domingo, 31 de dezembro de 2023

2023: o resumo da ópera

Desde que comecei esse blog, é padrão que no dia 31 de Dezembro eu faça uma retrospectiva do ano. O que li? O que escrevi? Como foi a literatura na minha vida nesse ano? Em suma, olhamos para trás e fazemos o resumo da ópera.

Não encontrei nenhuma foto boa, então fiquem com essa gerada por I.A.


1. Livros resenhados

2023 não foi um ano forte para a literatura, pelo menos não em comparação com os anos anteriores. Na verdade isso é difícil de avaliar, por que esse ano fiz um cirurgia que me tirou da jogada por umas semanas (embora verdade seja dita eu poderia ter lido mais); e estive viajando bastante por conta de um tratamento da minha esposa. É claro, porém, que isto não passa de desculpas. 
Nesse ponto da retrospectiva, eu tento eleger a melhor leitura do ano. Olhando para a tabela, certamente Julho foi o mês com maior aproveitamento, absolutamente todos os livros daquele mês foram sensacionais. Pra mim é muito difícil escolher o melhor. Vou fazer um esforço hercúleo e destacar três (sem ordem específica): 2) Drácula, 14) Daniel; e 18) Elantris — com uma menção honrosa para 16) Ponte para Terabítia, que só de ler o título me deu uma facada no coração.

Avaliando a quantidade de livros lidos, foi o meu pior ano em meia década. Os números falam por si, mas destaco novamente as cirurgias e tratamentos médicos, além de algumas mudanças drásticas em questão de emprego e planos para o futuro.

2018: 27 livros
2019: 37 livros
2020: 40 livros
2021: 21 livros
2022: 35 livros
2023: 20 livros

Em suma, foi meio bosta, mas gostei de muito do que li. Pelo menos esse ano coloquei os links na tabela de restrospectiva caso alguém (ninguém) queira clicar e ver o que achei do livro. Acho também que foi uma boa pedida eu me dar o direito de não ler. Muita gente acha que "liberdade" é a capacidade de fazer tudo o que se quer; mas "liberdade" só pode existir se eu for capaz do não-fazer também.


2. Concursos literários e produções

Dessa vez tive uma abordagem totalmente diferente e comecei o ano com a decisão de não mandar mais nada pra concursos literários. Mantive-me firme até Junho, quando a revista Égua Literária me convidou para escrever um conto em homenagem ao aniversário de Boa Vista. 

Apesar do convite, continuei parcimonioso e enviei poucos textos esse ano, bem menos do que anos anteriores. A pergunta que surge é: por quê? Honestamente, acho que foi o cansaço. Eu quero descansar. Quero ter o direito do não-fazer. Quero deitar na minha rede e olhar para o teto, ouvir o som do ipê farfalhando, dos passarinhos cantando, ligar o ar-condicionado e me embalar de leve. A vida não precisa ser tão pesada, precisa?

Clique em cima para ver melhor
Aqui a coisa é muito fácil de ver: foram 10 envios e 4 aceites. Isso torna os cálculos bem mais fáceis: 40% de aproveitamento, o que é, descaradamente, o melhor aproveitamento de toda minha história liteária (que não é grande coisa):

2018: 18 textos enviados, 4 aprovados → 22% de aproveitamento
2019: 17 textos enviados, 4 aprovados → 23% de aproveitamento
2020: 18 textos enviados, 6 aprovados → 33% de aproveitamento
2021: 35 textos enviados, 6 aprovados → 17% de aproveitamento
2022: 46 textos enviados, 7 aprovados → 15% de aproveitamento
2023: 10 textos enviados, 4 aprovados → 40% de aproveitamento

Retomo aqui um argumento que usei no ano passado: o que esses número significam? A resposta é muito simples: porcaria nenhuma. São números. Em termos de currículo literário, é legal ter publicações para listar; em termos da vida real, ninguém liga pro quanto você publicou, o que importa é que sua obra seja boa e — o mais difícil — que você venda.

Por outro lado, esses números deram origem ao gráfico mais fácil de entender de toda a minha vida:

Cor "tijolo claro": não's
Cor "verde limão": sim's
(essas são as cores do office, não me julguem)

Agora, tem algo digno de nota em toda essa história de publicações. Desde que comecei a escrever em 2016, tudo que fiz foram contos e alguns poemas. Todos os meus livros publicados até hoje são de contos: tanto Personagens não bíblicos e suas histórias como Outros personagens... são antologias de ficção cristã, e ambos É a vida e Pois é são antologias de microcontos variados. 

A significância disso se dá porque em 2023 escrevi meu primeiro romance: Coisas da vida. Uma obra que conta a história de Luan, um jovem roraimense que sonha em passar no vestibular da UFRR, mas, para isso, tem que lidar com as coisas da vida: trabalho, relacionamentos, dificuldades financeiras, ilusões e sonhos. 

Escrevi Coisas da vida em 24 dias (um dia para cada capítulo), submeti-o para publicação num concurso da Editora da UFRR e, ora ora vejam só, ele foi aceito! Significa que já temos aí escrito e no prelo meu próximo livro. Não qualquer livro, meu primeiro romance. 

(P.S.: em Dezembro de 2023 lancei meu livrinho Pois é e outros microcontos. Não é nada do outro mundo, mas fica aqui o registro).


#O resumo da ópera
  • Livros lidos: 20
  • Textos escritos: sabe Deus, mas acho que não foi nem 10, porque vários desses que enviei já estavam guardados na gaveta, foi só questão de enviar
  • Textos enviados pra concursos literários: 10
  • Textos aprovados: 4
É digno de nota que na minha retrospectiva do ano passado (disponível AQUI), eu falei que em 2023 escreveria meu primeiro romance. Honestamente fiz essa resolução ano passado como quem faz resolução de fim de ano: no ímpeto, sem planejamento ou certeza nenhuma de que vai dar certo. 

Mas cá estou eu surpreso com meu primeiro romance. Dei uma lida nele recentemente ao fazer a revisão e, olha, diria que é um livro bonzinho para um escritor iniciante. O livro tem seus momentos. Tenho boas esperanças para ele como ficção regionalista, acho que não houve ainda nada igual a ele em termos de ficção escrita para boavistenses. Mas, sejamos honestos, o escritor que nunca achou que escreveu algo "único" que atire a primeira pedra.

Ainda não me sinto descansado o suficiente para dizer o que farei em 2024. Algo em mim quer dizer que vou escrever outro romance; mas, sinceramente, não sei se tenho pique para isso. Hoje o plano que me anima é, quem sabe, conseguir um agente literário. Isso me deixaria mais livre para de fato escrever e não ficar me tolindo porque não sei qual será o futuro dos meus livros. Aliás, a ideia de agente literário fica mais sólida na minha cabeça quando penso em traduzir meus dois primeiros livros e publicá-los em inglês, onde há um mercado bem maior para ficção cristã.

Em suma: planos, meus caros, planos. 
Amanhã 2024 já chegou. 
Então tá bom.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Resenha — I, Robot

ASIMOV, Isaac. I, Robot. New York: Bantam Books, 1991.


Esse é da categoria de livros que eu encontrei por aí a um valor tão acessível que não tive escolha se não levar, ainda mais sendo Asimov. O mestre da ficção científica não tem esse título à toa e eu já sabia que seria bom. O lance é que (desculpem-me a ignorância) eu achei que o livro era igual o filme. Então foi uma quebra de expectativa ver que não é nadinha igual. 

Enquanto no filme acompanhamos Will Smith como um detetive que investiga um robô, no livro nós temos um repórter entrevistando a Drª. Susan Calvin, autoridade mundial em robopsicologia. Ela está no fim da carreira e o repórter está fazendo um documentário sobre sua vida. Isso serve como pano de fundo para ela contar histórias da robótica.

O livro então funciona como uma série de contos, conectados pela experiência da Drª. Calvin. O autor usa isso pra contar a história da robótica naquele mundo, começando com robôs bem mecânicos que executavam apenas funções simples, até terminar nas Máquinas, capazes de direcionar a história da humanidade.

