sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Resenha — Atire no pianista

GOODIS, David. Atire no pianista. Porto Alegre: L&PM, 2007.


O ano de 2023 não poderia ter começado com melhor estilo. Não é a primeira vez que falo de David Goodis por aqui. Este mestre da literatura noir (literatura da noite, da sujeira, da sarjeta, dos miseráveis e dos gangsters dos anos 1920-30) caiu na minha estante pela primeira vez há um bom tempo e não saiu mais. 

Além de Atire no pianista li e resenhei A garota de Cassidy e A lua na sarjeta. Depois destes, vai ficar faltando só Sexta-feira negra pra oficialmente ter lido todas as obras dele traduzidas para o português (pelo menos até onde sei — aliás, todas publicadas pela editora L&PM).

E falando da editora, devo confessar que parte do que me apaixonou nestes livros de Goodis foram as edições pocket book. Meu Deus, que troço legal de ter e levar por aí pra ler. Super prático, não ocupa espaço, e surpreende como um livro tão pequeno pode carregar uma história tão boa.

E já caindo no enredo em si, putz, que história boa do cão. Devo confessar que o começo dos livros de Goodis sempre me parecem um pouco iguais, cheios de clicks típicos do gênero: a rua suja, a taverneira de seios fartos, o ambiente cheirando a cigarro, o personagem cansado. Parece que escreve pra identificar o gênero, não necessariamente pra escrever uma história — o que, na verdade, é uma técnica válida de escrita porque o livro de cara já mostra ao leitor para que veio.

Por outro lado, estou tão acostumado a livros de Goodis que vão direto ao ponto, que trazem um ar de urgência, que, de certa forma, têm pressa (assim como a fome e o frio têm), que foi uma grata surpresa encontrar neste livro uma narrativa que não corre, que ainda tem a mesma sensação de perigo e urgência, mas ainda assim me permite desfrutar da leitura com um pouco mais de gusto.

A história é fascinante e horrível ao mesmo tempo, como o melhor da literatura noir. Perto do fim tem algumas forçadas do enredo, mas nós estamos de tal forma fisgados pela história eletrizante que nossa suspeição da descrença está tinindo e essas forçadas pouco importam.

Aliás, no final o ritmo é vertiginoso, envolvente, tudo passa rápido porque nós devoramos as páginas e, quando vemos, já acabou, é o fim. E não temos escolha senão fechar o livro — porque já não há mais o que ler — e deixar aquela história reverberar na nossa cabeça. Literalmente fechei o livro e fiquei olhando para a parede, encarando o vazio de morte que a história me fez ver.

O modo como Goodis constrói tudo é tão bem concatenado, tão bem descrito que parece que não havia outra escolha para os personagens senão fazer exatamente o que fizeram, do modo que fizeram. Nos sentimentos mergulhados naquele mundo. Aliás, a descrição de Goodis sobre o que é praticar piano é tão exageradamente precisa que não tive escolha senão registrar aqui:
Trabalho, trabalho e mais trabalho. (p. 97)
Não me resta escolha senão dizer que Atire no pianista é um exemplo de bom livro: uma história simples mas bem contada que vale mais que qualquer história complexa, cheia de meandros e invencionices. Às vezes, basta falar do que há de mais fascinante, simples e terrível: a própria vida.

domingo, 1 de janeiro de 2023

Crônicas que eu não deveria publicar — I

A sincera impressão que tenho de Manaus é que ela se tornou uma cidade onde as pessoas se acostumaram com o que é feio, sujo e desorganizado. A tal ponto que tudo é visto como normal, como se todo lugar fosse assim e não há razão para reclamar de Manaus, tendo em vista que todas as outas cidades são assim: ruas sujas e mal cuidadas, pinturas descascadas, fedor. Manaus é uma metrópole no meio da selva amazônica e, com isso, ganha todos os brindes da região Norte do Brasil: calor, mosquitos e chuva. Tudo que é preciso pra deixar uma cidade caótica ainda pior. 

Disto resulta em uma cidade onde viver de modo desordenado é comum. É comum que os carros simplesmente parem no meio do trânsito pra ver alguma coisa. É comum que os motoristas usem os semáforos apenas como sugestão, não obrigação. É comum que os pedestres tenham que implorar para passar na faixa de pedestres e que os carros parem como se estivessem fazendo um mero favor.

Sobre o trânsito, tenho uma hipótese sociológica a considerar, mas antes deixe-me falar sobre o trânsito.

Em Manaus todos são extremamente agressivos. Dar o pisca pra trocar de faixa ou dizer que vai dobrar é um costume que só os turistas têm; quem é de casa, faz questão de atrapalhar o outro. Se você der o pisca pra trocar de faixa, o carro ao lado vai acelerar pra você não conseguir fazer isso. Se você não andar colado no carro da frente, quem está do lado vai avançar e quase bater no seu carro, tudo pra ganhar aquela posição. Há um constante jogo de poder no trânsito manauara.

E daí minha hipótese sociológica: a agressividade no trânsito desta cidade se dá pela frustração coletiva que os condutores têm na sociedade em geral. Minha premissa é que os cidadãos deste local se sentem tão impotentes que na oportunidade que têm de exercer domínio (no trânsito, com carros), eles o fazem. Não porque precisam fazer isso, mas pela satisfação que encontram em passar de outra pessoa, de ganhar vantagem em cima de alguém que eles nem conhecem e provavelmente nunca tornarão a ver.

O condutor de Manaus está no meio de uma cidade feia, suja, caótica, e é no trânsito que ele encontram uma oportunidade para, pelo menos por uns meros segundos, sentir que está no controle de alguma coisa. São aqueles segundos de domínio e agressividade que fazem o manauara suportar sua própria cidade.

Seria isso verdade em todas as grandes cidades? Não sei. Já andei em outras grandes cidades e não encontrei o que encontrei aqui, pelo menos não em todas. Por outro lado, nunca dirigi em São Paulo. Seria isso uma característica das grandes cidades? Se sim, por que nem todas são assim? Se não, por que Manaus é assim? Seria essa uma questão estrutural ou pontual? É um evento local? Regional? Nacional?

Soma-se a isso a caboquice. Mas aí se torna já uma outra questão, porque a caboquice não é exclusiva de Manaus. Caboco é um dos pontos fortes dos interiores do Brasil e regiões como Norte e Nordeste. E, veja bem, não me refiro ao caboclo, mas sim ao caboco. Mas isso é assunto para outra crônica.

Por enquanto, fiquemos com isso: desordem e agressividade como ferramenta para encontrar o sentimento de ordem. Sentimento este que nunca se mantém, evidente, uma vez que não é assim que de fato se corrige as coisas e se muda a sociedade. 

Eu queria muito poder gostar de Manaus, mas infelizmente não dá. É ruim demais.