturas que Ele criou! Ele não precisa da adoração mas permite que seja adorado para o bem das próprias criaturas. Escrevi sobre isso neste e neste post do meu outro blog (se este assunto te interessou, não deixe de ler! Poderá esclarecer dúvidas que você tenha).

No final, naturalmente, a questão descamba para o "livre arbítrio" humano e Deus se torna um ser cada vez mais impotente. Na verdade, fica cada vez mais claro que o personagem retratado no livro não é o mesmo Deus que eu acredito. E fica provado que enquanto houver doutrinas teológicas que defendam o "livre arbítrio", Deus sempre será limitado a um ser que não tem onipotência e precisa assistir com tristeza todo o Seu plano "dar errado". Desculpa gente, mas é ridículo.

O livro é cheio de boas ideias, mas todas mal trabalhadas. Parece que o autor pegou todas as ideias boas a respeito do tema (e as ideias são realmente boas), juntou tudo num mesmo livro e tentou conectá-las da melhor maneira. Mas no fim permanece exatamente isso: o livro é uma colcha de retalhos, não uma unidade. Tem momentos que é interessante, mas tem muita coisa que é sofrível.

No fim das contas, claro exemplo de que até a melhor das ideias, se não for bem trabalhada, não produz um bom livro.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Resenha - Vivendo um chamado

VIDAL, Luci Vasquez. Vivendo um chamado: quando dizemos sim para Deus. João Pessoa: Betel Brasileiro Publicações, 2018.

"Até hoje, sou tão feliz com minha vocação quanto no dia em que tive minha primeira experiência missionária. Perseverei em seguir ao Senhor, meu Deus. Sua misericórdia e bondade me acompanharam. Nunca se apa gou em mim a chama de meu chamado missionário." (p. 175)
Meus caros, esta leitura foi um bálsamo depois do emaranhado que foi a leitura anterior. Esta é a biografia de Luci Vasquez Vidal e foi um grande privilégio ter lido este livro. Eu não sabia o que esperar, mas acho que não esperava tanto. Deixa eu contar pra vocês.

Faz um bom tempo desde a última vez que li uma biografia, então foi bom pegar este livro pra espairecer um pouco. A escrita do livro é clara e a gente vê que há uma certa fluência de autora iniciante. Apesar da falta de treinamento literário (que fica evidente em alguns diálogos, por exemplo) a leitura é imersiva. Somos fisgados e queremos saber quais as histórias que Luci tem para contar, por exemplo, dentro da aldeia potiguara, ou no Japão, ou na Itália. Cada história é melhor que a outra e essa diversidade proporciona uma leitura que não cansa.

Pra falar a verdade, biografias são sempre um dilema. Porque o autor precisa escolher os fatos relevantes para colocar e este não é um trabalho fácil. Eu não sei até que ponto Luci realmente lembrou de tudo que escreveu ou fez pesquisa – mas se tiver sido de cabeça ela tem uma memória fantástica. Há trechos com detalhes bem específicos.

Por outro lado, acho que no livro entraram muitos detalhes que não são tão importantes, fica parecendo mais uma catalogação. Além disso, às vezes repete muitas informações que já foram ditas em capítulos anteriores, muitas vezes coisas que o leitor acabou de ler. Talvez a autora tenha feito isso de modo a honrar pessoas ou lugares no registro; mas que fica cansativo isso fica.

Uma coisa que devo apontar é que vejo que ela tem pontos teológicos em que discordamos, mas ela é bem discreta quanto a eles, focando mais na trajetória da sua própria vida. Pra vocês terem uma ideia do quanto essa diferença doutrinária é pequena, eu ouso afirmar que é impossível ser crente e não se emocionar com a leitura do livro.

É absolutamente lindo conhecer os frutos do trabalho de Luci. Eles evidenciam como o trabalho de uma só pessoa pode transformar tantas vidas. Cito por exemplo duas meninas indígenas que a acompanhavam na aldeia. Luci as levou pra cidade, depois elas voltaram e sua família se tornou uma bênção para a comunidade. E isto não aconteceu apenas aí, há vários exemplos de pessoas que, por causa da ação de Luci, tornaram-se bênção para muitas outras.

E já que estamos falando de aprendizado aqui, preciso falar do que foi o cerne desta leitura pra mim. Este livro me ensinou muitas coisas. Uma delas foi que eu não confio plenamente no Senhor, mas quero depender das minhas próprias forças.

Quando Luci foi convidada para ser diretora do Seminário do Betel Brasileiro, ela estava ciente das grandes responsabilidades e também não tinha certeza se era totalmente capacitada. Não obstante, uma vez que ela sabia que aquela era a vontade de Deus, ela seguiu em frente. Comigo é o contrário. Eu só me dou a fazer as coisas quando sei que já estou capacitado.

