terça-feira, 9 de março de 2021

Resenha – Cães de guerra

FORSYTH, Frederick. Cães de Guerra. São Paulo: Círculo do Livro, 1974 (?), 198?


Em tese, o livro era pra ter essa capa aí da esquerda; mas, na prática, ele só tem essa da direita aí. Uma capa branca com uma linha verde na barra. Livro velho do jeito que é, a capa de papel que ficava por cima perdeu-se no tempo. É a segunda vez que leio este livro. Em nenhuma delas vi a capa original.

Li a primeira na época do ensino fundamental, na mitológica biblioteca da minha escola (Instituto Batista de Roraima - IBR). Digo "mitológica" porque quase ninguém sabia da sua existência e eu ouso dizer que fui um dos poucos alunos na história daquele lugar a pegar livro emprestado.

A história é o seguinte: um multimilionário inglês descobre uma jazida de minérios num país africano esquecido do mundo. Mas como ele fará pra colocar as mãos nessa jazida? Ele contrata um mercenário (o herói da história) pra dar nada mais, nada menos, que um golpe de estado naquele país, onde então o milionário vai colocar alguém de sua confiança para "governar" o povo, com aquele discurso de "liberdade", "democracia", etc.
Francamente, não sentiríamos ver esse tal Kimba deixar o poder, e o mesmo pode ser dito de seu povo. Um novo governo seria benéfico para a economia do país e benéfico para o povo. (p. 105)
O prólogo serve pra nos apresentar os personagens e ao mesmo tempo nos cativar. Impressionante como somar um time de "heróis" com diferentes especialidades tem um apelo forte pra gente. Ficamos curiosos em conhecê-los melhor, mas, especialmente, em vê-los agir com suas habilidades (tanto sozinhos como em conjunto).

No primeiro capítulo encontrei uma coisa raríssima: descrições que são cativantes e úteis à história ao mesmo tempo. Embora sejam bem detalhistas, não são cansativas. Em primeiro porque são interessantes per si (algo que Stephen King já reconhecia: nós adoramos entender e conhecer melhor o trabalho de outras pessoas, sabe se lá por quê); em segundo porque eu sei que essas descrições serão úteis tanto para situar o leitor como para justificar alguns acontecimentos que virão a seguir. Sinceramente um trabalho de tirar o chapéu, coisa rara de se ver.

Acho que o fato mais marcante do livro é que embora seja sobre Guerra, o que é mais interessante não é o conflito, mas a preparação para ele. Como um milionário faz pra encontrar um mercenário por baixo dos panos? Como esse mercenário consegue angariar todo o equipamento que precisa, incluindo armas ilegais e transporte? Como fazer pra chegar em um país e, pelos céus!, dar um golpe de estado? Tudo isso é narrado de maneira sensacional no livro.

Como já falei, é interessante demais ler sobre o trabalho. Como se faz uma operação militar clandestina, cada pequeno passo, cada movimento, ameaça, como contornar, etc. A gente acaba se envolvendo pelas descrições e como tudo se concatena de modo correto, verossímil.

Nessas preparações, achei interessante ler um pouco sobre como se dá a corrupção: praticamente tudo é feito legalmente. Os contrabandos, por exemplo, são quase totalmente dentro da lei. As coisas são registradas, numeradas, com baixas no governo, taxas pagas, carimbos e tudo mais. É só um pequeno detalhe (uma tábua solta num fundo de um barco, um formulário que ninguém confere, um único suborno) que torna a coisa ilegal. É assim que a corrupção funciona. Um pequeno detalhe, mas que causa um grande estrago.

O conhecimento do autor não só de táticas de guerra ou equipamento militar, mas também de microeconomia europeia é assustador. Esse cara deve ter tido um trabalho do caramba pra se familiarizar com tudo isso. E como estamos na era pré-Euro, até detalhes como transações monetárias e leis comerciais específicas de cada país entraram na história. Uma coisa fantástica, de cair o queixo. O autor está de parabéns.

O autor, aliás, foi um jornalista que viu de perto ações como as descritas no livro quando fez cobertura na África. Tudo isso ajudou a tornar o livro muito verossímil, porque não se trata apenas de pesquisa, mas de vivência. Ele não só leu como era, ele viu, ele esteve lá.