O ponto chave de todas as histórias são as leis da robótica:
1. Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2. Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que entrem em conflito com a Primeira Lei.
3. Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis.
Em certa medida, todos os contos exploram essas leis e os limites ético-racionais delas na atividade dos robôs e dos seus relacionamentos com seres humanos. O autor propõe não somente histórias interessantes, mas reflexões bem profundas sobre os limites da própria robótica. Interessante notar que ele não soa fatalista quanto ao tema, ressaltando bem a necessidade do ser humano:
These reactionaries of the Society claim the Machine robs man of his soul. I notice that capable men are still at a premium in our society; we still need the man who is intelligent enough to think of the proper questions to ask. (p. 265)
Das histórias, fiquei bem impressionado com uma em que o robô desenvolve uma personalidade quase religiosa, enquanto dois homens estão presos com ele numa estação em Marte. Também achei  interessantes as aplicações da história onde, por acidente, um robô é construído com capacidade de ler pensamentos.

No fim, se pensarmos no contexto em que o livro foi escrito, há 70 anos passados, Asimov se mostra absolutamente revolucionário e até hoje suas histórias tem ecos interessantes, mesmo para uma sociedade já informatizada como a nossa.

Certamente o famoso "Eu, Robô" não é um livro que vai mudar minha vida, mas com certeza faz pensar. Não vejo motivo para me desfazer dele. Quem sabe o que eu ainda vou aprender com Asimov daqui a uns 20 anos, quando o futuro for tão diferente?

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Resenha — Lá onde o coração faz a curva

GAROFALO, Emílio. Lá onde o vento faz a curva. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil; São Paulo: The Pilgrim, 2021.

Esse é um livro que me traz sentimentos bem conflitantes. O autor é cristão e incentiva a ficção cristã no Brasil. A obra dele veio depois da minha, mas como ele já é um pastor bem conhecido no meio, os livros dele decolaram e os meus ficaram pra sempre engavetados. É difícil se ver nessa situação.

O livro conta a história de uma viagem de carro feita entre pai e filho. Trata-se de um conto divido em capítulos. A história está mais próxima de ser um relato de viagem do que um conto em si. Isso não significa que não haja alguns momentos que emocionam, só quero dizer que tudo é muito resumido, havia espaço para que a coisa fosse melhor trabalhada.

Pra mim esse é o grande defeito do livro: tinha muito mais potencial. Em vez de simplesmente informar o leitor dos fatos, o autor poderia ter gastado mais algumas linhas ou parágrafos desenrolando cenas. Em vez de dizer que o pai estava triste com alguma coisa que o filho fez, ele poderia ter desenvolvido a cena e deixado o próprio leitor chegar nessa conclusão. Trata-se de um livreto com bastante potencial, mas que foi mal explorado.

É chato falar isso, porque fica parecendo que é má vontade minha; mas trago apenas a verdade. E, admito, sinto um pouco de inveja de esse livro ter sido publicado e estar rodando o Brasil e o meu não.

domingo, 29 de outubro de 2023

Resenha — Elantris

SANDERSON, Brandon. Elantris. New York: Tor, 2005.


Faz muito, MUITO tempo que eu não lia uma obra de fantasia tão bom. Meu Deus, acho que mal consigo lembrar qual foi a última que me fez ficar vidrado assim. Talvez o "Trílio Dourado"? Olha, difícil. Mas vamos à resenha.

Deixa eu começar falando o que achei de ruim nesse livro: ali perto do final, o enredo dá duas ou três forçadas de barra que ficaram bem aparentes. O livro tem algumas forçadas de roteiro, talvez em alguns momentos a narração seja explicativa demais. Porém esse é um dos pontos comuns aos livros de fantasia que a gente deixa passar porque a descrição várias vezes é necessária pra gente se ambientar adequadamente ao mundo proposto. Pronto. São essas as coisas ruins.
Truth can never be defeated, Sarene. Even if people do forget about it occasionally. (p. 246)
Falando em mundo, se um dia eu escrever um livro de fantasia, quero fazer igual Sanderson fez: não-enciclopédico. Acontece que muitos autores são tão fascinados com a criação de mundos que esquecem de contar uma boa história. Vários autores de fantasia imaginam que seu mundo tão bem criado, tão bem estruturado, será suficiente para prender o leitor e fazê-lo querer ir até o fim. 

Mas, a verdade, é que não são mundos que nos encantam, são histórias. E é isso que o autor faz. Ele tem um mundo de fato muito fascinante, mas ele não fala do mundo, ele fala da sua história e, por meio dela, vai revelando seu mundo. 

Faz muito, muito tempo que não vejo alguém escrever uma fantasia tão bem assim até os nomes estranhos que ele cria se tornam naturais, porque estão inseridos na história, e não numa enciclopédia sobre o mundo. Até os nomes estranhos que ele cria se tornam naturais, porque estão inseridos na história, e não numa enciclopédia sobre o mundo de Opelon.

Como já falei, o livro se propõe a contar uma história. É uma clássica jornada do herói, com três núcleos diferentes: Raoden (o príncipe tomado pelo Shaod), Sarene (a princesa audaz), e Hrathen (o sacerdote ambíguo). Todos esses núcleos são complementares e não há nada no livro que não tenha sido utilizado, o autor usou a regra da espingarda de Tchekhov à risca.

Elantris é o nome da cidade onde habitavam seres poderosos, os Elantrianos, até o dia em que a cidade misteriosamente foi tomada por uma maldição, o Shaod, e os elantrianos passaram de semideuses a seres amaldiçoados a viver quase como mortos-vivos, sem entender o porquê de terem perdido sua magia e sua aparência formosa.

O autor me surpreendeu em envolver muito bem a religião na sua narrativa. Não se trata de nenhuma religião do nosso mundo, mas algo que ele criou e soma-se muito bem não só à teia de acontecimentos como também ao próprio folclore do mundo, integrando religião e política de uma maneira até bem natural.

Vale também um salve para o sistema de magia criado pelo autor. Eu sou fã inveterado de sistemas rígidos de magia, que obedecem a uma ordem lógica e que não são apenas efeitos especiais ou resoluções automáticas de problemas.
Raoden nodded, and Kahar left. The man had come looking for a magical solution to his woes, but he had found an answer much more simple. Pain lost its power when other things became more important. Kahar didn't need a potion or an Aon to save him — he just needed something to do. (p. 217)
Fiquei muito surpreso ao descobrir que este fora o primeiro livro publicado pelo autor. Demonstra uma maturidade que eu mesmo sei que não tenho ainda. O livro é sólido, é aquilo que todo leitor quer e pede toda vez que abre as páginas de um livro: uma boa história.

Não que isso valha alguma coisa, mas Brandon Sanderson conquistou seu lugar na minha estante.

sábado, 23 de setembro de 2023

Resenha — The skeleton tree

LAWRENCE, Iain. The skeleton tree. New York: Delacorte Press, 2016.  


Mais um dos livros aleatórios que encontrei num sebo e, tendo em vista o preço módico, acabei comprando. Já adianto que não achei nele nem uma grande revolução. Me parece, pelo menos, um livro que cumpre seu propósito de contar uma história.

O livro conta a história de dois garotos que naufragaram numa ilha deserta. Os garotos se odeiam e têm alguma relação que eles não conseguem descobrir qual é. Para sobreviver, eles precisam aprender a cooperar e confiar um no outro.

A premissa não tem nada do outro mundo e já foi contada antes (Lord of the flies). O que o autor traz de diferente é a presença de elementos quase fantásticos, ou, pelo menos, misteriosos, utilizando os mitos e geografia do Alaska.

Quanto à narrativa, tenho que admitir que o autor sabe colocar pulga atrás da orelha, revelando informações pela metade. E não são informações soltas, mas pontas que ele de fato insere para depois resolver, o que demonstra maturidade na escrita.

Quanto aos personagens, também fica evidente que o autor sabe o que está faznedo, porque ele me fez ter um verdadeiro ódio do Frank, menino chato, mal-educado e um bully. Várias vezes senti ódio do protagonista Chris por não fazer nada contra Frank, mesmo entendendo que isso era parte da construção de ambos os personagens.

Porém, a crítica que faço é que o basicamente resolveu reunir coisas interessantes que ele viu durante suas experiências de vida e colocar tudo num livro só. A história ainda se salvou por ser razoavelmente interessante, mas vários elementos ficam perdidos e estão lá só por estar. 

