quarta-feira, 30 de junho de 2021

Resenha – Um deus passeando pela brisa da tarde

CARVALHO, Mário de. Um deus passeando pela brisa da tarde. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.


Esse livro foi uma agradável surpresa. Emprestado por um colega de trabalho, eu não estava botando muita fé quando comecei. Mas não demorou quase nada para me ver fisgado pelo livro de um autor português contemporâneo – e eis aí uma novidade: eu curtindo um livro de autor contemporâneo. Mas vamos à resenha.

Essa história aqui se passa na cidade de Tarcisis, no século II d.C., onde acompanhamos a história de Lúcio Valério Quíncio, o duúnviro da cidade (uma espécie de prefeito). Na sua administração, ele terá que lidar com a ameaça da invasão dos mouros, politicagens entre cidadãos da própria Tarcisis e ainda sua atração por uma mulher vinculado a uma seita considerada perigosa pelo império romano: os cristãos.

Esse livro é de ficção histórica, mas é facilmente algo que poderia ser ficção cristã. Acho que hoje em dia este último ainda tem um aspecto mais "confessional" ou "preachy", no sentido de não apenas contar uma história, mas informar (de certa forma) uma fé. Creio que meu primeiro livro se encaixe bem neste último. A diferença para a obra de Mário de Carvalho, é que ele fez isso totalmente pelos olhos de um não-cristão – o que também foi muito interessante.

O livro é escrito num português culto e fluido ao mesmo tempo, de um jeito que há um bom tempo não via. Pra se compreender absolutamente cada palavra, me pergunto se alguém conseguiria ler sem consultar um dicionário. Ao mesmo tempo, porém, não creio que seja aquele português erudito e quase esnobe de Machado de Assis. O autor consegue fazer uma combinação fascinante de elegância e acessibilidade ao mesmo tempo.

Gostei de ver na obra o sentimento de cotidiano trazido em momentos pontuais. Por exemplo, interessante a descoberta das camadas mais pobres pelo rico duúnviro. Sentimento de que existem outras histórias além da sua, não raro tão complexos e interessantes quanto, se não mais.

O autor fez um trabalho de pesquisa absolutamente sensacional. Não são apenas termos, mas ele realmente reproduz uma sociedade da época. Eu que estudei algo nesse estilo, sei como é difícil encaixar tudo sem que soe acadêmico demais, sem que o autor se deixe levar pela ânsia de colocar no livro tudo que se esforçou pra aprender.

Confluência de acontecimentos natural, bem encadeada e, o melhor, não segue uma fórmula padrão hollywoodiana. Achei maravilhoso perceber que o personagem se desenvolve sem pressa, que os conflitos e problemas vão surgindo de modo quase inevitável, não são forçados. Muito bom sentir que o autor está realmente caminhando conosco pela história, sem forçar nada goela abaixo.
"Por mais que eu quisesse esquecer-me, ou deixar os cristãos para depois, havia sempre alguém que mos vinha lembrar." (p. 120)
Não poderia deixar de comentar sobre a seita perigosa que surgiu em Tarcisis. Ao duúnviro informaram sobre gente que se reunia e praticava rituais macabros como sacrifícios humanos, orgias e crimes. Acusados de obscenidade por juntar num mesmo ambiente cidadãos e escravos; de envenenar os poços da cidade; de promover a desordem e o caos social. A seita terrível: os cristãos.

Foi muito interessante ver como o povo de Deus era visto naquela época pelos ímpios e, mais, como estes reagiam àqueles. A perseguição social começou branda, mas não tardou a ficar cada vez mais intensa, até chegar o ponto em que os fiéis foram acusados publicamente e precisaram fazer a escolha fatal: renunciar ao seu Deus e cultuar o imperador, ou morrer. 

O livro é mais do que recomendado, muito bem escrito e concatenado. Tenho agora que colocar ele na minha lista de compras e esperar uma promoção ou um presente (#ficaadica), porque esse eu li emprestado. Mas é tão bom que posso garantir que vai entrar pra minha estante.

Resenha – A senhora do trílio

BRADLEY, Marion Zimmer. A senhora do trílio. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.


Sabe quando você se arrepende do tempo que perdeu fazendo alguma coisa? Pois é, foi assim que me senti quando terminei esse livro. Já tendo lido todos os outros da série Trílio, eu sabia que não deveria esperar muita coisa; mas, putz, foi o fundo do poço.