Parece que eu estou constantemente dizendo:
– Por que eu sei que consigo, agora posso fazer o que Deus quer.
Enquanto Luci diz:
– Por que eu sei o que Deus quer, agora sei que consigo.
"Até hoje, sou tão feliz com minha vocação quanto no dia em que tive minha primeira experiência missionária. Perseverei em seguir ao Senhor, meu Deus. Sua misericórdia e bondade me acompanharam. Nunca se apagou em mim a chama de meu chamado missionário." (p. 169)
Não há muito mais o que falar. O livro é muito bonito e vale a pena a leitura. É uma típica biografia. Aliás, se um dia fizerem uma segunda edição, tenho ideias de perguntas a serem respondidas: Luci nesse tempo todo nunca se apaixonou? Nunca pensou em constituir família?

No livro, Luci é apresentada de maneira lúcida, ela sempre tem dúvidas e sempre busca a Deus. Mas eu queria ver aspectos ainda mais humanos: quando Luci errou? Quais foram esses erros? Como eles moldaram seu caráter? Esse tipo de abordagem é o que torna uma biografia verdadeiramente marcante. Vai além das experiências da pessoa e mostra a essência da pessoa. 

Apesar destas ideias, a verdade é que o livro já está pronto para ser lido. Esse sou apenas eu querendo a continuação da história. Podem ler o livro, eu empresto (e olha que isso é raro). Só me arrependo de não ter lido esse livro antes.

domingo, 3 de maio de 2020

Resenha - Sarah

CARD, Orson Scott. Sarah: Women of Genesis (Book I). New York: Forge Books, 2001.


Este foi, sem dúvida, um dos piores livros que já li na vida. Embora seja evidente a capacidade literária do autor, dada a imersão que o livro produz além da escrita de qualidade (percebe-se que o autor tem experiência com literatura), não justifica o terror que foi o decorrer do livro. Aguentem comigo, porque vou explicar.

Vamos começar falando das coisas boas, porque eu preciso reconhecer que há. A maioria delas está ligada à maturidade literária do autor. Passagens bonitas e bem escritas como essa abaixo:
"Everyone in Ur-of-the-north treated Father with great respect and honor, even though the was a king without a city. But this Abram did not need others to give him his honor. He carried it within himself." (9)
Além disso, a construção e contextualização social e política é bem trabalhada além de verossímil para uma época onde basicamente todos viviam no estado de natureza hobbesiano. Me refiro à política da mesopotâmia e do Egito e claro a construção social da de uma tribo beduína "hebraica", que é bem condizente também.

Interessante também como o paganismo é construído de modo derivado da verdadeira religião (que é exatamente como acontece!). Por exemplo, Asera, que é uma deusa-mãe na cultura pagã dos caldeus e vários outros povos daquela região, na verdade era simplesmente Eva, mas que aos poucos grupos religiosos passaram a atribuir status de deusa. A deturpação da verdade na sua essência. Ah, e se tem uma coisa que esse livro entende é de deturpação da verdade. 

Pronto, acabaram os pontos positivos do livro. Preparem-se.

Vamos aos pontos negativos literários. Primeiro, não sei até que ponto é verossímil uma menina de 10 anos pensando e agindo do jeito que Sarai age no começo do livro. Tudo bem que eram outros tempos e outra cultura, onde meninas de treze anos já estavam aptas a casar. Não obstante... não sei, achei forçado. 

Em vários momentos o livro tem uma transição corrida, por exemplo de Sarai jovem para Sarai com crise de meia idade. Isso faz com que o livro tenha mais momentos de "contar" do que "mostrar". Os diálogos também deixam a desejar em alguns momentos, embora, do meu ponto de vista, eles tenham sido bem trabalhados de modo geral.

Além disso, acho que houve um hiato na escrita do livro por que no final Abraão parece um personagem diferente mais humano mostra raiva medo. Stephen King alertou sobre isso: quando se escreve uma história, o ideal é fazer tudo de uma vez, pra não correr risco de descontinuidade. 

Pronto, acabaram os problemas literários. Preparem-se de novo, porque agora é que o bicho pega.

O livro tem um problema seríssimo de doutrina!! Há muitas heresias na história. Nossa muitas mesmo. Eu elenquei o tanto quanto aguentei, mas deixei de registrar algumas porque eu já não conseguia mais suportar. Chega um momento que se a gente dá atenção de mais, acabamos por honrar aquilo que deve ser menosprezado. 

