sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Liberdade

                Era o ano setenta e dois da pandemia. Adelaide corria com o menino preso nos braços. Os cabelos pulavam com o vento da noite. O lavrado era um terrível vazio para seus perseguidores; mas para ela, que conhecia aquela terra, era a única salvação. O vento a açoitava e dificultava a fuga. Será que não haveria trégua?

Hoje não, Cruviana”, ela pensava, “por favor”.

Ela fugia. Para onde? Não importava. Onde ainda haveria esperança? Ela não sabia. Mas corria. Corria e a noite voava. O menino chorava e ela dizia:

É só o vento, meu filho. Vai ficar tudo bem.


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Vamos, seus incompetentes! Ela não pode estar longe daqui!

As lanternas nos fuzis varriam o horizonte na procura dela. Os homens estavam nervosos. Eles sabiam que ali o vírus não os encontraria, mas… quem sabe o que mais se escondia por ali? Cada passo era lento; cada pequeno som, um tormento.

Capitão, veja isso! — um soldado apontou para algo no chão.

O que é? — ele se aproximou e viu algo jogado no chão. — Essa mulher ficou doida! Ela deixou a máscara para trás?

Os homens o olharam com a mesma surpresa.

Já chega. Vamos voltar — ele fez um sinal para os outros. — Sem isso ela não vai durar nada. A gente coloca tudo no relatório e manda pro Comitê.

Sim, senhor!

Eles entraram no jipe e o motorista fez o caminho de volta para Boa Vista. A vicinal que cortava a terra indígena era de uma terra fina que o fazia tossir. Ele segurou a tosse, no temor que aquilo fosse entendido como indício de algo mais. A viagem de volta foi um sufoco. O farol iluminava a estrada, mas seus olhos estavam postos na lua que banhava o lavrado.

Pra onde diabos essa mulher foi?”, pensava.


_________


Os capacetes dourados patrulhavam as ruas. Na praça do Centro Cívico, um dos mecanoides abriu a cancela para que o capitão entrasse. Ele os mirou desconfiado. Imunes ao vírus mas… confiáveis? Não tinha quem o convencesse disso. Ele estava nervoso. Não seria tão fácil explicar a fuga da indígena.

Capitão Raimundo desceu do carro. Dos degraus do Palácio do Governo ele viu as ruínas da Assembleia Legislativa. Estremeceu. Esse governo provisório lhe dava arrepios. Mas algo dentro dele o lembrava: “Faça seu trabalho, não se preocupe com essas coisas”. E este motto permitia que ele dormisse à noite: “Faça seu trabalho”. Com o pensamento firme na cabeça, segurou a pasta com o relatório e se preparou para a audiência.

Ao entrar no Palácio, foi levado à sala de descontaminação. Depositou a maleta no chão e abriu os braços. Os jatos de ar e químicos subiram às narinas e queimaram por dentro. Ele fez uma careta, mas não reclamou. Era sua rotina desde que nasceu. Será que houve mesmo um tempo em que as coisas eram diferentes? Ele afugentou o pensamento e saiu da sala:

Destino? — perguntou o mecanoide na recepção.

Gabinete do sub-Presidente.

Nome?

Raimundo da Costa Filho.

Após alguns toques na tela, respondeu:

Espere ali, por favor — e apontou para algumas cadeiras.

Ele sentou-se e viu que a televisão mostrava aquela mesma reportagem de sempre. A mesma propaganda explicando como o estado de pandemia evoluiu. Quem no ano de 2020 imaginaria que o vírus ganharia tamanhas proporções? Se os governos e as pessoas tivessem agido corretamente… quem sabe o futuro não seria diferente?

A reportagem mostrava a centralização do poder nas mãos do Comitê de Preservação da Vida. Aos poucos, tudo foi ruindo. Criado como um gabinete de crise, ele foi tomando proporções maiores, até aquele fatídico vinte e sete de junho quando…

Sr. Raimundo! — a voz do mecanoide o tirou de seu devaneio. — Pode dirigir-se ao gabinete agora.

Obrigado — ele não sabia por que agradecia ao robô. Velhos hábitos.

Subiu as escadas e entrou no gabinete ornado. A secretária limitou-se a apontar para a porta da sala do sub-Presidente. Este fumava um cigarro em pé e sorriu ao vê-lo entrar:

Fala Raimundo! Oxente rapaz, que demora. Sente aí, sente aí.

Bom dia, sub-Presidente — ele disse ao sentar-se.

Ora, mas que cerimônia é essa? — ele dava passos lentos atrás da mesa, cinzas caíram do cigarro sem odores. — Desde quando não me chama mais de Chico?

Foi mal, Chico.

O que houve, rapaz? — ele percebeu que o capitão estava incomodado.

Olha… — a cadeira ficou desconfortável de repente. Ele não olhava para o outro, com a mão afrouxava a gravata. Ele suava e o ar escapava.

Fale de uma vez, homem. Que enrolação é essa?

A desgraça da mulher fugiu, cacete — ele estourou. — Foi isso que houve.

Raimundo, tu tá de brincadeira comigo, né?

Raimundo tirou uns papéis da pasta:

Coloquei tudo no relatório — tirou ainda um saco plástico com a máscara dentro. — Foi tudo que encontramos dela.