Um exemplo claro disso é o próprio título. A "skeleton tree" tem certa relevância, mas não como elemento central para a história ou nada que justifique fazer dela o título do livro. Ela é só uma curiosidade bem interessante: que povos daquela época costumavam "enterrar" seus mortos em caixões pendurados em árvores altas. Como falei, de fato é interessante, porém não contribui para a história diretamente e não justifica o título. 

Por causa disso, o livro se perde em estilo. Uma hora ele é extremamente realista com detalhes da natureza, da vida selvagem, da sobrevivência; mas do nada insere elementos fantásticos como fantasmas e aparentes relações místicas. Tem hora que é drama, tem hora que está mais pro terror, tem hora que beira a aventura. Mas como o livro não sabe direito o que é, no fim, não é nenhum deles.
Below me, everything was so black that I could close my eyes and it made no difference. I had found the loneliest place in the world. (p. 196)
No fim das contas, como falei, o livro serve ao propósito de ser uma literatura infantojuvenil apropriada. Não vai mudar a vida de ninguém, mas é um livro razoalvemente sólido que pode proporcionar uma boa leitura para quem está ingressando nessa vida. Apesar das críticas, fico nesse mais ou menos. É o que temos.

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Resenha — Bridge to Terabithia

PATERSON, Katherine. Bridge to Terabithia. New York: Harper Trophy, 2001.


Vamos aos fatos: chorei copiosamente. Não chorei de leve. Chorei de soluçar, chorei até meu nariz não conseguir respirar direito, chorei que minha cabeça doía. Chorei, chorei, chorei. Mas que livro belo, que livro fantástico. O que torna um livro bom? Talvez a capacidade de nos fazer viver uma outra vida, uma outra história? Se for isso, esse livro não é bom. Ele é muito bom.

Lembro de ter assistido parte do filme, há um bom tempo atrás. E lembrava também de um sentimento ruim atrelado ao filme. Eu não sabia dizer o porquê, só sabia que algo de ruim acontecia. Eu realmente não estava preparado para o que livro trouxe.

Essa é uma edição paperback que comprei também por 1 dólar. O livro estava bem conservado e me surpreendeu como um livro até curtinho (128 p.) pode conter tanta coisa. Confesso que não conhecia a autora, mas posso dizer que fui muito bem surpreendido pelo que encontrei aqui.

O livro já começa nos abraçando, nos envolvendo com carinho. Não sei explicar direito, mas a narrativa traz uma sensação familiar e agradável. Acho que é porque a história nos dá a sensação de infância. É uma mistura da agonia de não poder fazer o que se quer, com os sonhos exagerados e as sensações deslumbrantes que a gente só pode experimentar na primeira vez. 

Tudo isso junto com o peso da amizade. "Peso" não é uma boa palavra, porque amizade é leve. É o peso da sua perda. Lembro que li o livro com medo de que essa amizade termine, porque tenho a sensação de que essa história tem um final triste.

E aí o enredo, né? O que dizer desse enredo? É só uma história simples de um menino e uma menina que se tornam amigos. É isso. É infância, companheirismo, aventuras, fantasia e faz-de-conta que só a criançada consegue executar com perfeição. 

E, ao mesmo tempo, é a realidade da vida. Dos relacionamentos familiares, da vida estudantil, da selva que pode ser a escola. É uma história que consegue criar uma fantasia (Terabithia!) e, ao mesmo tempo, mostrar como essa fantasia não está nadinha distante da nossa realidade. E pensar que esse é um livro infantil... 
"I just can't get the poetry of the trees," he said.
She nodded. "Don't worry," she said. "You will someday." (p. 40)
Honestamente não sei dizer se esse livro fica na minha estante ou não. É, de fato, uma obra fantástica. É algo impressionante, quase inigualável. Por outro lado... sei lá... talvez seja bom demais. Será que isso faz sentido? No fundo o que quero dizer é: não quero sofrer desse jeito de novo. Não sei se tenho estrutura pra aguentar isso de novo. 

Pesado, forte, incrível. Tal como a vida. (?)

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Resenha — Dreamcatcher

KING, Stephen. Dreamcatcher. New York: Scribner, 2001.


Um livro de capa dura, quase 600 páginas, em excelente estado de conservação (absolutamente intacto), com o carimbo de autoria de Stephen King, tudo isso por míseros três dólares? Pois me dê, papai. Esse é daqueles que mesmo que a leitura não seja muito boa, o preço já paga. Vamos à resenha.

Acho que não preciso falar do autor, um verdadeiro monstro da literatura, provavelmente o autor mais profílico dos últimos tempos. Também não preciso falar da edição porque já citei ela ali em cima. Tampouco me vem à cabeça a necessidade destacar diagramação, etc. Portanto, olha essa história.
Some dreams die and fall free, that is another of the world's bitter truths. How many bitter truths there are. (p. 530)
Aqui acompanhamos a história de quatro amigos que se reúnem para a temporada de caça. É a ocasião em que eles aproveitam pra bater um papo e passar tempo juntos, já que a vida sempre os afasta. É justamente nessa reunião que eles se deparam com... alienígenas, fungos espaciais, operações militares, comandantes totalmente loucos, um amigo de longa data (que está, na verdade, no centro do enigma), perseguições, poderes telepáticos, habilidades paranormais, alienígenas monstruosos, e por aí vai. Pareceu muita informação? É porque de fato é mesmo.

Achei o começo meio confuso, precisei voltar pra entender algumas vezes. O pior é que isso é um problema que se mantém pelo resto do livro. Em vários momentos a narrativa me soa prolixa, cheia de detalhes que pouco contribuem para que a história caminhe para frente. O pior é que vários desses detalhes estão imersos na cultura americana, então alguns eu pego meio no ar, já outros passam em branco mesmo e o leitor fica sem saber se deveria ter entendido algo importante ou não.

Por ser um livro de Stephen King, eu imaginava que seria um livro de terror, mas não foi o caso. Se o livro era pra dar medo, não conseguiu. Por outro lado, se categorizado como um suspense, aí funcionou muito bem, porque me prendeu na curiosidade e na vontade de saber o desenrolar dessa trama.

Em alguns momentos a história tem gore demais pro meu gosto. Nem dá medo direito e nem impressiona tanto, porque acaba sendo sem propósito. Interessante notar que o autor não continuou com o gore no decorrer do livro. A impressão que tenho é que o autor escreveu isso em dois momentos diferentes da vida, de modo que o começo e o fim têm estilos um pouco diferentes.

Pra mim isso é corroborado ainda pela impressão que ele me deu de uma narrativa lenta que, do meio pro fim, acaba pegando um passo legal e a gente fica imerso o suficiente na história pra ter vontade de continuar, até se ver preso numa espiral que só vai parar quando terminamos tudo. 

E aí realmente preciso tirar o chapéu para a capacidade do autor de concatenar os diferentes núcleos da história até fazer eles se encontrarem de maneira orgânica no final. Se teve um momento que me pareceu forçado, foi coisa pouca, tanto que, se eu ler de novo daqui há alguns anos, é capaz de eu nem perceber. 

Por fim, confesso que o título não me cativou muito e foi um dos casos que me pareceu meio forçado. Fico até me perguntando como foi que fizeram para funcionar em português o título de "O apanhador de sonhos" com um original em inglês que tem muitas conotações.

De qualquer forma, não dá pra negar que é um livro bem legal e que, pelo menos por enquanto, ganhou lugar na minha estante. Afinal, é Stephen King, né, papai?

domingo, 30 de julho de 2023

Resenha — Daniel

EDWARDS, Jay. Daniel: Poder, negócios e política à luz da Bíblia. Brasília: Palavra, 2022.


Esse é um daqueles livros que eu leio e fico: "Putz! Por que eu não pensei nisso?". Por outro lado, é um dos poucos exemplos de romantização de histórias bíblicas que vejo onde a coisa não cai num proselitismo exagerado ou simplesmente numa utopia de acontecimentos. Me adianto. Vamos à resenha.

Quero começar falando dos problemas. Primeiro que não curti a escolha do editor de usar aspas para destacar os diálogos no lugar de travessões. Não é muito comum no Brasil e não custava nada fazer essa troca, que deixa a leitura mais fluida visualmente, no meu ponto de vista.

