terça-feira, 3 de novembro de 2020

Resenha - Morro dos ventos uivantes

BRONTË, Emily. O morro dos ventos uivantes. CAMARA, João Sette (trad.). Jandira: Ciranda Cultural, 2019.


São poucas as vezes que eu posso chegar aqui e dizer: eu li a obra completa de autor tal. É verdade que já fiz isso com Érico Veríssimo. Mas agora posso dizer que também fiz com Emily Brontë. Talvez tenha ajudado o fato de que ela tenha escrito apenas um livro. Talvez.

Este livro aqui me surpreendeu mais do que eu esperava. Pra ser bem honesto, eu estava até com um pouco de preconceito antes de pegar a obra. Graças ao trauma que foi ler Jane Austen (ô coisa chata!), eu temia do que pudesse vir da literatura inglesa do final do século XIX. Mas devo confessar que o livro é muito interessante.

Quanto à trama, logo no começo eu pensei: "Ah, essa vai ser mais uma daquelas histórias de amor." O mocinho chega, tem uma mocinha que ela não é bem tratada numa casa, todas as peças estavam ali. Mas, para minha grata surpresa, autora explora com muita elegância as histórias subjacentes e o contexto tanto do lugar quanto dos outros personagens. É aí que percebemos que a história é de outro mocinho e outra mocinha.

Em vez de ser a história do jovem Lockwood, que chegou ao Morro dos Ventos Uivantes (que é o nome da fazenda no interior da Inglaterra que é o centro da história), na verdade trata-se de uma rememoração da história de Heathcliff e Catherine e todos os antigos ocupantes da casa, contados pela voz da empregada doméstica Ellen Dean.

Caramba, é impressionante como a autora consegue captar nossa atenção, a gente realmente fica vidrado – e não tenho ideia de como ela fez isso. outra coisa que me impressionou é que tudo, tudo, acontece no Morro dos Ventos Uivantes. Sequer foi necessário mudar o cenário e mesmo assim o livro prende a gente! Não é que não existam outros cenários, eles até existem. Mas o jeito como a autora escreve os torna supérfluos.

Enquanto eu lia as repetidas interações malucas entre Catherine e Heathcliff eu não consegui evitar o pensamento: "Mas que diabos de 'amor' é esse entre os dois?". Uma coisa muito no limite entre paixão e ódio (bem pouco de "amor", pra falar a verdade). E aí eu lembrei: era o século XIX. O Romantismo está aí, bem aos moldes de Byron – que marcou toda aquela geração.

De modo geral, a história realmente nos prende, mas eu percebi alguns problemas nisso. Voltarei a eles lá no final. Por enquanto, gostaria de abordar algumas questões referentes ao estilo da autora (se é que eu tenho algum cacife pra analisar isso né).

Eu estava prestes a reclamar que o livro tem um excesso de descrições, o que é característico da época (tempos em que não havia televisão e até fotografias não eram tão comuns); mas foi logo fisgado pela exime a capacidade narrativa da autora, que nos prende aos personagens logo no começo. Esta é uma marca que será mantida durante todo o livro.

Brontë fez uma coisa que eu adoro. Aliás, foi exatamente isso que Érico Verissimo fez quando eu percebi que o cara era genial: ela insere informações no texto que não contribuem direto para a trama; mas são de tal modo tão deliciosos, que ficamos gratos à autora por tê-lo feito. Você pode abrir em qualquer capítulo e identificar isso. Longe de ser descartável, estes pequenos acréscimos trazem um sabor a mais.

Este livro me fez repensar a máxima da literatura: "show, don't tell." Conquanto eu compreenda que esta é realmente uma máxima que não deve ser menosprezada, agora eu fico em dúvida se ela deve ser evitada por completo. Digo isto porque eu percebi vários momentos deste "problema" no texto (eles eram até bem óbvios); mas, sinceramente, eu deixei passar e nem me prejudicaram, porque esse tell ajudava na fluidez do texto e isso foi muito bom.

Agora eu preciso reservar um espaço aqui para falar da tradução. Num primeiro momento, tive a impressão que havia algumas coisas que poderiam ser traduzidas de outra forma, não sei. Confesso que me deu uma agonia danada quando li a palavra "selvagemente". Mas a verdade é que achei a tradução bem trabalhada. 

