sábado, 1 de julho de 2023

Resenha — We

ZAMYATIN, Yevgeny. We. New York: Dover Publications, 2021.


Será que existe alguma espécie de sexto sentido para livros? Sei que não faz o menor sentido, mas essa é a única explicação. Como pode eu estar simplesmente passeando numa livraria, ver um livro aleatório, do nada, e resolver comprá-lo, só pra depois descobrir que estava diante de uma obra-prima? Sei lá, difícil de explicar.

Estamos aqui diante de uma obra que julgo desconhecida, mas que precede quase todas as distopias que marcaram o século XX. Sim, "Nós" é uma distopia sensacional escrita em 1921 (10 anos antes do clássico "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley — resenhado AQUI), no olho do furacão da Revolução Russa.

O autor tem um nome difícil: Yevgeny Zamyatin e, nesta obra descreveu uma distopia 500 anos no futuro, onde todos vivem sob a poderosa mão do Estado Uno (ou Estado Unido), que rege a sociedade com mão de ferro, tudo pautado pela lógica, pelos números, pela eficiência. Não por acaso, o autor foi considerado um pária pelo regime socialista russo e findou exilado com sua família em Paris.

Falando da obra em si, que contraste com o livro anterior! Enquanto naquele eu encontrei uma narrativa bem água com açúcar, nesse aqui cada parágrafo é cheio de informações e conceitos muito interessantes! Um Estado Único, onde as pessoas não têm mais nomes, são apenas Números, onde as relações sociais são guiadas por lógica, onde tudo é reto e quadrado... fascinante!

Para as pessoas daquela época, "liberdade" seria o mesmo que um "estado de natureza primitivo e desorganizado". Conceitos como "inspiração artística" eram considerados uma forma de epilepsia que não existe mais.
There are no more fortunate and happy people than those who live according to the correct, eternal laws of the multiplication table. (p. 51)
A capacidade de descrição do autor me surpreendeu, quase no nível que me impressionam as descrições de Érico Veríssimo. É uma atenção a detalhes e ao mesmo tempo um desapego a eles. Além disso, autor é muito bom em representar a confusão mental do personagem por meio da própria narrativa, hora abstrata, hora real, hora um pouco dos dois.

Mas o autor é bom demais nisso, de modo que fica confuso e por várias vezes precisei consultar de novo pra de fato entender o que havia acontecido — e ainda assim não ficar claro algumas vezes. Isso se dá também porque o livro é cheio de simbolismos e metáforas sinestésicas, que misturam realidade com fantasia numa mescla tão homogênea que nem sempre dá pra entender o que tá acontecendo.

O livro prende a gente do começo ao fim. Será que o personagem principal, D-503, ele que ama o Estado; ele que é o idealizador e construtor do primeiro foguete, o Integral; será que ele vai mesmo ser seduzido a se voltar contra o regime? Como vai enfrentar os dilemas morais que incorrem disso? Como vai terminar essa história?

Distopias de modo geral me fascinam. Não sei dizer direito o porquê, mas há algo nelas que me deixam com medo, talvez porque, várias vezes, elas trazem aspectos tão próximos da nossa realidade que deixam uma eterna pulga atrás da minha orelha: "E se?"

"Nós" é um livro sensacional. Honestamente acho que nem absorvi todos os simbolismos que o livro proporciona, de tão denso e interessante que ele é. Eu gostei tanto que me deu vontade de saber russo, só pra traduzir esse livro pra português e dar chance de mais gente conhecer essa obra sensacional.

Leitura mais que recomendada e com espaço vitalício na minha estante.

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