Depois de vencer o preconceito peguei o livro. Tudo já começa errado. Esse livro foi escrito antes do Trílio Celeste e simplesmente ignora tudo que aconteceu naquela história. É como se o leitor tivesse sido transportado para uma realidade paralela onde nada aconteceu e ele tem que se satisfazer em ver novamente a arquimaga Haramis se comportando feito uma adolescente numa história sem pé nem cabeça.

Isso sem falar no começo muito abrupto da história. A criança (moça de 12 anos de idade) vê seu amigo de infância ter a cabeça arrancada e no momento seguinte está viajando e se aventurando animada nas ruínas da cidade perdida. Gente, que isso? Pra piorar: essa é uma constante do livro. Coisas sem sentido a torto e à direita.

Clichês e mais clichês. Diálogos explicativos desnecessários, cenas totalmente descartáveis, personagens ora super maduros, ora pueris. Até a própria arquimaga tem comportamentos que não fazem sentido às vezes. A autora introduz temas do nada e depois os deixa morrer no parágrafo seguinte como se nada tivesse acontecido.

Chamado à Aventura fraquíssimo, um festival de simplificações, personagens-tampão e um calhamaço de "contar" em vez de "mostrar". Sinceramente, eu devia ganhar um prêmio por ter aguentado esse livro até o fim. A autora sequer se deu ao trabalho de criar um nexo que desse unidade à história do começo ao fim, foi simplesmente jogando as coisas e empurrando com a barriga.

Caramba, será que isso era uma época onde ainda não havia pipocado autores de fantasia e por isso os poucos que havia faziam sucesso? É a única explicação que posso encontrar pra um livro tão fraco como esse ter ido tão longe. O meu chute aqui é que: 1) o livro só vendeu porque a autora já tinha outras produções de sucesso; 2) a autora não queria escrever isso e foi obrigada.

Os heróis não tem inimigos, não têm um objetivo definido, não têm uma jornada. A gente só vê eles sorrindo e pululando em aventuras e desenvolvimentos pífios. Fica bem claro que eles não correm perigo, a gente não tem como se preocupar com eles ou engajar com seus problemas. Já vi livros infantis pra bebês com mais estrutura do que essa porcaria.

Não vou entrar em detalhes como a sucessora da arquimaga, Mikayla, ser uma jovem de 12 anos e ter um comportamento totalmente incondizente; não vou comentar a hora que ela resolve se unir a uma Seita maligna sem sequer perguntar quem são eles; não vou falar do abutre albino que ela encontra do nada e que serve de transporte pra ela por conveniência; não vou falar dos feitiços que envolvem lágrimas e sangue e ela executa como se fosse passar manteiga no pão; não vou falar do sacrifício estúpido e gratuito que ela poderia simplesmente ter ignorado e seguido com a vida; e isso tudo sem falar dos inuendos sexuais gratuitos que a autora traz à tona e ignora no parágrafo seguinte. Em suma, não vou falar sobre com minúcias sobre as imbecilidades que esse livro tem, porque eu, ao contrário da autora, respeito o tempo do meu leitor e quero que ele ganhe alguma coisa com sua leitura.

Só o que posso fazer, novamente, é ficar abismado com o fato deste livro ter chegado a estantes de tantos lugares. Uma clara jogada de nome e fama, não de conteúdo. Esse livro vai pra doação por falta de opção, porque é tão ruim que minha vontade era jogar fora.

sábado, 26 de junho de 2021

Resenha – O livro dos seres imaginários

BORGES, Jorge Luis; GUERRERO, Marieta. O livro dos seres imaginários. São Paulo: Globo, 2000.


Essa será uma resenha bem curta. Este livro veio parar nas minhas mãos só porque um colega resolveu me emprestar. Eu por mim não sei até que ponto curto Jorge Luis Borges. Acho que ele se encaixa na mesma categoria de Machado de Assis: intelectual demais pro meu gosto. Mas vamos ao livro.

Borges fez uma enciclopédia de animais fantásticos. Ele seguiu o modelo dos "bestiários", que eram realmente compêndios de fauna exótica escritos durante a Idade Média, um verdadeiro catálogo de diversos animais (alguns deles até imaginados mesmo).