Há uma leve falha no enredo: o protagonista só parece estar em perigo, mas, na verdade, nunca está. Todos os seus planos dão certo. Toda uma cadeia de acontecimentos que não podiam dar errado de jeito nenhum pra funcionar e... bom, nada dá errado. Tudo dá certo. A princípio isso seria uma falha grave, mas eu chamo de "leve" porque o recheio é tão bem feito, que isso pode passar despercebido sem prejudicar tanto a leitura.

Interessante notar que o livro tem vários antagonistas: inimigo óbvio (Kimba, o presidente a ser derrubado), um inimigo do passado (outro mercenário), um terceiro inimigo distante (a Rússia comunista) e, se bobear, até o quarto vilão (o próprio mandante do golpe). Pena que nenhum desses tenha sido explorado para causar verdadeiro perigo ao herói. Aliás, o nome do herói é Cat Shannon.

Vou finalizar essa resenha com uma citação. A leitura é muito boa e eu não teria comprado esse livro depois de tantos anos se não soubesse que é bom. Agora acompanhe comigo.

Cena: os cinco mercenários, sob comando de Shannon, reunidos num bar, jantando e bebendo após o reencontro. Os planos já haviam sido explicados e todos estavam ávidos para a guerra. Ainda havia muito preparo a ser feito, mas, pelo menos naquela noite, eles podiam se dar ao luxo de confraternizar.
"Sentado em sua cadeira e em seu juízo perfeito enquanto os outros ficavam ébrios, Cat Shannon pensava no estrago que ia haver no palácio de Kimba quando soltasse ali aqueles cães. Levantou em silêncio o copo e bebeu à saúde dos cães de guerra." (p. 181)

segunda-feira, 1 de março de 2021

Crônicas do cotidiano – XI

Eu acredito que existem momentos que devem ser vividos, sem que precise registrar com fotos. Hoje eu tive um desses momentos. Porque hoje foi o dia em que conheci Luis Fernando Veríssimo.

Conhecer é modo de falar. Quando a gente lê um bocado do que alguém escreve, a gente conhece um pouco sim da pessoa (um pouco, eu disse). Este trecho estará registrado também no meu diário de viagem, mas, por enquanto, eu preciso garantir que minha memória não vai me trair. Apesar de não ter nenhuma foto, eu preciso registrar esse momento na minha vida.

Era algo em torno de 15:30 quando chegamos na porta da casa. No carro, eu não tinha certeza se teria coragem de descer. Sinceramente, ainda bem que a Lyssa estava comigo para dar aquela força moral.

Descemos do carro. Um muro com trepadeiras e um portão de ferro pequeno nos separavam de duas mulheres que conversavam na pequena varanda. Eram mãe e filha, descobrimos logo em seguida (esposa e filha de Luis Fernando Veríssimo). Elas nos viram chegando e eu tirei coragem sabe Deus de onde pra dizer:

– Boa tarde, aqui é a casa do Luis Fernando Veríssimo?

Mal pude acreditar na simplicidade e na recepção dessas pessoas. Não fosse a pandemia, tenho certeza que estava até agora na cozinha deles tomando um café e proseando sobre a vida. Quem diria, são gente como a gente.

A porta da casa tinha uns ladrilhos que me chamaram atenção desde o começo. Os tijolos aparentes, o verde, as flores... será que é clichê demais falar que: "Tem cara de casa de artista mesmo"? Acho que é. Mas só de pensar que naquela casa morou Érico Veríssimo, que ali ele recebia os outros artistas, folheava seus manuscritos...

Talvez tenha sido isso que me deixou tão emocionado. Acho que nunca eu chegarei tão perto daquela família quanto naquele momento. Finalmente minhas influências literárias, minhas inspirações, meus heróis ganhavam corpo e forma. Não eram mais letras no papel, eram gente, eram vida.

Como pode ser que gente de tão longe tenha tanta influência sobre nós?

Olhando pra trás, quem ler meu primeiro conto ("Um dia de chuva") vai ver que o estilo é uma cópia descarada daquelas crônicas e contos de Luís Fernando Veríssimo em livros como "Comédias para se ler na escola". E isso sem falar de "Personagens não bíblicos e suas histórias", cuja influência de Érico Veríssimo não é apenas reconhecida, como também incentivada.

No fundo, só acho uma pena que esse momento tenha durado tão pouco. Foi o que conversamos lá na porta, separados pela grade, pela distância, mas unidos pela simples vontade de estarmos juntos: é a desculpa pra voltar outra vez.

Obrigado por me receber, Luis Fernando e família. Na próxima vez, eu levo paçoca, vocês vão adorar.