O tradutor teve sabedoria em manter um linguajar equilibrado entre a expectativa linguística do povo (algo mais fácil de compreender) e a característica dos romances de época traduzidos (com palavras complicadas e expressões que pouco ressoam em português, até porque não fazem parte do nosso uso comum, tampouco da nossa cultura). Eis um exemplo:
"Ele bateu a cabeça contra o tronco nodoso e, erguendo os olhos, gritou, não como um homem, mas como uma besta selvagem sendo espicaçada até a morte com lanças e facas." (p. 177)
Dou ainda mais um pouco de crédito para a tradução ao adaptar não somente a linguagem falada dos personagens – que soam ao mesmo tempo históricos e atuais –, mas também pela grafia escolhida. Refiro-me aqui diretamente ao trecho onde o tradutor colocou: 
"Hahaha! Ele tirou vocês de lá direitinho! Hahaha!" (p. 267)
Esta edição contou ainda com algumas notas do tradutor no rodapé da página. Olha, eu geralmente não gosto destes adendos ao texto, mas eles foram feitos de modo tão pontual que eu não tive escolha senão julgá-los de extrema valia para a compreensão do texto. Realmente valeram a pena todos eles.

Bom, agora eu preciso caminhar para o que considerei um problema no livro. Acho que há uma falha estrutural no comportamento de alguns personagens. Por mais que eu entenda que tem gente que realmente é má e cruel, acho bastante implausível que essa crueldade sádica possa se estender de maneira tão contínua para todos que estão ao redor. 

Eu notei esse problema no começo do livro, mas perdoei porque estava ainda dentro do contexto e não fora exagerado. Mas conforme me aproximava do final, ficou cada vez mais evidente que não faz sentido que que todos aqueles que entram em contato com Heathcliff sejam cruéis, e não somente ele – chegando até mesmo à governanta da casa. Isso só pode ser explicado por uma falha no roteiro, que está forçando os personagens a um comportamento destes para criar a atmosfera que precisa.

E saliento que é forçado mesmo. Há uma outra falha no comportamento dos moradores do Morro dos Ventos Uivantes. Conquanto Heathcliff seja um imperador cruel e ardiloso, isto é verossímil. Agora que todos, absolutamente todos, se submetam a este reino de impiedade sem revoltas, ahhhh, aí já não dá. Foi Jean-Baptiste Duroselle que postulou de modo muito claro: "Todo império perecerá". 

Não tem como. Quando eu cheguei naquele capítulo que foi a grande reviravolta, a cartada final de Heathcliff (quem leu entenderá); não pude deixar de sentir uma exasperação com a atitude passiva das personagens. Tudo bem que naquele capítulo eram praticamente só mulheres e enfermo, aí dá pra perdoar. Mas quando a gente volta na memória e considera que pelo menos três homens fortes viveram naquela casa e deixaram Heathcliff dominar sobre eles de tal forma, cara... não fecha a conta. 

Nenhum reino desse subsiste por tanto tempo sem aliados internos, por mais poderoso que seja. Avalie a História e me diga que estou errado. Porque nestes meus anos de graduação e especialização em Relações Internacionais, se teve uma coisa que eu aprendi com clareza é que Duroselle estava mais do que certo: todo império perecerá.

Este problema torna-se ainda mais acentuado no final, que foi extremamente mal explicado. Na verdade, pense num finalzinho borocoxô. Uma súbita e inexplicada mudança de pensamento (ou até personalidade!) e atitudes que vêm do nada. Fica tudo exageradamente subentendido e nada fica claro, como se o roteiro quisesse apenas terminar a história de um modo mais "feliz" à custa do comportamento de personagens que acompanhamos desde o primeiro capítulo.

Mas, apesar destes problemas, não posso concluir dizendo que o livro é ruim. Estas são apenas algumas notas destoantes se comparadas à sinfonia do livro. É importante até destacar a capacidade da autora para criar personagens odiosos. Tem várias cenas que nos deixam enervados com a tensão da situação. 

Gente, livros não se tornam clássicos à toa. Vale muito a pena a leitura, que não é cansativa e ainda pode ser extremamente atual. Ali no final do Romantismo, ouso dizer que Brontë já caminhava num meio termo em que não se deixa dominar demais por ele e propõe uma maneira até mais sóbria de encarar uma história de amor. Vale a leitura com certeza.

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