Os passos de Chico diminuíram, ele aproximou-se da mesa e apagou o cigarro no cinzeiro. Puxou a cadeira giratória devagar e sentou. Nem olhou para Raimundo quando pegou o relatório para ler. Quando terminou, disse:

Raimundo, isso aqui não tá certo.

Um silêncio desconfortável pairou na sala enquanto os dois homens se encaravam.

Tá, mas eu vou fazer o quê?

Chico olhou firme para Raimundo e disse:

Você vai me fazer outro relatório.

Ué — estranhou. — Como assim?

No outro relatório eu quero a informação de que ela foi encontrada morta.

Tá louco, Chico?

Chico é o caramba — ele sibilou. — O que é que eu vou reportar pro Presidente, hein? Que nosso experimento fugiu? Que a droga da cura do Covid-25 tá por aí no meio do mato? Tu tá ficando doido, Raimundo? Quer me ferrar?

Raimundo ficou teso na cadeira e suspirou. Após um momento de silêncio, disse:

E de que adianta fazer outro relatório?

Pô, Raimundo — ele afastou a cadeira da mesa e recostou-se, tirando um cigarro e um isqueiro do bolso. — Achei que você era mais inteligente.

O outro limitou-se a dirigir-lhe um olhar frio. Chico puxou algumas baforadas e continuou:

Se o experimento deu errado porque fugiu, eu vou precisar de mais recursos pra fazer outro, não acha? — ele suspirou. — Olha, eu sei que não é o ideal, mas é só fazer outro relatório, entende? Você é o chefe da segurança, coloca lá direitinho. Quantos homens foram contigo?

Três.

Pronto, olha aí! Pouca gente. Dá pra resolver isso fácil. Não precisa criar caso.

Eita, Chico…

Parente, tu se preocupa demais. Faz só o teu trabalho, faz.

A frase acendeu o interruptor dentro de Raimundo:

Pô, Chico… você tá certo. Amanhã te entrego o outro relatório, que se dane.

Isso aí! — ele abriu um sorriso de orelha a orelha. — As coisas às vezes são mais simples do que a gente imagina.

Pior que é, a gente que gosta de complicar.

Ambos sorriram. Chico levantou-se e parou em frente à grande janela do escritório. Contemplando a cidade, disse:

Aí fora, Raimundo, tem muita gente contando com nosso trabalho, sabe? — as baforadas nublavam a vista da janela. — Já pensou se tudo acaba hoje, o caos que não seria? Olha a loucura que seria. Diacho, parente, tu não lembra como era antes do Comitê? Tá louco, a gente vivia com medo, não podia fazer nada, tudo era motivo de pânico. Olha aí agora. A gente finalmente tem ordem e progresso nesse país.

Demorou só quase seiscentos anos — exagerou.

Os dois riram. A velha amizade de tantos anos florescendo de novo.

Só tem uma coisa, Raimundo… — Chico disse sem virar-se.

Diga lá.

Tu vai precisar fazer outra coisa.

E o que é? — ele ficou logo desconfiado.

Aquela mulher não vai poder ficar solta assim não — Raimundo ficou tenso. — Tu vai atrás dela e vai encontrar ela pra mim, tá me entendendo?

De costas para a sala, fumando, Chico era uma figura impassível. Raimundo porém sabia que o amigo não havia chegado ao cargo de sub-Presidente à toa. Não eram poucos os motivos para temer. Amizade era um artigo descartável para algumas pessoas que chegam no poder. Não era a primeira vez que Chico pedia alguns serviços fora do comum e Raimundo sabia que não seria a última. Por isso, limitou-se a dizer:

Sim, senhor.


_________


Com a extinção dos Yanomami em 2038 por conta do vírus, o Comitê adotou uma série de medidas protetivas para o isolamento das populações tradicionais. Se por um lado isso era um holofote para o Comitê, apontando para a preservação dos povos ribeirinhos e algumas tribos próximas às cidades, por outro era o subterfúgio perfeito para esconder os campos de concentração. Eis a razão principal de tantos protocolos para acesso às áreas indígenas.

Raimundo pensava nisso enquanto o carro percorria as vicinais naquele final de tarde. Com o mínimo de barulho possível, ele pretendia entrar por uma das rotas alternativas logo que a noite baixasse. Mas a pergunta que estava na cabeça de todos foi feita por um dos soldados:

Mas, chefe, a gente vai procurar onde? Será que ela foi pra aldeia? — questionou. — Mas lá todo mundo conhece ela.

Eu sei, Ferreira — respondeu Raimundo. — Mas é lá que a gente vai ter que começar.

No volante, Aelton ouvia os dois em silêncio. Desde que não lhe mandassem fazer nada além de sua função, ele não se importava. Era um motorista que queriam? Era um motorista que teriam. Agora que não venham inventar outro serviço pra ele. Ele buscava ao máximo ignorar a conversa do capitão e os outros soldados. “Foca no seu trabalho”, dizia para si.

Capitão, o seu contato ainda tá na aldeia? — perguntou Neemias, o outro soldado.

É justamente com ela que eu quero falar — ele fez um gesto com a mão. — Mas chega de papo furado. Aelton, acelera aí porque eu acho que vai chover.