A começar, a primeira heresia foi que foi Deus quem mandou Abrão mentir sobre Sarai ser sua esposa. A partir deste momento fiquei de orelha em pé pra cada passo que o livro dava na história. Deus não nos comanda a pecar, jamais! A Bíblia é muito clara quanto a isso:
Ninguém, sendo tentado, diga: De Deus sou tentado; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e a ninguém tenta. (Tg. 1:13)
E o pior, é que o autor tem uns trechos no livro que apontam justamente para a sua hipocrisia, ou melhor, cegueira espiritual. Tem coisas que os personagens faz que são condenáveis, como bem exposto pelo autor, mas que ele mesmo o faz na escrita do livro. Olha só como é reveladora essa passagem:
"As to Pharaoh being a god, no man could equal such a claim, and in Sarai's opinion calling a man a god did not elevate the man, it only diminished the idea of godhood." (p. 93)
O livro me deixou oficialmente irritado. Sério, com raiva mesmo. Eu tinha a vã esperança que o autor consertasse o erro, mas ele manteve. Como se Deus tivesse ordenado a mentira e Faraó castigado no fim. Absolutamente ridículo. 

Brincar com a Escritura e cair na heresia é um dos meus grandes medos ao escrever. Por isso sempre tenho muito cuidado pra nunca mexer em nada com espinhos. Há terra o suficiente pra plantar sem precisar ser polêmico ou incorrer em erros. Que Deus conceda livramento para que eu sempre seja fiel à Palavra da Verdade.

Continuando, a situação só piora: Abrão é tratado no livro como um santo. Sempre certinho, sempre sábio, paciente, bondoso, nunca errando... É de dar nos nervos. E na tentativa de preservar a pura santidade de Abrão, feriram a divina. Porque Abrão não mente, não erra, não peca, mas coisas ruins acontecem. Ora, se ele não é o culpado... só pode ter sido o Deus que ordenou o pecado.

Há um limite de heresias que uma pessoa consegue aguentar. Tem que haver. Eu aguentei uma. Uma. Depois da primeira, eu segurei a onda e continuei a leitura com quem diz: "Coitado, só um pequeno lapso." Mas a partir da segunda tive vontade de jogar fora o livro e nem terminar a leitura. Mas pelo bem desta resenha e da preservação da verdade, eu precisei seguir em frente.

A coisa vai afundando cada vez mais. Não sei como dizer isso de outra maneira: o autor desenhou o enredo de modo que dar Agar para Abrão coabitar e ter um filho... foi ideia divina.

Não olhem pra mim, não fui eu quem escrevi (e jamais escreveria algo assim!). Como pode o autor ser tão cego para a verdade? No começo eu achei que ele havia se enganado, mas agora é mais que evidente que ele fez tudo de propósito! Na cabeça dele tudo que aconteceu foi tão santo, tão puro, tão certo, que ele esqueceu completamente do pecado! Do pecado de Sarai, de Abrão, de todos!
"Porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus," (Rm 3:22c,23)
Não é só inverossímil que o adultério de Abrão tenha sido algo abençoado por Deus, como se fosse um jeitinho para a promessa de Deus dar certo; não é só revoltante pensar que Deus apoiaria algo assim; não é só um desacordo com a Bíblia. É revoltante, é uma ofensa, é uma agressão à natureza divina. Maldito seja este pensamento de um Deus que é conivente com o pecado. Maldito.

Assusta-me, causa-me realmente grande temor que escritos como este estejam soltos por aí e, pior, que muitas pessoas talvez não consigam captar as sutilezas do texto. Que o Espírito Santo do Senhor tenha misericórdia dos neófitos e daqueles que não têm a quem recorrer nos momentos de dúvidas, para que não sejam levados pelos ventos de doutrina; que Ele envie cada vez mais servos para alertar o mundo quanto aos perigos das falsas verdades; que Deus nos livre homens como este autor, homens que:
"Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível" (Rm. 1:22-23b)
A partir desse momento tornou-se muito difícil fazer uma resenha mais ou menos neutra do conteúdo ou até mesmo apreciar as qualidades literárias dele, como eu pelo menos tentei fazer até então. Mas como poderia sequer fazer isso?

Como ser imparcial quando o autor diz que Agar foi a vilã da história o tempo todo? Que Abrão e Sarai estavam apenas tentando cumprir os propósitos de Deus? É de um absurdo sem tamanho! Ainda mais cometendo a gafe literária de criar uma situação que é obviamente inverossímil: Abrão, Sarai e Agar vivendo no mesmo lugar e mantendo aparências como se nada tivesse acontecido.

