sexta-feira, 18 de junho de 2021

Resenha – O idiota

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O idiota. 3ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2015.


Galera, vamos começar falando dessa edição. Pra ser bem honesto com vocês, assim que eu peguei o livro e vi que era da Martin Claret me deu um frio na espinha. Não precisa ser muito literato pra saber que essa editora é ruim que dói e tem umas edições deploráveis de clássicos. Mas, para minha surpresa, dessa vez ela acertou! Não sei quem foi contratado por lá, mas deu certo. Edição maravilhosa! 

A tradução foi muito bem trabalhada, inserindo aí traços de coloquialismos que são tão importantes para a obra de Dostoiévski, que decididamente não escrevia para elites. Temos palavras simples e até algumas expressões que soam estranhas quando lemos histórias "de época", mas que são totalmente verossímeis e se encaixam como uma luva na obra.

Mas eu me adianto, vamos voltar um pouco. Em linhas gerais e à guisa de sinopse, este livro conta a história do príncipe Míchkin e suas aventuras na sociedade russa do fim do século XIX. Ele é um cidadão simples, embora tenha título real não é rico e acaba se relacionando com personagens como a belíssima mas imprevisível Nastássia Filíppovna, o dúbio amigo-rival Rogójin e a família Epantchín.

Embora Míchkin seja doente e epilético, nosso herói é chamado de "idiota" porque, no fundo, é uma pessoa boa e não faz joguinhos de segundas intenções igual aos outros. "Idiota" porque é alguém simples, ingênuo e (por causa disso) com pouco tato social. Nas palavras do próprio autor:
"Mas Michkín não via nada pela outra face, não sabia reconhecer correntes submarinas." (p. 677)
Quanto à estrutura do livro, ele é divido em quatro partes. Lembro que assim que terminei a parte I do livro, me peguei pensando que se Dostoiévski tivesse vivido na época do capitalismo, tê-lo-iam acusado de burrice. Acontece que essa primeira parte é tão boa, tão completa e termina de um jeito tão impactante, que teria sido mais inteligente fazer uma série ou trilogia, em lugar de juntar tudo num lugar só. É brilhante, é fascinante. É um absurdo de bom. As outras partes nem tanto, mas esta primeira foi sensacional.

Passando à resenha, no quesito de técnica literária, interessante como, com o passar do tempo, nossos olhos se abrem para algumas coisas que não conseguimos ver antes. Não é a primeira vez que leio Dostoiévski e tenho certeza de que esta não foi a primeira vez que ele fez isso: um monte de "tell" em vez de "show", ou seja, em vez de mostrar as cenas, ele simplesmente passava por alto, inclusive sem mostrar exatamente o que os personagens falavam.

Já é a segunda vez em pouco tempo que vejo um escritor renomado fazendo isso (a primeira havia sido Emily Bronte, resenha AQUI) e novamente eu fico aqui me perguntando até que ponto a máxima "mostre, não conte" deve ser levada como absoluto em todos os casos. Não digo que eu tenha cacife pra quebrá-la assim de chofre, mas que, pelo menos, possa ousar de leve quando a situação permitir.

Até agora não consegui descobrir o que há em Dostoiévski que fisga a gente de um jeito tão certeiro. No fundo, acho que é seu realismo combinado com uma linguagem franca, como nós realmente entramos nas cenas dos personagens e seus sentimentos. Aquela descrição que ele fez do cadafalso, nossa!, foi de arrepiar e ao mesmo tempo capturou minha atenção de modo que não tive escolha senão ler tudo. Veja só esses trechos:
"Ficou tão desconcertada que nunca mais abriu os lábios. Naqueles outros tempos o povo ainda era bom com ela, mas quando voltou, escangalhada e doente, ninguém mais teve pena." (p. 90)
"Despojado de tudo, e de tudo carecendo, outra coisa não sendo aqui embaixo senão miserável átomo no vórtice da circulação humana, natural é que ninguém me respeite e que eu não passe de um joguete para o capricho alheio, sendo apenas pontapés a vantagens que de tudo isso me resulta." (p. 255)
Ah, e outra coisa! É reviravolta atrás de reviravolta! A trama fica cada vez mais complexa a cada capítulo. Impressionante! Na verdade, tem vários capítulos que terminam praticamente num cliffhanger, ou seja, força você a continuar a leitura pra saber o que vai acontecer. Tática velha, mas eficaz.

Existe uma coisa que Dostoiévski e Érico Veríssimo fazem que é uma espécie de contrassenso literário: eles contam histórias e causos que em nada contribuem para o enredo; mas que são terrivelmente fascinantes e se não estivessem no livro, seria um buraco. Histórias simples, causos de personagens, mas que fisgam e dão trechos interessantes como esse:
"E em seguida, de uma vez para sempre, completo vácuo, tudo acabara, fora deixada sozinha, como... mosca execrada desde o começo do tempo." (p. 191)
Não é sempre que um autor faz referência a seus heróis por meio de seus livros. Aqui, ouso dizer que Dostoiévski mostrou uma de suas influências: tão somente, Dom Quixote de La Mancha, por Miguel de Cervantes.

Mas o que mais apaixona no livro é o estilo e o conteúdo do próprio Dostoiévski. Cheguei a comentar isso em outra resenha dele (creio que foi nos Irmãos Karamazov): não canso de me assustar como os dilemas trazidos pelo autor podem ser tão contemporâneos. Ele fala da Rússia czarista, eu falo do Brasil do século XXI e tanto eu como ele não temos escolha senão concordar com Lizavéta Prokófievna e dizer:
"Arre! Tudo está de pernas para o ar, tudo está de cambalhotas!" (p. 360)
Ou então o trecho o herói do história, o príncipe Mitchkin, comenta:
"— Apenas quis significar que uma perversão de ideias e de concepções — conforme se expressou Evguénii Pávlovitch — com a qual nos defrontamos muitas vezes, é, infelizmente, muito mais a regra geral de que um caso excepcional." (p. 426)
Temos aqui, como não poderia deixar de ser, vários personagens doentes. Aliás, me parece que a grande doença de Michkin é a bondade em excesso, o auto-sacrifício não saudável, que leva à perdição. E temos aqui uma abordagem sociológica bem interessante: quem pode delimitar com clareza os limites desse auto-sacrifício? O que é loucura pra um pode ser um grande ato de amor para outro? Eis a questão.

O livro traz muito bem os melindres da sociedade russa do fim do século XIX. Como falar ou abordar um assunto, o que é considerado digno ou não. Problemas da high society mas de um jeito muito humano e introspectivo: uma verdadeira aula para Jane Austen, que tenta fazer o mesmo mas que tem como resultado só um sono inesgotável pro leitor.

Assim como Veríssimo, Dostoiévski traz o que a sociedade realmente tem pra mostrar, passando pelas camadas mais baixas e mostrando também a vileza e futilidade das mais altas. Interessante notar que, muitas vezes, a ficção parece exagerada, mas quando se fala da realidade, descobre-se que ela é ainda pior. Érico falou sobre isso, mas o próprio autor deixa seu parecer:
"Se qualquer autor o inventasse, os críticos e aqueles que sabem a vida do povo gritariam imediatamente que era falso e inverossímil; lendo-o nos jornais, como coisa que acontece mesmo, a gente só tem de, através desses fatos, ir estudando a vida russa, em sua múltipla realidade." (p. 626)
Sou muito suspeito pra falar, porque eu simplesmente amo Dostoiévski. Não creio que tenha lido nada dele e não tenha gostado (e olha que já li um bocadinho). Engraçado que toda vez que leio algo dele, eu penso no fim: "Este é meu livro favorito dele". Não foi diferente com este aqui.

"O idiota", no fim das contas, é uma história com a qual a gente pode se conectar – muito embora não sejamos russos, tampouco vivendo no fim do século XIX. E é justamente isso que torna a obra mais atemporal e impressionante. Um livro magnífico, de um autor que um dia terei lido todas as obras. Mal posso esperar por isso.

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