As primeiras gotas já os tinham alcançado quando eles desceram do carro, na entrada da maloca. Como eram oficiais do Comitê, em nenhum momento questionaram suas credenciais. Foram recebidos pelo tuxaua:

Opa! Sejam bem-vindos.

Como está, seu Carlos? — o capitão respondeu, aproximando-se.

Aqui tá bom, tá bom — então foi direto ao assunto. — Vieram passear por aqui, foi? Até sem máscara vieram.

Estamos só de passagem. E aqui ninguém precisa de máscara, não tem doente.

Ah, é?

Pois é.

E vão pra onde?

Ah, isso aí que vamos ver…

Hum.

Seu Carlos.

Diga.

Por acaso a dona Severina tá por aí?

Ele olhou para os quatro com um olhar desconfiado.

Deve tá. Por quê?

A gente queria falar com ela.

Hum — o tuxaua fez um sinal positivo com a cabeça e pausou antes de continuar. — Mas aí eu não sei se de repente ela não tá indisposta, né?

Como é?

Ela já é bem velha… não pode receber visita assim.

Ah, é?

Pois é… De repente tivessem trazido uma coisinha pra ela.

Ah… — o capitão entendeu. Afinal, ambos falavam o mesmo idioma. — É que a gente veio com pressa. Mas veja se isso aqui não dá pra conseguir alguma coisa.

Ele tirou algumas notas do bolso e passou para as mãos do tuxaua.

Ô… vai ter que dar, a gente se vira por aqui — e segurou firme as cédulas na mão. — Podem vir por aqui.

A noite já havia caído e neste horário a maloca quase toda dormia. Há costumes que não se perdem nunca. Ainda bem. Os soldados passaram sob olhares curiosos de alguns, mas sua visita não causou grande comoção. Tivessem vindo durante o dia, a algazarra teria sido incontrolável.

Dona Severina estava deitada numa rede, balançando-se e entoando uma canção que só ela conhecia. Era a mulher mais idosa da maloca, guardava para si tradições que já se perderam de um idioma que ninguém mais queria aprender. Ela estava acordada, mordiscando lembranças para que elas não se perdessem. Quando se é mais experiente, o sono foge da gente. E ela fugia do sono, temendo que numa dessas não acordasse de novo.

Sa'pontîn, dona Severina — o tuxaua cumprimentou quando se aproximaram. Ela se remexeu na rede e viu os homens. Com a voz frágil, sua primeira reação foi dizer:

Kaikusi mîîkîrî narî o'ma.

O tuxaua sorriu. Já estava acostumado aos devaneios da velha. Mas os homens se entreolharam, desconfiados. Aelton perguntou:

O que foi que ela disse?

É coisa de velha doida — o tuxaua balançou a cabeça. — Ela disse “a onça é um animal muito perigoso”. Eita, dona Severina velha de guerra. A bicha tá cada dia mais doida. Mas taí, podem falar com ela. Depois vocês podem dormir perto de mim. Trouxeram rede?

Não viemos pra dormir — respondeu o capitão.

Como não? Vão sair à noite, é? — o tuxaua ficou novamente desconfiado.

Pois é. Tem serviço aí pra fazer.

É?

É.

Hum — apertou as notas na mão de novo. — Como quiserem. Até a próxima.

Obrigado, seu Carlos.

O tuxaua se afastou com passos rápidos. Seja lá o que for que esses kraiwa estivessem prestes a fazer, que fizessem logo e fossem embora o quanto antes. Não gostava deles. Homens como Raimundo ele sentia o cheiro de longe, era gente em que não se pode confiar. As cédulas na mão eram a única coisa que lhe permitiam suportar aqueles quatro.

Putz — disse Raimundo, ao lado da rede de dona Severina. — Pô, acho que esqueci meu celular lá no carro. Aelton, pega lá pra mim?

De boa. Onde tá?

Acho que deixei no porta-luvas.

certo.

Raimundo esperou Aelton se afastar um pouco mais e falou baixo:

Vocês trouxeram? — perguntou aos outros dois.

Tá aqui, chefe — disse Ferreira.

Mas será que ainda funciona? — perguntou Neemias.

A gente só vai saber se testar.

Ferreira tinha uma mochila às costas. Colocou-a no chão e dentro dela retirou uma caixinha de metal comprida. Dentro dela havia uma seringa e material para coleta de sangue. Depois tirou outro objeto: um cubo metálico com um botão em cima.

Vai logo, caramba — Raimundo estava visivelmente nervoso. — Antes do Aelton voltar.

Tá, eu sei — reclamou Ferreira. — Neemias, vai lá enrolar o Aelton, vai. Não gosto que fiquem me apressando.

E eu não gosto que fiquem me dando ordens — retrucou Neemias.

Deixa de drama, Neemias — falou Raimundo. — Só vai.

Ele se retirou a contragosto. Enquanto isso, Neemias pegou o braço de dona Severina e procurava nele a melhor entrada para a seringa. A mulher, sem forças para lutar, cedeu como em todas as outras vezes que eles fizeram isso. Reclamou quando a seringa penetrou sua pele, mas ninguém a ouviu. Com habilidade, Neemias retirou o sangue da mulher.