Não sei dizer até que ponto ele criou informações, porque várias das entradas (e há muitas delas) contém referências a outros livros e até mesmo citações de outros autores. Não fosse zoologia fantástica, eu até classificaria esse livro como acadêmico. Eu diria até que não é um livro pra ser lido de uma vez, mas consultado de vez em quando. 

Interessante notar que Jorge Luis Borges não tem pena do leitor. Ele conta as coisas com o trem já em movimento e você que se vire pra acompanhar o tranco. Via de regra, a gente consegue, mas quase sempre com a certeza de que perdeu alguma coisa no meio do caminho e precisa voltar pra pegar. Por um lado vejo que isso é bom, por outro, o leitor fica com a constante sensação de ter sido deixado para trás – é o problema que falei sobre um texto "intelectualizado" demais.

Acho que o tradutor poderia ter feito a cortesia de traduzir os textos em espanhol. Sei que há uma série de escolhas editoriais por trás, mas do meu ponto de vista é o leitor que deve estar no centro das preocupações. Que a maioria dos brasileiros vai conseguir ler o espanhol isso não é problema, mas a fluidez do texto fica comprometida.

No fim das contas, o livro é deveras bem interessante por funcionar como um bestiário e ter uma excelente compilação de dados. Não dá pra negar que o autor foi bem abrangente sem, ao mesmo tempo, tornar o texto cansativo. Não sei como recomendar essa leitura, só me resta repetir: achei interessante.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Resenha – É todo um processo...

NOVA, Duda Vila. É todo um processo...: histórias de um judiciário que você não vê na TV. Alagoinhas: UICLAP, 2021.


Este livro representa pra mim exatamente o estado da arte dos novatos escritores brasileiros contemporâneos: excelente premissa, péssima execução.

A começar pela premissa: causos dos bastidores do Judiciário brasileiro. Excelente! Quem não gostaria de ouvir o que acontece por trás dos panos? Que histórias esse pessoal não deve ter pra contar sobre juízes, advogados, e outras personalidades do mundo jurídico? Interessante, quero ouvir!

Execução: em vez do autor ser honesto e simplesmente dizer o que quer falar (as histórias), não. Ele resolve criar cenas, inventar personagens e tentar nos familiarizar goela abaixo com eles pra então contar o que realmente interessa: os causos.

Cara, ninguém quer saber do personagem. Ele é praticamente uma nota de rodapé. O autor perde muito tempo caracterizando as pessoas, enchendo os contos com novos personagens a torto e à direita, só pra lá no final chegar no âmago da questão, que era o que realmente importava desde o início. Até em histórias em que o personagem é bem importante, o autor perde um horror de tempo contando vários detalhes inúteis da vida egressa ou então gastando linhas com caracterizações totalmente descartáveis para o enredo.

Foi uma verdadeira luta conseguir ler o livro até o fim. Já no primeiro 1/4 tava com raiva do tempo que o autor estava fazendo eu perder. Era possível pular vários e vários parágrafos sem que isso afetasse em absolutamente nada a compreensão do texto ou a "familiarização" com os personagens. Histórias que tinham tudo para ser boas como o "Dormientibus...", acabaram sendo perdidas com a necessidade de criar toda uma situação pra uma personagem, que no fim das contas nós descartamos logo em seguida.

No conto "Jandira", eu até entendo a opção do autor por colocar um "caboquês" no texto. Mas ele cai no erro do exagero. Quando colocamos regionalismos no texto ou coloquialismos, isso tem que ser feito com cuidado, porque senão emperra a leitura. A gente já entendeu que a personagem é uma mulher simples e pouco letrada, não precisa forçar o diálogo com essa grafia maluca. O leitor não precisa ser lembrado de absolutamente cada detalhe do texto, ele (no caso eu) é inteligente o suficiente pra montar a cena na própria cabeça.

De longe o melhor conto foi "O crime não compensa". Não porque ele seja bom em si, mas é que, comparado com os outros, ele foi o que chegou mais perto de ser uma história interessante de ler, que foca no que acontece nos bastidores, nos causos mesmo, e não na perda de tempo em situar cenas.

Existe, tranquilamente, muita coisa que dá pra cortar. Excessos como definir o ano e modelo do carro, destacar minutos e segundos, trazer à tona minúcias que são totalmente desprezíveis tanto para entender o personagem como para fazer o enredo caminhar. Só enche o livro e as páginas, perdendo tempo.

