quarta-feira, 15 de setembro de 2021

O espírito do lavrado

[...]

— O que foi que eu fiz?

Realmente foi loucura. Ele andou até se sentir atordoado. Encontrou outros cajueiros e saciou a fome com os frutos, foi de igarapé em igarapé, buriti em buriti. E o lavrado parecia infinito. E o horizonte não chegava nunca. Em certo ponto olhou pra trás e não viu nem sinal de seu carro, nem sabia onde o tinha deixado. E o desconhecido que nunca chegava. Ele começou a perceber isso. Já entardecia e o sol se punha, magnífico. Agora não parecia mais dar uma bênção, e sim decretar um ultimato. Sim, o imponente sol laranja deitava-se e dava o veredicto: Raimundo, você não conseguiu desvendar o lavrado. Você falhou. As pernas já estavam cansadas, aquele mato rasteiro incomodava, e ainda tinha os piuns. Argh! Sim. Esses são verdadeiros arautos do inferno. Carapanãs, mosquitos, pernilongo, piuns, o nome importava pouco ali. E eles estavam às centenas, talvez milhares, rondando o corpo ensebado de Raimundo. O cheiro do suor lhe era desagradável, queria e precisava descansar. O sol parecia ter sugado as energias, sentia-se exaurido.

Mas e agora? O que fazer? Quanto tempo até alguém dar por sua falta? Será que já tinham percebido? Encontraram o carro? Mas quem ia saber? A família da Gabi pernoitaria no sítio, só veriam no dia seguinte. Raimundo do céu, o que foi que você fez?

Nunca foi um homem do campo, mas sempre se considerou alguém prático. Pensou no que fazer. O mais viável seria encontrar uma árvore e ficar debaixo dela. Não havia ali mata fechada e o céu estava límpido, algumas estrelas já despontavam na boca da noite, engolindo o mundo com sua escuridão até a única luz ser a lua e algumas estrelas. Caminhou, caminhou, caminhou procurando alguma árvore sob a qual pudesse se abrigar. Temia ficar perto d’água, não sabia que animais poderiam visitá-lo à noite. Avistou um buritizal e estancou o passo. Ali estaria um igarapé, com certeza. Olhou ao redor. A única árvore que poderia fornecer alguma espécie de abrigo era um caimbé, a poucos metros. Ele quase não protegia do sereno, mas o tronco retorcido oferecia um lugar onde pudesse recostar-se. Aproximou-se e sentou-se ao seu pé.

— O que foi que eu fiz?

_______________

Para continuar a ler, adquira a Antologia "Monstruosos" da Editora Persona clicando AQUI!