Raimundo pegou o cubo metálico e apertou o botão. O dispositivo abriu um compartimento na lateral e pôs para fora um vidro circular bem pequeno. Sobre ele, Neemias pingou uma gota de sangue. Raimundo apertou novamente o botão e o vidro recolheu-se para dentro do cubo, que emitiu uma luz esverdeada por alguns segundos.

Tá feito — disse Raimundo. — Ainda funciona.

Fechou — Neemias despejou o resto do sangue coletado num recipiente e guardou todo o material de volta na caixinha.

Então vamo embora. Aproveitar que de noite ela não tá esperando a gente.

Partiu, chefe.

Eles levantaram e deram às costas para dona Severina. Ela mexia-se pouco. O cansaço de anos caindo sobre cada músculo do seu corpo velho. O braço estendido doía, mas ela não falou nada. Não conseguia. E, quando falava, ninguém lhe entendia ou fazia questão de entender. E lá ficou ela, um resquício de um passado que já agora era apenas uma memória. Os homens caminhavam em direção ao carro e ela ficou.

A rede já não balançava mais.


_________


Pra direita! Pra direita! — gritava o capitão. — Cacete, Aelton. Não sabe mais a diferença de esquerda e direita é?

Foi mal, chefe. É que dirigir assim de noite é complicado, né?

Fala menos e dirige mais.

No lado do passageiro, o capitão segurava o cubo metálico. Uma pequena seta no topo dele guiava sua direção. Era seu compasso. O jipe já havia saído da vicinal há tempos, eles agora rumavam no meio do mato.

Capitão — disse Ferreira. — Com esse negócio dá pra ver se a gente tá perto?

Pergunta besta hein, Ferreira — retrucou. — Claro que dá.

Esse caminho aqui tá levando a gente na direção da serra.

Ninguém perguntou nada, Neemias — o capitão estava irritado. — Vocês não sabem calar a boca? Se aquietem aí que uma hora a gente chega. E Aelton, pé na tábua.

Os solavancos do terreno, porém, não permitiam acelerar demais. No horizonte, Raimundo procurava qualquer vestígio de presença humana. Para onde teria ido a mulher? Ele começou a lembrar de Adelaide no laboratório. Não interagiu com ela, mas seu nome foi repetido por vários cientistas. Resistente, boa estrutura corporal, DNA favorável, décadas de testes com sangue indígena, plasmas, vírus… imunidade. Finalmente chegaram no resultado. Um ser humano imune a todas as variações do Covid. Ora, quem diria? Os experimentos foram um sucesso!

Mas ela ainda não era compatível para produção da vacina em larga escala. Era preciso algo mais. Era preciso um ser humano que já tivesse nascido com essa capacidade, não um com uma imunidade produzida artificialmente. Um espécime com um novo DNA, uma nova estrutura, uma nova imunidade.

Será que o menino tinha nome? Não, melhor não. Ele sacudiu esse pensamento da cabeça. Não era um menino. Era um espécime. Há uma diferença entre uma pessoa e uma… coisa. Não era difícil. Afinal, o governo sabia muito bem o que fazia, ele tinha direito sobre a sua propriedade. Não é dele? Deixa fazer o que quiser.

Só tô fazendo meu trabalho — ele murmurou.

Como é, chefe? — perguntou Aelton. O capitão saiu do seu devaneio:

Nada não. Concentra aí — então a luz no topo do cubo metálico piscou com mais intensidade. — Agora sim a coisa vai ficar boa. Finalmente! Rapaziada, prepara aí, que estamos perto.


_________


A correria surda ocorria dentro da mata fechada. Os homens desviavam das raízes no chão, mas era quase impossível não fazer barulho. Avançavam devagar. Na mão do capitão, brilhava a bússola. Os rifles estavam preparados e cada um deles olhava ao redor com os óculos de visão noturna, na tentativa de encontrar a mulher.

Não havia ali perto nenhum traço de civilização. Teria ela ficado louca de vez? Embrenhou-se na mata para morrer? A floresta os observava também. Na copa das árvores os animais pareciam grandes sentinelas. Os homens tentavam fazer silêncio, porém a mata não tinha este compromisso. Os sons da noite se proliferavam. Porque havia invasores ali.

Pessoal, pessoal! — o capitão sussurrou. — Vocês estão ouvindo isso?

Eles pararam e tentaram ouvir a noite. Sim. Eles ouviam.

Capitão… será que é mesmo? — perguntou Ferreira.

Olha eu tô achando que é isso mesmo — respondeu Neemias. — É choro de criança.

Bora lá, bora lá! — ordenou o capitão.

Eles correram apressados, o volume do som aumentava, estavam na direção certa. O terreno irregular os atrapalhava, mas seguiam decididos. A essa altura já estavam no pé da serra. Conforme se aproximaram, ouviram:

Shh, shh… vai ficar tudo bem. Não chora, não chora — seguido de uma melodia simples, um acalanto. O capitão fez um sinal com a mão para estancarem o passo. Com outro comando, eles seguiram bem devagar na direção. Não havia mais dúvidas, era Adelaide. O choro havia cessado.

A gente vai fazer o seguinte — o capitão sussurrava o mais baixo possível. — Neemias pega o flanco da esquerda, Ferreira o da direita. Eu vou no centro. Alguém tem uma visão clara do local?