Sobre a edição em si, não há muito o que falar. Autores independentes brasileiros não têm condição de fazer nada lá muito elaborado (eu incluso), então dá pra perdoar. Mas na capa penso que foi erro do autor colocar seu nome em preto com fundo escuro, quase não dá pra ver.

No final, a última página tem o currículo do autor. Pelas publicações que ele tem em seleções que eu sei que são difíceis, não posso dizer que ele não tenha capacidade de escrever coisa boa. Só sei que, neste livro, não teve muita coisa para me acrescentar. Perdi meu tempo e desde já informo que o livro está disponível para doação.

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Resenha – O idiota

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O idiota. 3ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2015.


Galera, vamos começar falando dessa edição. Pra ser bem honesto com vocês, assim que eu peguei o livro e vi que era da Martin Claret me deu um frio na espinha. Não precisa ser muito literato pra saber que essa editora é ruim que dói e tem umas edições deploráveis de clássicos. Mas, para minha surpresa, dessa vez ela acertou! Não sei quem foi contratado por lá, mas deu certo. Edição maravilhosa! 

A tradução foi muito bem trabalhada, inserindo aí traços de coloquialismos que são tão importantes para a obra de Dostoiévski, que decididamente não escrevia para elites. Temos palavras simples e até algumas expressões que soam estranhas quando lemos histórias "de época", mas que são totalmente verossímeis e se encaixam como uma luva na obra.

Mas eu me adianto, vamos voltar um pouco. Em linhas gerais e à guisa de sinopse, este livro conta a história do príncipe Míchkin e suas aventuras na sociedade russa do fim do século XIX. Ele é um cidadão simples, embora tenha título real não é rico e acaba se relacionando com personagens como a belíssima mas imprevisível Nastássia Filíppovna, o dúbio amigo-rival Rogójin e a família Epantchín.

Embora Míchkin seja doente e epilético, nosso herói é chamado de "idiota" porque, no fundo, é uma pessoa boa e não faz joguinhos de segundas intenções igual aos outros. "Idiota" porque é alguém simples, ingênuo e (por causa disso) com pouco tato social. Nas palavras do próprio autor:
"Mas Michkín não via nada pela outra face, não sabia reconhecer correntes submarinas." (p. 677)
Quanto à estrutura do livro, ele é divido em quatro partes. Lembro que assim que terminei a parte I do livro, me peguei pensando que se Dostoiévski tivesse vivido na época do capitalismo, tê-lo-iam acusado de burrice. Acontece que essa primeira parte é tão boa, tão completa e termina de um jeito tão impactante, que teria sido mais inteligente fazer uma série ou trilogia, em lugar de juntar tudo num lugar só. É brilhante, é fascinante. É um absurdo de bom. As outras partes nem tanto, mas esta primeira foi sensacional.

Passando à resenha, no quesito de técnica literária, interessante como, com o passar do tempo, nossos olhos se abrem para algumas coisas que não conseguimos ver antes. Não é a primeira vez que leio Dostoiévski e tenho certeza de que esta não foi a primeira vez que ele fez isso: um monte de "tell" em vez de "show", ou seja, em vez de mostrar as cenas, ele simplesmente passava por alto, inclusive sem mostrar exatamente o que os personagens falavam.

Já é a segunda vez em pouco tempo que vejo um escritor renomado fazendo isso (a primeira havia sido Emily Bronte, resenha AQUI) e novamente eu fico aqui me perguntando até que ponto a máxima "mostre, não conte" deve ser levada como absoluto em todos os casos. Não digo que eu tenha cacife pra quebrá-la assim de chofre, mas que, pelo menos, possa ousar de leve quando a situação permitir.