Será que ele simplesmente ignorou que Abrão fez sexo com outra mulher? Só este pequenino fato já é suficiente para corromper e modificar toda a relação de uma família! Argh, mal consigo me conter. O autor tenta com todas as forças contornar isso apelando para a regra antiga que Agar era escrava de Sarai, portanto, sua propriedade e tudo que vinha dela era seu por direito. Que grande absurdo. A própria narrativa mostra o rompimento fatal que houve não só na família mas entre todos os outros da comunidade com a situação mais do que inusitada: a esposa era uma, mas a mãe do herdeiro era outra.

Não bastasse isso, temos uma fala em que Abrão teria dito que Deus não é poderoso para fazer o que quer, negando seu Eterno Decreto. Vejam por si mesmos:
"God can make of anyone of he whishes, thought Sarai. She even said this to Abram, but Abram disagreed: 'God can make of anyone exactly what they are willing to become, and nothing better'." (p. 258)
Pff! Que Deus é esse que precisa se submeter ao homem para seguir com Seus projetos? Além disso, veja a frase do autor: "Deus pode transformar alguém na exata medida que eles desejam ser transformados, nada além disso." Me diz aí: quem é que por iniciativa própria deseja ser transformado? Não fosse Deus vir ao nosso encontro, quem de nós teria ido a Ele? Quantos de nós não ouvimos falar de Jesus durante nossa vida inteira até o dia que tivemos os olhos abertos? O que mudou naquele fatídico dia? Sua natureza? Por supuesto! Foi o agir de Deus na sua vida. Não o contrário.

Acho que chegou determinado ponto do livro que o autor já estava descarado demais pra tentar ainda manter aparências. Ele mergulha logo em todo tipo de heresias sem medo ou desconforto nem mesmo com as circunstâncias históricas, afetando a verossimilhança da história. Novamente, vejam por si. O trecho abaixo é Sara (agora já com novo nome) externando seus pensamentos logo após ouvir a promessa de que, apesar da idade, ela teria um filho com Abraão:
"She knew that like all God's promises, this one depended on her worthiness before the Lord." (p. 264)
Ô, meu Deus. Depois dessa eu encerro meu caso, porque sinceramente não sei mais o que falar. Deixa só eu explicar: se você ou qualquer um de nós depender de você mesmo, ou do seu "valor" perante Deus para ser abençoado, meu filho, sinto dizer, você vai viver eternamente longe da graça salvadora do Senhor. Lembre-se: é impossível que Deus conviva com o pecado. Não tem jeito de você ter valor algum perante Deus, você não tem.

Sabe por que é que Deus olha pra você? Sabe por que é que Deus te abençoa? Sabe por que quando nós falamos com Deus Ele nos ouve? É por causa de Jesus. JESUS. Quando Deus olha pra você, ele vê algo que não vale nada; mas quando Ele coloca a lente e vê através de Jesus, você passa a ter um significado diferente. Porque Jesus morreu por você e o Seu sangue permitiu que você se aproxime de Deus e tenha comunhão com Ele de novo. Não é pelo seu valor, mas pelo valor de Jesus.

Foi mal, gente. A resenha se tornou um ensaio bem diferente do que eu esperava. Mas eu acho que vocês entendem isso. Quando a gente está acostumado com a verdade, qualquer distorção dela nos causa estranheza. E se até um cachorro late quando seu dono é atacado, quanto mais eu ao ver meu Deus rebaixado por essas falácias.

Agora cheguei na página 268. Apenas 4 páginas depois daquela que me fez ter esse ímpeto teológico acima. Na página 268 Abraão pressente que algo de ruim está para acontecer porque... ele viu nas estrelas. Sim, Abraão consulta o céu e quando uma estrela assim ou assado aparece, isto é sinal de algo ruim. Por que Abraão era convertido ao paganismo e também astrologia, aparentemente.

Distorção. 

Essa é a palavra que melhor define o livro. As qualidades literárias ficam ofuscadas pela quantidade de distorções presentes na história. Céus, eu li livros de ateístas progressistas que foram menos hereges. Foi só depois de terminar a leitura do livro que descobri que o autor é mórmon. Lendo palavras dele mesmo, deixou bem claro que ele não acredita na inerrância das Escrituras e que abertamente reinterpreta fatos bíblicos. Não me diga.

Tem coisas, meus caros, que não dá pra aguentar. Vocês vão me desculpando, mas cometerei um crime. Este livro e a continuação dele (sim, porque eu fui besta o suficiente pra gastar 17 dólares com estes dois livros) não vão ficar na minha estante. Eu sinto dizer, mas eles não vão nem pra doação. Eles vão para o único lugar que merecem ir: o lixo. Talvez o papel reciclado ainda possa ser útil.