Chefe, acho que é uma caverna — disse Ferreira.

Ótimo. Melhor impossível. A gente já deve estar na serra mesmo. Todo mundo entendeu o que é pra fazer?

Positivo, capitão.

Copiado.

Eles pisavam firme, os rifles prontos. Assim que chegaram na porta da caverna ligaram as lanternas das armas e gritaram:

Parada aí!

Pro chão, pro chão!

Ah! — gritou a mulher, abraçando o filho.

A cena era deplorável. A terra na caverna estava úmida, a mulher tinha as roupas rasgadas. A criança mamava. Adelaide estava magra, os cabelos desgrenhados. Ela implorava:

Por favor! Eu não! Aqui não!

Os homens a olharam em silêncio. Não era costume falar com ninguém. Com os rifles erguidos, Ferreira e Neemias aguardavam as ordens do capitão. Este viu a situação que a mulher estava. Lembrou-se dela no laboratório, lembrou das promessas dos cientistas e lembrou também do sub-Presidente. O rifle na mão, o dedo coçava para apertar o gatilho. Mas que coisa! Por que ele hesitava? Os homens já estranhavam a demora.

Pra que diabos você foi fugir?! — ele gritou, vomitou as palavras. O som ecoou na caverna e a impressão que eles tiveram era que o mundo inteiro os ouvia. — Não dava pra ficar quieta no seu lugar?

Vão matar meu filho! — ela gemia e chorava. Sua fala era cortada, arrastada. Tinha um sotaque de quem não falava português direito.

E daí? Depois tu faz outro, imbecil — ele retrucou, o rifle empunhado, a luz no rosto da mulher. — Essa daí é a cura pra nossa doença! Vai deixar todo mundo morrer por causa de uma criança?

Que doença? — ela falou, confusa.

Como assim que doença, sua índia suja? — o capitão cuspia enquanto falava. — Não tá vendo o mundo inteiro morrendo por causa do Covid?

Pelo amor de Deus! — ela gritou. — E meu filho tem a ver com isso? Eu tenho ver com isso? Por que não deixa a gente em paz?

Vocês são a cura, sua idiota! Vocês são a cura! Vocês são imunes.

A expressão de Adelaide aos poucos tomou nova forma. Da confusão, passou para um súbito entendimento e devagar caiu numa risada. Ela ria baixinho, seus ombos balançavam. Então cresceu, cresceu, até se tornar um riso convulsivo que fez a criança soltar o seio e começar a berrar de novo. Isso só a fez rir mais alto.

Capitão, que merda é essa? — questionou Ferreira.

Raimundo limitou-se a levantar-lhe a palma da mão.

Vocês são é burro — ela disse após se recuperar da crise de risos. — Tá bom, tá bom. Pega. Leva meu filho de volta, leva. Ele não tem cura. Vai. Pode levar.

Agora ninguém precisa mais dele — disse Raimundo.

É claro que não precisa! — Adelaide ria. — Ninguém cura, kraiwa idiota.

Quem aquela porca achava que era pra falar com capitão Raimundo dessa forma? Que mentiras a cabeça desvairada dela ainda seria capaz de produzir? Raimundo começou a ver o ridículo da situação. A mulher estava acuada, sem chance de fuga. Era uma fugitiva e ladra, roubou propriedade do governo. E, pra piorar, estava louca. E ali estava ele, o chefe da segurança discutindo com uma mulher que ele viu algumas vezes na vida. Argh! E aquele moleque não parava de chorar!

Capitão! Qual o comando? — gritou Neemias, superando o choro da criança.

Vocês acabaram meu povo — gritava Adelaide. — E pra quê? Hein? Acham que eles querem melhorar? Até eu que “não sou gente”, sei. Porque eu sei.

Aquilo era um pandemônio. Os homens pediam ordens. A mulher gritava coisas sem sentido, o menino chorava. Estava um calor dos infernos, o suor escorria dentro da roupa, os mosquitos tentavam entrar por qualquer orifício no corpo.

Cala a boca! — gritou o capitão. — Pra mim já chega!

Um clarão, um som retumbante. Outro estampido e um rosto contorcido de dor. O sangue corria, a mulher ainda estrebuchava. Cacete. Pra quê essa algazarra toda? A mulher cuspia sangue. Outro tiro. E o silêncio ensurdecedor, que doía nos ouvidos deles. Agora que tudo acabou, Raimundo finalmente conseguia pensar direito.

Os dois homens olhavam para o chefe. Mudos ante a situação, entreolharam-se em seguida. Ninguém teve coragem de se mexer. Esperavam a direção do capitão. Era o que eles sabiam fazer melhor: seguir ordens. Abaixaram os rifles, a única luz sobre o corpo da mulher era a lanterna do capitão. Ela estava caída por cima da criança. O cheiro do sangue subia às narinas. O capitão tossia.

Se as palavras da mulher tiveram algum efeito em Raimundo não sabiam. Se ele a conhecia de outro lugar, tampouco. Eles mesmos estavam acostumados às mentiras daqueles que estão próximos à morte. Falam qualquer coisa, na vã expectativa da redenção. Não há redenção. Apenas o que sempre foi. No fundo, isso os tranquilizava, e a tensão dentro deles começava a esvanecer. Não era preciso ler demais a situação. Era apenas o seu trabalho. Não era um trabalho agradável, mas era necessário.