A narrativa tem vícios. Há vários momentos de "falar" em vez de "contar" a cena, a coisa fica muito simplificada. Também se verifica algumas opções de tradução meio ruins ("juntamente com", vários "parecia que", etc.), mas aí já não sei se foi opção da tradução ou do próprio texto original. De qualquer forma, se vê uma escrita não muito madura.

Esse talvez seja o principal problema do livro. Vemos uma escrita quase "amadora", ou talvez, em vários momentos, mais próxima de uma escrita acadêmica do que literária. Se por um lado isso é uma abordagem interessante, por outro peca em não ser muito boa em nenhum dos dois aspectos. Não é acadêmico o suficiente para ser desse tipo, tampouco literário o suficiente para ser do outro.

O livro cai na dificuldade de toda a ficção cristã que usa personagens principais da Bíblia: Daniel simplesmente não tem defeitos e não erra. Embora isso não tire o brilho do personagem por conta dos feitos, por outro o torna unidimensional, sabemos que ele nunca vai errar, mesmo que tenha dúvidas em alguns momentos. Isso reforça minha tese de uma escrita meio amadora.
Eu creio que Deus pode nos livrar, mas eu não sei se ele vai. (p. 26)
Embora eu seja suspeito para falar, porque gosto muito de ficção histórica (ainda mais bíblica), nenhum desses problemas eclipsa a história. Tudo isso pra dizer que os problemas desse livro não são suficientes para cobrir a boa leitura que ele proporciona.

Fica evidente que o autor fez um excelente trabalho de pesquisa para não escrever qualquer coisa. Esse esmero dele torna a leitura mais envolvente, a narrativa se torna um misto de curiosidade pelo enredo que envolve o personagem principal e, ao mesmo tempo, uma espécie de documentário sobre uma época que nos deixa fascinados.

Se por um lado o personagem principal, Daniel, é meio unidimensional, por outro a romantização da história de vida dele é muito bem feito. Acompanhamos Daniel adolescente em Jerusalém, sua captura pelo exército inimigo, seu exílio até a Babilônia, e toda sua história naquela cidade, onde ele, com ajuda e capacitação de Deus, se provou ser, quem sabe, o maior estadista que o mundo já viu.

A história é muito boa. E aqui embora seja devido crédito ao autor, ele foi esperto porque a história é boa simplesmente porque a História é boa! Como ele está abordando um fato que aconteceu mesmo e ainda registrado na Bíblia, não precisa inventar muito para que sejamos cativados.

O livro cativa, de fato. Foram mais de 400 páginas que nem vi passar. Mesmo sabendo tudo que ia acontecer, me vi preso nas páginas, querendo saber como Daniel se comportaria, como estavam se adaptando Hananias, Misael e Azarias (também conhecidos como Sadraque, Mesaque e Abede-nego) à sua nova condição, como um escravo hebreu se tornou um dos maiores estadistas de todos os tempos, passando por quatro impérios diferentes e ainda assim mantendo seu status e relevância.

Fantástico, absolutamente fantástico. Um livro que, apesar de todas as suas limitações, quero ter na minha estante. Pra finalizar, se eu puder ser bem sincero, sinto é uma pontada de inveja do autor, por ter escrito uma história que eu mesmo adoraria ter escrito. Mandou bem, Jay Edwards, curti demais. Que Deus use essa história para continuar abençoando vidas por muitas gerações!

domingo, 16 de julho de 2023

Resenha — Annihilation

VANDERMEER, Jeff. Annihilation. New York: FSG, 2018.


Esse é um livro que eu não sei nem por onde começar. Ele é tão diferente de tudo que já vi e a leitura é tão fascinante que... descrevê-lo parece limitá-lo. Vamos ver o que consigo fazer.

Comprei esse livro porque tinha visto o filme na Netflix e achei muito fascinante: uma área secreta de repente começou a brotar com uma biodiversidade que não faz sentido. Por isso, uma agência envia expedições à área para investigar e descobrir o que está acontecendo antes que seja tarde, porque conforme o tempo passa, a área se expande.

O filme em si já é cheio de coisas que fazem a gente questionar a própria realidade e racionalidade da coisa. Agora o livro... meu Deus... é muito mais profundo e, por isso, bem mais complicado de explicar.
I was certain no one else left here, not the surveyor, not the psychologist, could see that stirring of the inexplicable. (p. 105)
O livro parece ser de vários gêneros e de nenhum ao mesmo tempo. É uma espécie de ficção científica... mas não tecnológica, e sim biológica. Ficção biológica? Mas tem suspense também. Não chega a ser terror, mas suspense, aquela constante sensação de que tem algo errado. Mas não é um suspense tanto de dar medo, mas de encher de curiosidade pelo que tem naquele lugar estranho. Bioficção? Não sei explicar direito.

O livro fala de uma coisa que está além dos sentidos humanos, mas que, ao mesmo tempo, não é sobrenatural. Pelo contrário, é totalmente natural, biológico, vivo. O ser humano só não consegue compreender. Há uma forte aura de Lovecraft, mesmo não sendo lovecraftiniano
Was I in the end stages of some prolonged form of annihilation? (p. 184)
Dizer que eu li o livro é modo de dizer. Eu engoli. A narrativa é exageradamente fascinante. Resumir a história aqui parece, novamente, ser muito pouco em comparação. De que adianta eu dizer que a expedição era constituída apenas de mulheres, que a personagem principal é a bióloga, que é difícil dizer até que ponto a narrativa dela se mistura com fantasia? Não adianta, é preciso ler o livro.

A história faz a gente sempre querer seguir em frente. São perguntas demais, são mistérios demais pra uma mente curiosa aguentar. Não temos escolha senão devorar o livro pra tentar entender o que diabos está acontecendo lá na Área X.

Detesto terminar essa resenha com uma descrição de Lovecraft, que sempre dizia: "Era um horror indescritível". Mas a verdade é que não vou conseguir traduzir bem o que o livro traz, é uma experiência que eu só consigo incentivar você a ter também.

terça-feira, 11 de julho de 2023

Resenha — At first sight

SPARKS, Nicholas. At first sight. New York: Hachette, 2013.


De repente me vi lendo livro romântico (não me refiro ao período histórico, mas à temática). Se fosse pra já dar um parecer, digo que me surpreendi bem mais do que eu imaginava. Terminei de lê-lo ontem, ás lágrimas. Mas me adianto.

Acho que preciso iniciar falando do autor. Eu já sabia que Nicholas Sparks era um dos maiores autores de romance da atualidade, que livros dele já haviam se tornado clássicos nesse gênero, e que vários deles foram até adaptados pra cinema (com produções bem sucedidas). O que eu não sabia é que de fato ele era bom. Ele é tão bom que, não sei por que, eu achava que "Nicholas Sparks" era mulher, de tão bem que o livro é trabalhado.

Vamos falar um pouco do gênero então. Eu não sou um leitor de livrinhos românticos, eles não me atraem, embora eu curta ver romances de personagens nos meus livros de aventura, ficção, fantasia, etc. Então ler esse livro teve um pouco de descoberta pra mim, que captei alguns padrões dessa área.

Achei interessante como há um foco maior no personagem como pessoa em si. Há uma necessidade de descrevê-los fisicamente, ressaltar traços, e o desenvolvimento deles se dá de maneira principalmente emocional. Em vez de perguntar "O que ele está pensando?", o autor transparece mais a pergunta "O que ele está sentindo?"

O que eu de fato não gosto no gênero são os clichês, acho que é por isso que não me animo com romances: rapaz da cidade grande vai pro interior; mocinho não fala dos seus problemas pra mocinha; mocinha esconde segredos do passado que não são nada demais mas ela tem vergonha de revelar; os dois brigam e eventualmente se reconciliam. Esse é o ciclo de todo relacionamento, e, justamente por isso, é altamente previsível.

Por outro lado, descobri que gosto muito dos dramas e das reviravoltas que esse gênero traz. Nesse ponto, livros de romance são bem parecidos com livros policiais, tudo revolve em torno do mistério: quem fez? Onde foi? Será que ela está falando a verdade? Como fazer pra descobrir? E isso que acaba nos fisgando e tornando a leitura mais dinâmica.
To care for someone unconditionally, for in the end that was what gave life meaning. (p. 315)
Bom, falemos de À primeira vista então, agora. O livro não perde tempo pra mostrar a que veio. É romance que você quer? Então tome. O autor não tem pena de colocar drama logo no primeiro capítulo: amigos, ex-mulher, casamento inesperado, mudança de cidade, gravidez não planejada. Tome drama.

Quanto aos personagens, se em alguns pontos os achei bem clichês (o homem desinteressado por romance, a mulher chorosa e bem mulherzinha, etc.), por outro lado preciso tirar o chapeu pro autor, que não colocou nenhum princúipe encantado ou princesa mágica, mas personagens bem humanos. A gente constantemente vê como eles são de fato e não tardamos a criar simpatia ou, no mínimo, curiosidade por suas histórias.

A cereja bolo, porém, pra esse livro, é que ele não é um romance clássico no sentido de conquista, estando mais próximo de uma história sobre família. E aí sim. Quando o livro de fato dá essa guinada, a história ganha uma força colossal, é como se finalmente estivéssemos encarando a alma do livro.

E as reviravoltas são muito boas, boas daquelas de provocar uma explosão de sentimentos na gente. Rios de lágrimas e olhos incapazes (in-ca-pazes) de tirar os olhos das páginas. Absolutamente grudados nas letras, tentando absorver tudo e sabendo que isso é impossível ao mesmo tempo. E nesse momento não dá pra ter outro pensamento: que livro! Que livro!

Não sei se gostarei de fato de livros de romance, o gênero ainda me dá um pouco de tédio e não me anima muito. Mas não tenho como negar que esse livro aqui vai ficar na minha estante, e até bateu uma curiosidade em ler mais obras desse autor. Se livros românticos em geral são bons eu não sei, mas esse aqui é.

sábado, 1 de julho de 2023

Resenha — We

ZAMYATIN, Yevgeny. We. New York: Dover Publications, 2021.


Será que existe alguma espécie de sexto sentido para livros? Sei que não faz o menor sentido, mas essa é a única explicação. Como pode eu estar simplesmente passeando numa livraria, ver um livro aleatório, do nada, e resolver comprá-lo, só pra depois descobrir que estava diante de uma obra-prima? Sei lá, difícil de explicar.

Estamos aqui diante de uma obra que julgo desconhecida, mas que precede quase todas as distopias que marcaram o século XX. Sim, "Nós" é uma distopia sensacional escrita em 1921 (10 anos antes do clássico "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley — resenhado AQUI), no olho do furacão da Revolução Russa.

O autor tem um nome difícil: Yevgeny Zamyatin e, nesta obra descreveu uma distopia 500 anos no futuro, onde todos vivem sob a poderosa mão do Estado Uno (ou Estado Unido), que rege a sociedade com mão de ferro, tudo pautado pela lógica, pelos números, pela eficiência. Não por acaso, o autor foi considerado um pária pelo regime socialista russo e findou exilado com sua família em Paris.

Falando da obra em si, que contraste com o livro anterior! Enquanto naquele eu encontrei uma narrativa bem água com açúcar, nesse aqui cada parágrafo é cheio de informações e conceitos muito interessantes! Um Estado Único, onde as pessoas não têm mais nomes, são apenas Números, onde as relações sociais são guiadas por lógica, onde tudo é reto e quadrado... fascinante!

Para as pessoas daquela época, "liberdade" seria o mesmo que um "estado de natureza primitivo e desorganizado". Conceitos como "inspiração artística" eram considerados uma forma de epilepsia que não existe mais.
There are no more fortunate and happy people than those who live according to the correct, eternal laws of the multiplication table. (p. 51)
A capacidade de descrição do autor me surpreendeu, quase no nível que me impressionam as descrições de Érico Veríssimo. É uma atenção a detalhes e ao mesmo tempo um desapego a eles. Além disso, autor é muito bom em representar a confusão mental do personagem por meio da própria narrativa, hora abstrata, hora real, hora um pouco dos dois.

Mas o autor é bom demais nisso, de modo que fica confuso e por várias vezes precisei consultar de novo pra de fato entender o que havia acontecido — e ainda assim não ficar claro algumas vezes. Isso se dá também porque o livro é cheio de simbolismos e metáforas sinestésicas, que misturam realidade com fantasia numa mescla tão homogênea que nem sempre dá pra entender o que tá acontecendo.

O livro prende a gente do começo ao fim. Será que o personagem principal, D-503, ele que ama o Estado; ele que é o idealizador e construtor do primeiro foguete, o Integral; será que ele vai mesmo ser seduzido a se voltar contra o regime? Como vai enfrentar os dilemas morais que incorrem disso? Como vai terminar essa história?

Distopias de modo geral me fascinam. Não sei dizer direito o porquê, mas há algo nelas que me deixam com medo, talvez porque, várias vezes, elas trazem aspectos tão próximos da nossa realidade que deixam uma eterna pulga atrás da minha orelha: "E se?"

"Nós" é um livro sensacional. Honestamente acho que nem absorvi todos os simbolismos que o livro proporciona, de tão denso e interessante que ele é. Eu gostei tanto que me deu vontade de saber russo, só pra traduzir esse livro pra português e dar chance de mais gente conhecer essa obra sensacional.

Leitura mais que recomendada e com espaço vitalício na minha estante.

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Resenha — Darth Maul

REAVES, Michael. Darth Maul: Shadow Hunter. New York: The Ballantine Publishing Group, 2001.


Esse é um daqueles livros que você vê na estante da livraria e pensa: "Eoq?! Esse eu levo!". Foi assim que veio parar nas minhas mãos esse livro retratado no universo de Star Wars, abordando um dos personagens que considero dos mais enigmáticos e, por isso, dos mais interessantes. Vamos à resenha.
[...] he had looked into the eyes of the Sith, and he had seen his doom there, as plain as the tattooed whorls that surrounded those eyes [...] (p. 123)
O livro é uma narrativa que acontece cerca de seis meses antes do primeiro filme de Star Wars. Aqui acompanhamos o humano Lorn Pavan e seu andoide I-Five como personagens principais. Ao longo do caminho vão aparecendo alguns Jedi, inimigos, e Darth Maul na verdade é o grande vilão da história, perseguindo os mocinhos até o fim.

Como pontos positivos, confesso que eu estava descrente com a estrutura que o autor escolhera: uns cinco nucleos diferentes de movendo ao mesmo tempo. Vários personagens caminhando em lugares diferentes, agindo como cortes de câmera num filme de ação, com várias pessoas fazendo coisas ao mesmo tempo, mas que no fim estão todas interligadas. 

Mas devo confessar que fui surpreendido com a capacidade dele de concatenação, unindo os diferentes fios numa trama razoavelmente coesa, numa narrativa até bem engajante em vários momentos, que faz a gente ficar curioso pelos diferentes personagens e como eles vao se encontrar em algum momento.

Outra coisa que é de se tirar o chapéu para o autor é que, com milhares de mundo ao seu dispor, o autor optou por focar praticamente toda a história cidade de Coruscant. Esse é um perfeito exemplo de "não é por que vc tem a galáxia ao seu dispor que você vai usar ela toda". Ao concentrar a história, deu mais profundidade à cidade e deixou a narrativa mais condensada, mais firme.

Agora, creio que os pontos negativos são maiores que os positivos. Ora senão vejamos.

A comçear que Darth Maul leva o título na capa, mas não é o personagem principal. Ele certamente é o antagonista, mas isso ainda é muito raso. A gente não conhece ele com muito mais profundidade, nem acompanha seus desdobramentos mais próximos. Ele é um vilão dentro de uma boa estrutura, mas é isso. Ele poderia ser qualquer outro vilão e isso não faria diferença. Além de, em vários momentos, ser um personagem superficial, sem muitos detalhes.

Outro ponto que não curti é que o livro está mais para fanfic de Star Wars do que realmente uma história ambientada naquele universo. O livro está cheio de estereótipos, usando espantalhos de personagens parecidos que vemos em filmes. Me parece que ele estava mais preocupado em escrever o que aquele público gostaria de encontrar do que realmente contando uma boa história.

Se por um lado a estrutura é boa e o autor foi capaz de concatenar bem a trama, por outro, em mais de um momento o livro tem umas forçadas de roteiro pra que todos esses fios soltos se encontrem. São momentos que a gente tá lendo e diz: "Nossa, que coincidência isso acontecer exatamente agora, exatamente com essa pessoa, não?"

E falando em forçada, a coisa descambela de vez mesmo quando o enredo é jogado pela janela. No último 1/3 o livro vai perdendo força, até que no último ato a coisa vai de mal a pior, com personagens mudando suas motivações ou sendo bobinhos demais, indo contra sua própria astúcia ou personalidade. Perto do final o autor sentiu a necessidade desnecessária de enfiar um romance goela abaixo na gente. Não havia clima pra isso, não havia preparação, não havia sequer motivação. Colocou por colocar, deu pra ver, e ficou feio. Isso sem falar no momento que, não mais que do nada, a Padawan se rendeu à Força e ficou instantaneamente poderosa. Ah, mano, fala sério, viu?

No final, eu estava honestamente torcendo pelo vilão, de tão irritado que o autor me deixou com essa falta de zelo pela história. De qualquer forma, esse é um dos livros que, depois que a Disney comprou os direitos de Star Wars, tudo foi descartado e deixou de ser canônico daquele universo.

No fim das contas, achei uma grande pena que um personagem como Darth Maul não tenha sido melhor aproveitado, tendo sido colocado num livrinho genérico de história fraca. Por outro, menos pior que pelo menos esse livro agora não é mais parte do universo expandido de Star Wars. Dos males, o menor.

Crônicas do cotidiano — XIV — NO CENTRO CIRÚRGICO (2)

Senti meu corpo sendo arrastado e depois virado de lado. Finalmente me depositaram em cima de alguma coisa macia. Olhei pro lado, a Laryssa estava lá:
— Amo você — eu disse, sorrindo.
— Shh! Você não pode falar.
E eu dormi.

Acordei não sei quanto tempo depois, minha mãe estava ao lado da cama, a Laryssa tinha saído pra comer. Percebi que eu estava de volta no quarto do hospital. Engraçado, eu não sentia dores, nem cansaço. Aliás, eu não sentia nada da cintura pra baixo.

A cirurgia fora um sucesso, durou cerca de uma hora, e me levaram de volta para o quarto. A anestesia fora uma raquidiana (imobilizou a metade debaixo do meu corpo) e eu estava ali mais existindo do que de fato vivendo. Nada me incomodava, mas eu estava preso ali.

Meus pais estavam no quarto e eu contei um pouco do que aconteceu na sala de operação (o que vocês leram na primeira parte desse relato). E não muito tempo depois a Laryssa chegou. Acho que eram umas 15h quando de fato me senti mais acordado. Daí em diante, não há muito mais o que falar. É um doente, num quarto de hospital, esperando o efeito da anestesia passar pra ver se está tudo bem de fato.

Eu ainda não podia comer nem beber água. A recomendação do médico era que a anestesia tinha que primeiro passar. No meio tempo, o acesso que fizeram na minha mão esquerda era o caminho para meu corpo sobreviver. Tomei bastante soro para manter o corpo hidratado, e de hora em hora me aplicavam sei lá quantos remédios (entre antibióticos, anti-inflamatórios, analgésicos e sei lá mais o que). No dia seguinte, um enfermeiro até comentou que ficou impressionado por minha veia ter aguentado tanto sem estourar. Foram mais de 24h recebendo medicamentos e soro direto.

Demorou bastante pra anestesia passar. Devo ter ficado umas 10h ao todo até conseguir sentir de fato toda a parte inferior do meu corpo. Fui sentindo o pé, depois a perna, e aos poucos os movimentos foram voltando.

Muito se fala de comida de hospital, mas eu não tive do que reclamar. Minha janta foi arroz, feijão, frango, batata, suco e gelatina de sobremesa. Claro que eu só fui comer lá pelas 21h, quando já tinha algum movimento do corpo. De qualquer forma, a comida estava era muito boa. No dia seguinte, no café da manhã, eu nem dei conta de comer tudo (café, tapioca, pão, manteiga, cuscuz, maçã). Mas me adianto, porque antes do café teve uma longa noite pra enfrentar, voltemos às humilhações.

Eu ainda estava usando a mesma bata e touca da sala de cirurgia. Fiquei naquela de hora dorme, hora acorda, hora conversa, hora dorme de novo, nesse ciclo que faz a gente perder a noção do tempo. Só fui saber do horário mesmo lá pelas 21h na hora que fui comer (aliás, a Laryssa teve que me dar comida na boca, já que eu não conseguia sentar o suficiente pra comer sozinho).

A enfermeira da noite constantemente me perguntava se eu tinha conseguido fazer xixi e a resposta continuava sendo não. Confesso que aquilo estava me deixando preocupado, porque estava vendo a hora de ela precisar colocar uma sonda em mim. Será que já não bastava de humilhação? Pedi dela um bico de papagaio (sei lá se é esse o nome ou não) pra deixar do lado da cama e eu tentar depois.

Nessa altura eu comecei a perceber que tem várias coisas que nós tomamos por normal e simples, mas que nem todo mundo tem. Eu não conseguia sentar, não conseguia fazer xixi, não conseguia nem comer sozinho. Apenas vislumbres de realidades que são distantes pra mim, mas que naquele momento pude contemplar. Cirurgias são experiências que deveriam nos deixar, no mínimo, um pouco mais humildes.

Minha narrativa desse dia está confusa porque o dia foi todo confuso pra mim. O quarto não tinha janelas, então eu não sabia dizer se o sol estava se pondo ou não. Além disso, durante a madrugada inteira eu era acordado pra tomar diferentes medicações. Por isso relato três momentos distintos, no que considero ser a ordem cronológica.

Inicio pela primeira vez que tive que levantar. Era 1 da manhã (eu acho), quando o enfermeiro veio novamente pra dizer que eu precisava tentar me levantar.
— O senhor precisa tentar — ele insistia.
No fundo eu sei que ele estava certo: ali era o lugar certo pra tentar. Se qualquer coisa desse errado (ponto abrisse, eu desmaiasse, me desse um siricutico) não haveria melhor lugar para estar do que num hospital cheio de enfermeiros e médicos a postos, com medicamentos prontos para uso imediato.

A minha sorte era o que o enfermeiro fez força pra me levantar. Senti uma dor lancinante me cortar o bucho quando finalmente me esgueirei pra beirada da cama e fiquei de pé. A ideia do enfermeiro era que eu andasse de fato, mas não teve nem perigo. Fiquei em pé por alguns segundos e já estava de bom tamanho, precisei deitar de novo. Mais tarde, quando finalmente consegui dar alguns passos, precisei deitar logo em seguida porque aqueles meros três passos foram suficiente para me deixar com enjoo.

O segundo causo ocorreu não muito depois do primeiro, quando finalmente tentei fazer xixi. Não vou entrar em detalhes, apenas descrevo que pedi para ficar sozinho no quarto. E lá estava eu de pé, ao lado da cama, com um bico de papagaio, falando:
— Funciona pelo amor de Deus, isso é para o benefício de nós dois, amigo. Funciona.
Ele funcionou parcialmente naquele momento, mas era tudo que eu precisava. Suspirei com alívio de quem pensa: "Ainda funciona!"

O terceiro causo foi o último da noite antes de eu acordar no dia seguinte. Era, sei lá, umas 3 da manhã, quando eu precisei de alguma coisa (acho que tinha acabado o soro, algo assim) e a Laryssa foi avisar as enfermeiras. Foi então que ela voltou dizendo, sorrindo:
— Você nem sabe, as enfermeiras estão abismadas que você ainda não tá andando. Tem três mulheres aqui nesse bloco que fizeram cesariana e já estão caminhando nos corredores pra cima e pra baixo.

Uf! Aquele golpe no orgulho. Senti o peso daquelas palavras. Olhei bem pra ela, depois olhei bem para dentro de mim mesmo. "Rapaz, a coisa tá feia desse tanto?", pensei. "Vai ser o jeito encarar, né?". Passados poucos minutos eu disse pra Laryssa:
— Chama lá elas pra me ajudarem a andar.

Alguns segundos depois as duas entram no quarto, junto da Laryssa:
— Quer dizer que o senhor vai tentar andar agora?
Eu olhei bem pra cara delas e falei:
— Antes de qualquer coisa. — fiz uma pausa dramática. — É verdade que as mulheres que fizeram cesareana já tão andando?
Todo mundo riu.
— Sim! Só tá faltando você!
Dei um muxoxo e disse:
— Droga. Então bora.

Foram esses os causos dignos de nota daquela noite eterna. Acho que fui dormir de fato perto de 4 da manhã e acordei pouco depois de 7:30 com o café sendo servido. Recebi alta pouco depois de meio-dia (o almoço estava muito bom lá) e caminhei com passos bem lentos até a recepção do hospital, onde a Laryssa me pegou de carro e fui pra casa.

E essa é a história da minha primeira vez no centro cirúrgico.



segunda-feira, 19 de junho de 2023

Crônicas do cotidiano — XIII — NO CENTRO CIRÚRGICO (1)

NO CENTRO CIRÚRGICO — I

Cheguei perto de 9 da manhã no hospital para internar. Dizer que não estava nervoso seria mentir, mas também dizer que estava muito nervoso é exagero. Estava naquele estado de espírito que ficamos logo antes de encontrar alguém importante.

Àquela altura eu já estava sem comer ou beber água há umas 12h, quando finalmente a enfermeira apareceu no quarto:
— Vamos?
— Vamos.
Despedi-me da Laryssa e acompanhei a mulher até o centro cirúrgico.

Lá, ela abriu uma porta e me conduziu a uma saleta com um armário de vários nichos numa parede.
— Você pode tirar sua roupa e colocar essa bata.
Ela apontou para uma bata verde em um dos nichos. Eu fiz que sim com a cabeça e fiquei esperando ela sair. Ela não saiu. Foi aí que me toquei que o processo de humilhação já havia começado.
Enquanto eu me despia e colocava a bata, ela preparava uma sacola para colocar minhas roupas e também uma touca para eu usar.
— Senhor, está ao contrário — ela disse, quando percebeu que eu havia colocado a bata como quem coloca um terno. Foi só então que lembrei que a abertura dela era para o bumbum.
— Ah sim. Mas acho que não vou conseguir fechar.
— Eu fecho pro senhor.
A essa altura do campeonato a humilhação não me assustava mais.

Ela entou me levou até um corredor de onde outra enfermeira me levaria adiante. Havia um banco comprido atravessado bem no meio do corredor. Uma delas disse:
— O senhor consegue passar por cima?
— Consigo.
Acho que elas estava acostumadas a pacientes doentes por ali, então elas até se assustaram quando eu fui logo colocando a perna por cima do banco:
— Cuidado, cuidado!
Eu sorri e respondi:
— Gente, calma, tá de boas.
Elas riram e eu finalmente fui para a sala da cirurgia.

Ali eu percebi algumas coisas. Primeiro é que se eu não estava nervoso, oficialmente estava. Ao deitar naquela maca estreita, de repente me vi encarando aquelas lâmpadas gigantescas típicas de filmes de terror ou ficção científica. Certamente era ali que as experiências malucas aconteciam. Comentei isso com a enfermeira e ela riu.

A segunda coisa que reparei é que o centro cirúrgico nada mais é do que um clube de comédia escondido. A enfermeira fez um acesso na minha mão esquerda e disse:
— Eita veia boa! Veia de jovem. Quando eu fui paciente fiquei com tanto medo que minha veia sumiu e tiveram que me furar oito vezes.
— Nossa, que alentador! — eu disse.
Outra enfermeira entrou na sala e sorriu também. Comentei com elas que antes não estava tão nervoso, mas que estava ficando.
— É o seu "sistema medroso". Antes você estava num ambiente familiar. — Uma delas explicou. — Lembro de quando fui fazer cirurgia também, fiquei bem nervosa. Quase que eu morro.
Ela parou por um segundo e completou:
— "Morro de nervoso", não por que algo deu errado!
Eu ri junto com elas. Estava começando a seção de comédia, mas ainda não havia chegado o astro principal daquela manhã.

Eu já estava deitado na maca, com acesso na mão, o bipe dos batimentos cardíacos apitando (a nota era Bb eu acho — mas depende da velocidade, porque quando caía pra baixo de 70, descia meio tom) e veio outro enfermeiro animadinho pra colocar o oxigênio pra mim. Eu até comentei da nota com ele e ele ficou curioso, quando entrou o anestesista:
— Seu Gabriel?
— Opa!
— Sou o doutor fulano, vou ser o anestesista. Tudo em ordem?
— Tudo em ordem, doutor. Só quero que esse troço acabe logo porque tô é com fome.
— Vish, pois você nem vai ver passar.
— Estou contando com isso!
Ele sorriu e deu as costas para preparar sei lá o que. Enquanto ele mexia nas coisas, virou-se para o enfermeiro e disse:
— Ciclano, vê aí no Youtube como é que faz pra aplicar anestesia mesmo!
Todos nós rimos e eu disse, ironizando:
— Esse centro cirúrgico é só comédia!
Ele colocou um pouco da anestesia no meu soro e um pouco no meu acesso.
— Essa é só a amostra grátis, depois vamos te sentar pra aplicar a boa.
Mas não passou um minuto (ou passou, sei lá) e eu disse:
— Eita, doutor. Essa é da boa. Já tô vendo o teto girar... — e aí eu reparei que o braço mecânico daquelas lâmpadas de filme de terror também começou a girar, mas eu já não conseguia lembrar o nome "braço mecânico". — Inclusive, esse... esse... tá girando aqui, doutor... é... — e aí eu li as letras que estavam escritas no braço mecânico. — R... K... 277... tá girando...
Tive a impressão de ver o enfermeiro e o médico trocando olhares e rindo um pro outro.

E aí eu já acordei no quarto. A humilhação não acabou, continuo a história depois.



terça-feira, 13 de junho de 2023

Resenha — The Legend of Sleepy Hollow and Rip Van Winkle

IRVING, Washington. The Legend of Sleepy Hollow and Rip Van Winkle. New York: Baronet Books, 2002.


Esse é um daqueles livros que dá gosto de pegar mesmo sem ter lido a história. Capa dura, todo muito bem ilustrado, diagramação perfeita, letras grandes (próprio para o público infantojuvenil) e histórias muito boas de um clássico autor americano. O melhor de tudo, pelo menos para mim, foi o fato de que comprei essa lindeza por apenas 2 dólares.

Comprei esse livro porque queria ler autores clássicos dos EUA e Washington Irving é um perfeito exemplo disso. Ele foi o primeiro no pós-indendência dos Estados Unidos (1780s) a escrever literatura propriamente estadounidense. Antes dele, as pessoas tinham que recorrer a autores ingleses para ter boa literatura. Então dá pra entender porque ele é um clássico americano de fato.

Este livro é composto por três contos, sendo pelo menos um deles bem conhecido: a lenda do Cavaleiro sem Cabeça, que nos traz esse personagem maligno que eu conheci a primeira vez em desenhos animados na década de 1990 (e olha que estamos falando de algo criado duzentos anos antes). É também neste conto que apareceu essa citação aqui que achei muito boa:
Until one day his path was crossed by a being who has caused more trouble for mortal men than all the ghosts, goblins and witches put together—a woman. (p. 28)
Os contos me parecem ter uma pegada infantojuvenil, com personagens até meio caricatos, sem muito desenvolvimento deles. Mas também estamos falando de outra época, então eu não saberia dizer ao certo se essa é apenas minha interpretação anacrônica de uma literatura de outro tempo.

De qualquer forma, a narrativa é muito agradável de ler, as histórias são bem construídas e, o mais interessante, elas de fato dão um pouquinho de medo mesmo. O autor não tem pena de deixar claro que seus contos não são de fadas, especialmente quando vemos o final de alguns, que terminam de modo bem mais sinistro do que se esperaria de algo escrito para um público mais jovem.

Novamente ressalto que essa edição é muito boa porque também é ilustrada, o que dá um prazer diferente pra leitura. Honestamente, deve ser o primeiro livro ilustrado que pego em décadas. Esse é daqueles pra dar pra criança e, depois de um tempo ouvir ela reclamar quando ganhar outro: "Mas não tem figura?!"

Fico muito contente de ter adquirido esse livro por um valor tão irrisório, mas com um conteúdo tão bom. Certamente um livro que ficará na minha estante e, quem sabe, possa ser algo que eu leia para meus filhos ou os faça ter um incentivo a mais para ler. Clássicos sendo clássicos.

sábado, 3 de junho de 2023

Resenha — Pax Romana

BALBÁS, Yeyo. Pax Romana. Barcelona: Roca Editorial de Libros, 2012.


Este é oficialmente o primeiro livro em espanhol que leio. Uma obra com pouco mais de 600 páginas recheadas de uma ficção história magistral. Este livro é, de fato, uma obra prima da ficção histórica de um jeito que eu ainda não tinha visto. Acho que é o tipo de ficção histórica que eu mesmo gostaria de ter sido capaz de escrever. Vamos à resenha.

Comprei este livro em 2013, quando em intercâmbio na Espanha. Salvo engano, eu estava no aeroporto de Madrid, com alguns Euros ainda no bolso que eu precisava gastar, porque se eu voltasse para o Brasil com eles, os mesmos não teriam utilidade nenhuma e eu ainda sairia perdendo se resolvesse fazer o câmbio de volta para Reais. Por isso, foi numa dessas livrarias de aeroporto que eu peguei esse livro aleatoriamente.

Literalmente 10 anos se passaram com esse livro parado na estante. Ocorre que eu até tentei ler ele antes, mas meu nível de espanhol não estava bom o suficiente para que eu pudesse de fato acompanhar a história. Não sei o que aconteceu em 2023 que meu espanhol melhorou e eu finalmente consegui apreciar essa belezura de livro.
En fin, los hombres pueden tener distintas facciones y la piél más o menos oscura, pero la estupidez es universal. (p. 53)
Como já comentei, essa é uma obra-prima da ficção histórica, onde o autor retrata o cotidiano da vida de soldados legionários romanos em meados do século I. Como o autor é espanhol, ele ainda teve a sacada genial de retratar essa história durante um período formativo bem importante para a história do seu país: as Guerras Cantábricas.

O tanto de pesquisa que esse cara fez pra escrever esse livro não está no gibi! É uma monstruosidade de conhecimento para saber detalhes de como funciona não só uma legião romana, mas como as pessoas viviam em Roma, como eram as relações, quais eram as intrigas políticas que permeavam aquela república corrupta e falida, como se tratavam os diferentes graus hierárquicos, como era a vida de escravos, mulheres, crianças, pobres, ricos, estrangeiros... meu Deus... só por ser capaz de reunir tanta informação num livro sem que ele seja chato, o autor já provou sua capacidade.

A história que acompanhamos aqui é de Marco, um jovem romano do bairro pobre de Subura que é adotado por Vitruviano, um grande arquiteto romano, que o ensina o ofício. Marco então vai parar na IX Legião Romana como mensor (uma espécie de engenheiro militar) e ali participa das campanhas militares de invasão à Cantábria (mais ou menos a região norte do que hoje é a Espanha). 

A narrativa é sensacional, cheia de excelentes e inesperadas reviravoltas; os personagens são muito bem trabalhados e todos têm motivações e objetivos muito fortes e claros; as descrições não são cansativas, pelo contrário, são na medida para deixar a gente curioso; os diálogos também são bem trabalhados, não deixando espaço para aquele formalismo besta que tanto permeia a ficção histórica e ainda abrindo espaço para trabalhar conceitos como a retórica romana importada da Grécia antiga.

O livro é cheio de ensinamentos e citações que vêm, de fato, dos romanos antigos. Propositalmente, trouxe apenas aquela citação acima para o meu próprio benefício. É que esse livro é tão legal e cheio de citações tão boas, que não quero registrá-las aqui. Quero dar à minha memória a chance de esquecer o máximo possível para que, daqui a alguns anos, eu possa revisitar essa obra e ler de novo. 

A vontade mesmo agora é adquirir todas as obras desse autor, porque ficou mais do que evidente aqui que o cara escreve bem. O mais chocante pra mim foi saber que Pax Romana tratava-se de seu primeiro romance. Oloco, cara bom demais.

Em suma, livro bom, história boa, autor bom. Vale a pena ler.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Resenha — O homem que queria ser rei e outras histórias

KIPLING, Rudyard. O homem que queria ser rei e outras histórias. São Paulo: Abril, 2010.


Depois que terminei o último livro, olhei para minha estante à procura daqueles livros que a gente compra em promoção por aí, mas que nunca de fato abre pra ler. Não demorou muito e me deparei com essa coletânea de contos de Rudyard Kipling que eu nunca sequer tinha folheado. Vamos à resenha.

Como sempre, começo pela edição. Já comentei outras vezes sobre essa coletânea da Editora Abril. O papel é bom, a diagramação é boa, o texto é bem trabalhado... mas não consigo gostar dessa capa. O toque é um pouco desagradável pra mim, essa sensação porosa que ele deixa nos dedos... não curto, sorry.

Preciso dar uma palavra sobre o autor porque preciso ser honesto e dizer que não conhecia absolutamente nada de Kipling (ou assim eu julgava). Ele é um inglês nascido na Índia, onde viveu desenvolveu boa parte da experiência que depois ele relataria nas suas obras: a vivência do inglês no mundo selvagem e quente da Índia continental, com seus povos nativos e suas florestas cheias de perigos. Kipling se provou um autor prolífico e chegou a ganhar um Nobel de Literatura em 1907.

Pra falar dos contos em si, "O homem que queria ser rei", que abre a coletânea, conta a história de um jornalista que encontra dois vigaristas com um objetivo: viajar para o país do Kafiristão e lá convencer os nativos de que eles são encarnações das divindades deles, e assim se tornarem reis daquele país. 

Enquanto a história é interessante, confesso que a narrativa me foi meio cansativa. Isso, aliás, se tornou padrão em quase todos os contos. Temos alguns muito interessantes (como o que vou falar no próximo ponto), mas outros chatíssimos como "Meu senhor, o elefante". Não sei se é o estilo inglês de falar das coisas, mas em vários momentos precisei parar a leitura simplesmente porque estava cansado dela.

Agora preciso destacar o conto mais interessante dessa coletânea. Foi lendo o título deste conto que eu me toquei que já conhecia Kipling sim. E você que está lendo isso agora também já o conhecia, mesmo sem saber. Falo, claro, do conto "Mowgli, o menino-lobo".
Gostava dele: gostava de sua força, ligeireza, os passos silenciosos e seu constante sorriso aberto; sua ignorância de todas as formas de cerimônias e saudações, e das histórias infantis que contava [...] (p. 84)
Neste conto que mais tarde faria parte do "Livro da selva" (obra de Kipling que reúne as aventuras de Mowgli), temos a narrativa não do menino-lobo, mas do já crescido homem Mowgli. É certamente o conto mais fascinante de toda essa coletânea e não é à toa.

O Mowgli do conto não é um menino, mas homem feito. Suas interações com o personagem principal da história, o guarda florestal Gisborne, se assemelham mais a um Tarzan. Mowgli é um mestre da selva, quase um observador onisciente de tudo que acontece, seus poderes incluem caçar e até mesmo guiar tigres. Ele se move tão silenciosamente que não é possível dizer de onde veio, a descrição é que ele é tão stealth que um fantasma não seria mais silencioso. 

No fundo, talvez o conto seja interessante porque temos um Mowgli com super-poderes, ou, no mínimo, habilidades extraordinárias. Ele é um verdadeiro mestre dos animais da floresta, capaz de guiar javalis, com um grito gultutal ele chama cavalos, etc. Mowgli é, em última instância, uma mistura de sábio e louco.

Por fim, confesso que não fiquei tão impressionado com os contos, embora seja inegável que em alguns deles se vejam características de um Nobel de Literatura. Por outro lado, os contos são interessantes porque revelam um lado da Índia que era ignorado por muitos dos britânicos daquela época: soldados que viviam em condições terríveis, ao mesmo tempo que mostra o domínio que eles tinham sobre os povos nativos. É, portanto, uma obra de contradições e ironias. Vale a pena ler.