Até agora não consegui descobrir o que há em Dostoiévski que fisga a gente de um jeito tão certeiro. No fundo, acho que é seu realismo combinado com uma linguagem franca, como nós realmente entramos nas cenas dos personagens e seus sentimentos. Aquela descrição que ele fez do cadafalso, nossa!, foi de arrepiar e ao mesmo tempo capturou minha atenção de modo que não tive escolha senão ler tudo. Veja só esses trechos:
"Ficou tão desconcertada que nunca mais abriu os lábios. Naqueles outros tempos o povo ainda era bom com ela, mas quando voltou, escangalhada e doente, ninguém mais teve pena." (p. 90)
"Despojado de tudo, e de tudo carecendo, outra coisa não sendo aqui embaixo senão miserável átomo no vórtice da circulação humana, natural é que ninguém me respeite e que eu não passe de um joguete para o capricho alheio, sendo apenas pontapés a vantagens que de tudo isso me resulta." (p. 255)
Ah, e outra coisa! É reviravolta atrás de reviravolta! A trama fica cada vez mais complexa a cada capítulo. Impressionante! Na verdade, tem vários capítulos que terminam praticamente num cliffhanger, ou seja, força você a continuar a leitura pra saber o que vai acontecer. Tática velha, mas eficaz.

Existe uma coisa que Dostoiévski e Érico Veríssimo fazem que é uma espécie de contrassenso literário: eles contam histórias e causos que em nada contribuem para o enredo; mas que são terrivelmente fascinantes e se não estivessem no livro, seria um buraco. Histórias simples, causos de personagens, mas que fisgam e dão trechos interessantes como esse:
"E em seguida, de uma vez para sempre, completo vácuo, tudo acabara, fora deixada sozinha, como... mosca execrada desde o começo do tempo." (p. 191)
Não é sempre que um autor faz referência a seus heróis por meio de seus livros. Aqui, ouso dizer que Dostoiévski mostrou uma de suas influências: tão somente, Dom Quixote de La Mancha, por Miguel de Cervantes.

Mas o que mais apaixona no livro é o estilo e o conteúdo do próprio Dostoiévski. Cheguei a comentar isso em outra resenha dele (creio que foi nos Irmãos Karamazov): não canso de me assustar como os dilemas trazidos pelo autor podem ser tão contemporâneos. Ele fala da Rússia czarista, eu falo do Brasil do século XXI e tanto eu como ele não temos escolha senão concordar com Lizavéta Prokófievna e dizer:
"Arre! Tudo está de pernas para o ar, tudo está de cambalhotas!" (p. 360)
Ou então o trecho o herói do história, o príncipe Mitchkin, comenta:
"— Apenas quis significar que uma perversão de ideias e de concepções — conforme se expressou Evguénii Pávlovitch — com a qual nos defrontamos muitas vezes, é, infelizmente, muito mais a regra geral de que um caso excepcional." (p. 426)
Temos aqui, como não poderia deixar de ser, vários personagens doentes. Aliás, me parece que a grande doença de Michkin é a bondade em excesso, o auto-sacrifício não saudável, que leva à perdição. E temos aqui uma abordagem sociológica bem interessante: quem pode delimitar com clareza os limites desse auto-sacrifício? O que é loucura pra um pode ser um grande ato de amor para outro? Eis a questão.

O livro traz muito bem os melindres da sociedade russa do fim do século XIX. Como falar ou abordar um assunto, o que é considerado digno ou não. Problemas da high society mas de um jeito muito humano e introspectivo: uma verdadeira aula para Jane Austen, que tenta fazer o mesmo mas que tem como resultado só um sono inesgotável pro leitor.

Assim como Veríssimo, Dostoiévski traz o que a sociedade realmente tem pra mostrar, passando pelas camadas mais baixas e mostrando também a vileza e futilidade das mais altas. Interessante notar que, muitas vezes, a ficção parece exagerada, mas quando se fala da realidade, descobre-se que ela é ainda pior. Érico falou sobre isso, mas o próprio autor deixa seu parecer:
"Se qualquer autor o inventasse, os críticos e aqueles que sabem a vida do povo gritariam imediatamente que era falso e inverossímil; lendo-o nos jornais, como coisa que acontece mesmo, a gente só tem de, através desses fatos, ir estudando a vida russa, em sua múltipla realidade." (p. 626)
Sou muito suspeito pra falar, porque eu simplesmente amo Dostoiévski. Não creio que tenha lido nada dele e não tenha gostado (e olha que já li um bocadinho). Engraçado que toda vez que leio algo dele, eu penso no fim: "Este é meu livro favorito dele". Não foi diferente com este aqui.

"O idiota", no fim das contas, é uma história com a qual a gente pode se conectar – muito embora não sejamos russos, tampouco vivendo no fim do século XIX. E é justamente isso que torna a obra mais atemporal e impressionante. Um livro magnífico, de um autor que um dia terei lido todas as obras. Mal posso esperar por isso.