É por causa desse tipo de coisa, que nosso Brasil vai pra frente. E aquilo também tranquilizava Raimundo. O último sangue Macuxi fez um igarapé que tocava a bota do capitão. O rifle ainda empunhado. Os homens ainda estranhavam sua reação. Ele também estranhava. Que diabos? Eu, hein. Balançou a cabeça e saiu da caverna. Os homens o seguiram. De repente sentiu-se sufocado, a floresta era uma enorme prisão. Sem falar nada, correu. Cada passo aumentava sua ofegação, a floresta os queria prender, mas ele precisava fugir, estava cada vez mais difícil respirar. Precisava sair de uma vez por todas daquele emaranhado sem fim que o impedia de seguir em frente. A umidade do ar era terrível, ele precisava de ar, precisava respirar. Tosse dos infernos! Cada galho, cada raiz, cada folha era uma afronta. Que morressem todos!

Quando deu o primeiro passo fora da floresta, viu à distância Aelton fumando ao lado do jipe, na vicinal. Respirou aliviado. O vento do lavrado empurrava para longe os cheiros da escravidão da floresta. Bom mesmo era ser livre. Livre como o vento. Raimundo corria, precisava da liberdade, precisava voltar e dizer que havia cumprido sua missão, que seu trabalho estava feito, que não era mais preciso se preocupar. Ele fugia. Para onde? Não importava. Para onde ainda havia liberdade? Ele não sabia. Mas corria. Corria e a noite voava.

Conto publicado no Volume II da Coleção Literatura de Circunstâncias (Editora da UFRR, 2020), distribuição gratuita.

Contaminação

Ele estava no mercado, a poeira de uma prateleira o fez espirrar e começar a tossir.

As pessoas o olharam com desconfiança. Então quando menos esperava uma multidão o cercou. Bastou outro espirro. Enquanto fugia, gritava:

– Eu tenho rinite! Eu tenho riniteeeee!

Microconto publicado no Volume I da Coleção Literatura de Circunstâncias (Editora da UFRR, 2020), distribuição gratuita.


sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Resenha - Se um viajante numa noite de inverno

CALVINO, Ítalo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Círculo do Livro, 1979.


Ah, meu povo, aqui estou eu de volta. Os moderninhos-contemporâneos que me perdoem. Mas que livro chato do caramba. Putz grila. Esses é daqueles que eu fico com raiva de ter perdido meu tempo lendo, porque ele é mais uma afirmação teórico-artística do que um livro em si. Soubesse disso, teria sugerido ao autor que escrevesse um artigo científico e não tivesse me feito gastar dinheiro com essa bobagem que ele chama de livro. Já deu pra ver que não gostei, né? Vamos à resenha.

O livro começa de um jeito muito legal. Foi o que me enganou e fez eu adquirir essa obra. Começa com o autor falando direto com o leitor, numa quebra da quarta parede que não é uma mera anedota, mas parte essencial da obra.

Porém, no começo o autor quer ser tão diferentão com sua abordagem metalinguística que fica constantemente voltando a isso em vez de se concentrar em contar a história direito. Aí sabe o que acontece? A leitura é uma maratona! A gente tem que ficar constantemente atento aos lapsos de história que o autor se digna a contar. Aff. Extremamente cansativo. Não leio livros pra isso.

O que me dói é ter que aguentar trechos como esse:
"Ou talvez o autor ainda esteja indeciso, como de resto você mesmo, Leitor, não está certo do que mais lhe agradaria ler" (p. 16-17)
Ahh, mas eu sei eu que me agradaria ler sim. O que eu sugiro é que o escritor primeiro se decida e depois coloque no papel aquilo que eu quero ler: um livro, não divagações. E eu sinceramente gostaria que o autor descesse um pouco do pedestal em que ele se coloca na sua relação com o leitor: 
"Você já leu umas trinta páginas, e a história já começa a apaixoná-lo." (p. 27). 
É um festival de presunções que não cansa de me surpreender.

A melhor maneira (pra não dizer a única) de ler esse livro pra aguentar até o final é considerar cada capítulo como um conto. Embora o autor insista em chamar de romance, se você olhar para o livro como uma antologia, fica uma leitura bem mais passável (porque dizer "agradável" seria exagero).

A estrutura do livro é na verdade um apanhado de várias histórias. Começa com uma, mas logo no próximo capítulo torna-se outra totalmente diferente, como se fosse parte de outro livro. A grande ideia é realmente criar um labirinto de tramas que não se conectam, mas funcionam como diferentes inícios de romances. 

A única história realmente cativante é a do Leitor com a Leitora, que é uma meta-história de um leitor que comprou o livro que eu estou lendo. Esta história acaba sendo o único alívio e o fio condutor de todo o livro (ainda que bem tênue). E há uma razão de ser para ela ser cativante: é que ela é a única bem espaçada.

Quero dizer, enquanto as outras histórias têm continuações em capítulos alternados, elas estão longe demais uma da outra para que nós consigamos captar com facilidade o fio da meada e dar continuidade de modo agradável à leitura.

Essa ideia do autor de inserir diferentes histórias foi até interessante, mas na prática não dá certo. Porque quando a gente lê, a gente investe nosso tempo e intelecto naquilo. Então é muito triste ver-se investido em algo pra, no meio do caminho, sermos puxados para outro lugar, sem termos a oportunidade de nos darmos por satisfeito antes. Esta abordagem feita com parcimônia é até boa, mas não foi o caso aqui.

Ah, e de vez em quando o autor cai num lirismo em prosa. Oh boy. Novamente, é o que tenho dito. Isto feito com moderação poderia ser bom (bolas!, Érico Veríssimo faz isso direto). Mas depois de certo ponto a gente já está cansado demais da leitura pra aguentar trechos como:
"Não acredito ademais que uma tentativa de descrever meu estado de espírito seria satisfeito por uma metáfora, por exemplo, a dilaceração ardente que uma flecha causa ao penetrar na carne nua do meu flanco;" (p. 127)
Quando eu leio trechos como esse, meu pensamento é: "Pra quê eu vou me investir emocional e intelectualmente nessa história, se eu sei que daqui a pouco ele vai ignorar ela e dar continuidade à história do Leitor e da Leitora – que é a que realmente me interessa?"

Acima eu disse que o único jeito de aguentar o livro é encarando-o como um livro de contos. Mas pra falar a verdade, nem isso é suficiente. Porque até num livro de contos há um estilo ou temática que envolve todos os textos daquela antologia (pelo menos assim o é nas boas antologias). E isto não acontece aqui. Talvez na tentativa de mostrar sua erudição o autor envereda por diferentes estilos e temas, mas fica tudo muito solto e, repito, cansativo.

O último capítulo acho que foi o mais interessante, mas não no sentido de narrativa, e sim numa espécie de ensaio sobre o ato de ler e a relação livro-leitor. Como disse, os diálogos do capítulo são pobres e a trama praticamente insignificante, porque fica evidente que o que importa são as reflexões que o autor faz sobre estes temas que citei.

Que o autor domina o que está fazendo é evidente e, neste ponto, devo concordar que o livro é bem trabalhado, porque o autor atinge aquilo que pensou em fazer: uma bagunça literária pra atacar a ideia do próprio livro como romance e sua construção/arquitetura. Conseguiste, Calvino, ficou uma bagunça.

A verdade é que talvez a arte contemporânea não seja pra mim. E graças a Deus por isso! Porque não consigo separar este estilo de uma abordagem elitista da arte. E não tem nada que eu deteste mais que isso. A arte deve ser para todos. Ela não precisa se rebaixar ao gosto da massa, evidente, senão descamba nas porcarias que também vemos por aí. 

Porém essa tentativa desesperada de apontar para si mesma e mostrar-se como "elevada" me dá engulhos. A boa arte é aquela que enriquece tanto aquele que tem doutorado como o analfabeto. Por mais que eu compreenda intelectualmente as opções que o autor fez com este livro, não tenho medo de dizer que, enquanto abordagem literário-acadêmica, é excelente; porém enquanto arte, limitada a alguns círculos que valorizam esse tipo de baboseira.

Talvez minha amargura tenha tomado o melhor de mim, porque não é justo dizer que isto não é arte. Eu sei que é. Mas é uma arte que eu sou incapaz de apreciar de modo adequado. Porque pra apreciar isso, ele toma o que é mais precioso para mim: meu tempo. Em vez de buscar sentidos mais profundos que só a literatura pode carregar, o autor usa a literatura para apontar para si mesma. 

Sinto muito, pra mim arte verdadeira não funciona assim. A arte é um meio, não um fim.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Resenha - Breve história da literatura brasileira

VERÍSSIMO, Érico. Breve história da literatura brasileira. São Paulo: Globo, 1996.


"Para infelicidade dos ensaístas e felicidade dos romancistas, os fatos da vida, como os caprichos da alma, recusam-se a ser rigidamente arquivados e rotulados." (p. 15)
E assim já fica claro que este não é um mero livro acadêmico. É, meu povo, Érico Veríssimo sendo Érico Veríssimo. Este foi o único livro que ele escreveu em outro idioma (inglês), porque na verdade trata-se de uma coletânea de palestras que ele deu quando morava nos EUA (1943). Organizado o material, tornou-se este compêndio bem interessante sobre a nossa literatura.

É a primeira vez que leio um livro de história da arte (seja da literatura, da música, etc) que tem sabor. Não me peçam pra explicar, mas é exatamente isso. Dá gosto de ler, porque não se enumeram as coisas, tampouco se mencionam, mas se mostram de um jeito único que só Érico Veríssimo mesmo pra conseguir fazer.

Na verdade não é bem uma história da literatura brasileira. Está mais para uma história do Brasil, pincelando aí seus reflexos na literatura do país. É preciso lembrar a plateia para quem estes textos foram escritos originalmente: estudantes norte-americanos e de outras partes do mundo para quem o Brasil limitava-se a Rio de Janeiro, matas e cobras.

É estranho ver como ele apresenta a história, entretanto. Porque ao mesmo tempo em que ele se diz um realista, alguém que quer mostrar a sociedade do jeito que ela realmente é e talz, não dá pra negar que tudo que ele fala tem traços de um romantismo muito forte. E acho que essa é a grande beleza do que ele escreve, porque o brasileiro é assim. Ora somos terrivelmente frios e duros com a realidade ao nosso redor, ora nos pegamos (feito bestas) a sonhar com um Brasil melhor.

Outra curiosidade legal sobre este livro. É o único da série que tem fotos do autor. Fiquei muito contente em ver o estimado mestre nessas fotos de época. Isto se deu porque, enquanto a autoria é mesmo de Érico Veríssimo, a tradução é de Marta da Glória Bordini, que deu alguns retoques nesta edição.


Veríssimo não tem pena de falar aquilo que todos nós pensamos quando estudamos literatura brasileira: que os textos dos escritores antigos (do século XIX pra trás) eram chatos pra caramba! Graças a Deus houve uma voz sincera pra falar isso. 
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"Se vocês me perguntam se os escritores brasileiros das duas primeiras décadas do século XIX eram excepcionais, responderei que eram aproveitáveis." (p. 47)
Como era natural de todos que viveram no eixo sul-sudeste do Brasil (céus! É assim até hoje), a Amazônia ou o Norte de modo geral nas abordagens de Veríssimo limita-se a exemplos anedóticos e estereotipada. Mas, em sua defesa, é bem verdade que o Norte só foi produzir grandes escritores (ou pelo menos torná-los conhecidos) já em meados do século XX. 
"O Amazonas é uma espécie de úmido inferno Verde repleto de surpresas, prodígios e terrores." (p. 142)
Ele usa o argumento da intransponibilidade da floresta para explicar a falta de literatura amazônica. Mas é preciso lembrar que esta era a visão geral do Brasil daquela época. Se pensarmos em Villa-Lobos, por exemplo, que foi um grande marco na nossa arte e um importante representante do Brasil mundo afora, este era também o seu exato pensamento! Coisa que ele deixou claro em várias ocasiões.

Érico Veríssimo dá grande importância para Aluísio de Azevedo como um dos primeiros escritores brasileiros a retratar a sociedade como ela realmente é, em vez de perder-se em romantismos ou idealismos que tanto caracterizaram os estilos precedentes.

É engraçado que Veríssimo chama a si mesmo de "poeta frustrado" não apenas na sua biografia mas em vários outros livros. Frustrado ou não, a verdade é que ele era um grande admirador da poesia, fato este que é corroborado pelo tanto de tempo que ele gasta neste livro dando conta de diferentes poetas. Claro, muitos deles bem importantes pra nossa literatura; porém nem na escola eu ouvi falar desses caras com tanta paixão como este homem os retratou.

Ele avalia que a enquanto a Primeira Guerra foi um marco pra toda uma geração de poetas e ficcionistas europeus e americanos, para o Brasil não representou quase nenhum impacto pois, o país participou da guerra apenas pelos jornais.

Admiro a coragem de Érico Veríssimo em arriscar falar da literatura brasileira contemporânea (a ele, claro). É muito difícil avaliar com clareza quem são os grandes autores de uma época estando nela. Mas o esforço é admirável. Ele fala de Monteiro Lobato com especial carinho. Penso que se reconhecia nele de certa forma. Ele também fala repetidas vezes dos Andrade (Mario e Oswald). Interessante notar que o autor não menciona apenas autores de literatura, não sei se por estar proferindo essas palestras num contexto acadêmico. Mas ele cita nomes como Gilberto Freyre, Afonso Arinos e Sérgio Buarque de Holanda.

Ah! Mas uma coisa que impressiona é como ele realmente conhece os autores de seu tempo! Tudo bem que era outra época, onde era mais fácil encontrar os autores, uma vez que o livro ainda era uma das principais fontes de conhecimento (senão a principal). Além disso, vale lembrar que a década de 1920 não foi uma década qualquer para a arte brasileira como um todo.

Novamente me deparo com o teste do tempo e vejo que foram poucos os autores que sobreviveram. Na verdade, começo a desconfiar que Érico só estava fazendo a camaradagem de tentar citar o máximo de escritores vivos que conhecia, tanto pra preencher a palestra como pra prestigiar os colegas (não sei se por bondade mesmo ou para fins "diplomáticos").

Na avaliação de Veríssimo, a década de 1930 foi a década da "maturidade literária" do Brasil, em que os autores conseguiram se desvencilhar dos fantasmas da Europa (séc XIX) e também domar o leão da Arte Moderna (pensando na semana de 1922).
"Acho que o grande mural do Brasil está sendo pintado hoje, não por um único artista, mas por um grande número deles." (p. 141).
Fiquei triste que ele não cita ele mesmo nesse apanhado histórico, fiquei curioso em ver como citaria suas obras. Por outro lado, aponta para sua humildade e eu posso ficar tranquilo porque anos mais tarde ele escreveria sua autobiografia.

Por fim, teve só mais um detalhe que achei bem legal. Como o livro é de história, eu não poderia deixar de registrar aqui alguns achados arqueológicos que encontrei neste livro. Veja por si mesmo, não falarei mais nada. Deixarei que as gerações futuras tentem decifrar para que servia isto bem aqui: