sexta-feira, 22 de abril de 2022

Resenha – O guia do mochileiro das galáxias

ADAMS, Douglas. O guia do mochileiro das galáxias. São Paulo: Arqueiro, 2010.


Já deve fazer uns dez anos desde que eu li essa série. Depois de várias leituras realistas, meio sérias até, eu olhei pra minha estante, vi estes cinco livros dando sopa. Ah, quer saber? Acho que já está na hora de revisitar. Lembro que na primeira vez que li achei fantástico, genial, e que, com certeza, valeria a pena ler de novo. E aqui estou.

Este é o primeiro livro da série "O Guia do Mochileiro das Galáxias". Um absoluto clássico. É ficção científica, comédia, um pouquinho de mistério e muita, muita viagem. Em todos os sentidos possíveis da palavra. Olha só do que estou falando:
"[...] e entrarão no computador para operar seu programa, durante dez milhões de anos! Sim! Eu projetarei este computador para vocês. E eu também lhe darei um nome. E ele se chamará... Terra.
Phouchg olhou para Pensador Profundo, atônito.
– Que nome mais besta – disse ele, [...]" (p. 134)
Olha que eu já conhecia a história, mas estou convencido de que é impossível ler esse livro sem em determinado momento ler uma frase, franzir o cenho, ler de novo enquanto se pergunta "Quê?!". É assim a torto e à direita. Como, por exemplo, quando, ao apertar um botão por acaso, um ser de Betelgeuse ativou o Gerador de Probabilidade Infinita, que gerou um pequenino rompimento no fluxo do espaço-tempo, uma mera agitação de moléculas no passado, que, por acaso, levou à geração de toda a vida existente no universo. Cada página é um exagero de criatividade, cada parágrafo tem repercussões demais!

O livro é cheio de diálogos, o que torna ele dinâmico e ágil. Some-se a isso a narrativa afiada do autor, cheia de descrições enciclopédicas totalmente supérfluas mas das quais nenhum leitor abriria mão. A receita gera uma leitura fascinante. Toda vez que lemos um trecho do Guia (refiro-me ao livro dentro da história), ficamos fascinados com toda a informação inútil que ele nos dá e tristes quando ele se cala e não fala mais.

Acho que o único problema que encontrei nesse livro foi que, conforme vamos chegando no final, o excesso de coisas improváveis acontecendo cansa. Em determinado momento as coincidências são tantas que já parecem fatos soltos, aleatórios, que o autor colocou lá pra fazer a história caminhar do jeito que ele quisesse, só porque... porque sim. 

Isso não torna o final menos interessante, ele até tem um bom gancho para o próximo livro, mas talvez maneirar nas coincidências tivesse gerado uma história mais coesa. Podia aloprar no non-sense, isso com certeza, mas pelo menos encadear os fatos de um modo um pouquinho mais verossímil.

Esta será uma série de pequenas resenhas, porque os livros são curtos e porque se eu tentasse explorar todo o conteúdo que a trama proporciona, teria que fazer faculdade de Letras, apresentar isso no meu TCC, depois entrar pro Mestrado, fazer uma dissertação, bater no liquidificador, pra no Doutorado, enfim, enfiar ela goela abaixo da banca e dizer: "Me engula!".

E um Douglas Adams de outra dimensão verá isso pela tela de um celular, vai olhar para os lados desconfiado e dizer em voz alta pra quem quisesse ouvir: "Tenho nada a ver com isso".

sexta-feira, 15 de abril de 2022

Resenha – A dama de espadas

PUSHKIN, Alexandre. A dama de espadas. Jandira: Ciranda Cultural, 2019.


Ao mesmo tempo em que sinto que aproveitei bem meu tempo lendo esse livro, sinto que fui enganado. O jeito mais fácil de explicar isso é indo direto à resenha.

Falando de edição. Um livro? Não, um livreto. Pra ser bem honesto, se não eu não tivesse pago uma pechincha por ele, teria me sentido enganado. Acontece é que a história é na verdade apenas um conto, não um romance. Por isso, o editor criou uma capa bem bonita, ilustrações chamativas e letras bem grandes, com margens bem amplas, tudo pra preencher as poucas oitenta páginas que o livro tem. Dá pra perceber que é pra fazer volume. 
"O jogo me ocupa intensamente – disse Hermann –, mas não estou em condições de sacrificar o indispensável na esperança de obter o supérfluo." (p. 14)
Totalmente inegável que a trama é muito interessante e não sem presença de excelentes reviravoltas! Acompanhamos a história de Hermann e o estranho caso da Condessa de *** que certa feita ganhou uma fortuna apostando num jogo de cartas. Há outros breves personagens, mas a história é mesmo sobre esses dois.

O autor em alguns momentos é muito gentil em nos situar na história e eu sou grato a ele por isso. Às vezes talvez nem seria necessário, mas quando ele o faz isso deixa a leitura tão mais fácil! Me pergunto se às vezes não custa dar um ou outro trocado ao leitor pra facilitar um pouco a vida dele. Nem todo mundo gosta de ler pra se complicar, às vezes é só pra relaxar.

Vê-se a influência do francês. Estamos na época da belle époque afinal de contas. No começo de cada capítulo há epígrafes e várias delas estão em francês. Neste ponto me pergunto se não teria sido melhor que o tradutor colocasse todo o livro em português e deixasse para as notas de rodapé as expressões originais em francês – e não o contrário, como acabou ficando.

Bom, no fim das contas, o livro é muito curtinho pra causar impacto suficiente. O final conquanto não seja totalmente previsível, ao mesmo tempo não surpreende em quase nada. Cria-se muita expectativa em um espaço muito curto pra o autor se relacionar com os personagens ou se importar com o destino deles. 

Tendo dito isto, se o livro estiver bem bem baratinho, acho que vale a pena. Caso contrário, talvez uma coletânea com obras de Pushkin possam valer mais a pena. Comprei a obra pra conhecer melhor esse autor russo, mas findou que ainda não o conheço. Uma coisa é certa: ele promete.

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Resenha – 1984

ORWELL, George. 1984. Jandira: Tricaju, 2021.

"Liberdade é ser livre para dizer que dois mais dois são quatro. Se isso estiver garantido, todo o resto é consequência." (p. 90)
Então, né. Como é que eu faço pra resenhar esse livro. É praticamente impossível escrever um texto que contenha tudo que esse livro tem pra dizer. É mais do que uma distopia onde o personagem Winston começa a discordar do Partido e questionar a própria realidade. É mais do que um livro de ficção, é quase um manifesto sobre o futuro, um guia para a distopia do presente.

Pra seguir um padrão, começo falando que a edição (outro paperback) é dessas mais recentes que tem assumido o bom padrão BBB que citei na última. Aliás, "BBB" vem a calhar para essa resenha, uma vez que estou falando do livro que deu origem ao termo "Big Brother" (o Grande Irmão). Eventualmente explico o quero dizer por paperback.

Sobre a narrativa como um todo, confesso que achei a primeira parte um pouco devagar demais, ainda que boa pra construir o cenário e tudo mais. A parte do livro de doutrinação foi longa demais, boa parte daquilo podia ser traduzido direto na trama, sem necessidade de uma descrição longa. O livro é tão interessante que a sensação que tive é que o autor perdeu tempo com aquilo, quando haveria coisa melhor para se falar (e que eu estaria doido pra ouvir).

Em mais de um momento, senti que houve uma forçada do autor, especialmente na terceira parte. Mais de uma vez o diálogo de Winston e O'Brien foi meio engatilhado demais. Cheio de respostas e deduções "óbvias" mas que, na verdade, são mera construção e não carregam em si a verdade, se não o discurso e aparência de verdade.

Ainda na trama, penso que há um erro na teoria geopolítica de 1984: a guerra não é sustentável por tanto tempo. Eventualmente se percebe que a guerra traz mais prejuízo do que lucro (vide a própria Guerra Fria, que pautava a existência de Orwell e por muito tempo foi o guia definitivo das Relações Internacionais – sim, estou falando de Kenneth Waltz). Mas entendo que foi o jeito que o autor encontrou pra justificar seu cenário.

E já que comecei a falar bonito, vamos abordar o que esse livro tem de mais precioso, que são as coisas que nos fazem pensar (por falta de expressão melhor). Orwell teve um insight fenomenal sobre como a sociedade caminharia no futuro. Um absurdo a capacidade do autor em pré-ver muitas nuances da sociedade contemporânea, onde a privacidade é bem distinta de séculos passados e a massificação quase um processo natural.
"E se todos os demais aceitavam a mentira que o Partido impunha, se todos os registros contavam a mesma história, então a farsa era incorporada à História e se tornava verdade." (p. 42)
Em mais de um momento, me pareceu que ele estava descrevendo regimes que hoje mesmo existem, com direito a manipulação da História, mentiras oficializadas, só falta mesmo a criação de um novo idioma que possa ser usado para fins ideológicos. 

Preciso falar da ideia do novidioma ou novafala (dependendo da tradução). Mas antes quero destacar que não creio e não concordo com essa objetificação do idioma e da História. Pra mim, você pode até instrumentalizar essas coisas; mas sempre haverá a Verdade, sempre haverá o Passado. Você pode não lembrar dele, você pode nem saber dele. Mas isso não significa que ele não existiu. 

No momento que tornamos a realidade externa como parte da nossa construção interna, na verdade distorcemo-na para encaixar na construção do nosso raciocínio. Eu acredito que mesmo que o mundo inteiro não acredite na Verdade, ela ainda existe. Porque (ainda bem!) ela não depende de mim ou de você.
"Existiam a verdade a mentira, e, se você se agarrasse à verdade, mesmo que contra o mundo inteiro, você não seria louco." (p. 233)
Quem primeiro traduziu fez um trabalho excepcional com a adaptação do Novidioma ao português. As palavras fazem sentido e algumas ganham sentido próprio fenomenal. Sim, estou falando de duplopensar.

De tudo que tenho pra falar da ideia de um idioma que fosse capaz de tolir o pensamento das pessoas, "duplipensar" ou "duplopensar" vale a pena ser comentado. Não só porque gostei da ideia, mas especialmente porque tenho visto esse conceito acontecer no mundo real, no aqui e no agora (novamente tirando o chapéu pra capacidade de Orwell em prever o futuro).
"Duplopensar significa a capacidade de manter simultaneamente duas crenças contraditórias e aceitar ambas." (p. 229)
Matar é errado. Mas eu posso se não gosto daquela vida. O que o meu oponente faz é crime. Quando aquele que eu apoio faz, é um ato de bravura e heroísmo. Sou capaz de negar a realidade objetiva ao mesmo tempo em que creio nas mentiras que o meu grupo criou para sustentar sua narrativa. Tudo isso não soa familiar?
"Sua mente imergiu no mundo labiríntico do duplopensar. Saber e não saber, ter consciência da veracidade completa e ao mesmo tempo contar com cuidado mentiras inventadas, manter simultaneamente duas opiniões que se anulavam, sabendo que eram contraditórias e acreditando em ambas [...]" (p. 43)
Essa ideia é tão presente hoje que (e eu sei que me repito) me assusta a capacidade de Orwell. E olha que nem estou falando da "teletela", um aparelho que fica dentro da casa das pessoas, monitorando cada pequeno aspecto de sua vida, vendo e ouvindo tudo que ela faz e fala para, se possível, prever até mesmo seus pensamentos, vontades e gostos. (Celular, anyone?)

É por essas e outras que este livro definitivamente vai ficar na minha estante. Eu mesmo não sabia que gosto tanto de distopias. Sei lá. A sensação constante de perigo, talvez o medo de que aquela realidade possa um dia ser verdade (!), o fato de torcer pro personagem ser capaz de quebrar com o sistema. São só algumas das características que com certeza me farão revisitar essa obra no futuro. Mais do que recomendado.

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Resenha — Madame Bovary

FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Jandira: Principis, 2020.


Inegável grata surpresa quando a gente pega um livro pra ler e se deixa levar por ele. Por outro lado, é certo que Madame Bovary não é um livro desconhecido do mundo; mas, para mim, era. Só tinha ouvido falar do título, sequer conhecia o autor. Por isso, foi realmente uma boa surpresa ter este livro em mãos.

A edição é o que tem se convencionado ser o estilo "paperback brasileiro", com as dimensões tradicionais de 21x14,5 e com acabamento interno bem simples. A gente percebe que a gramatura das páginas não é das melhores, mas isso não impede uma boa leitura, uma vez que a editoração foi bem feita. É aquela história: não precisa ser chique, só precisa ser bem feito. E acho que a editora Principis acertou em cheio com essa edição. O BBB que o Brasil ama de verdade: bom, bonito e barato.

Quanto à tradução, em mais de um momento me peguei numa relação de amor e ódio com o tradutor. Se por um lado achei fantástico que ele traduzisse maneirismos e coloquialismos de modo bem escrachado, por outro acho um saco ter que procurar um dicionário pra encontrar o significado de uma palavra que poderia muito bem ter sido traduzida por um termo contemporâneo sem que nada do significado fosse perdido. Talvez encontrar o meio termo seja a solução afinal.

Achei a construção do texto interessante. A narrativa tem algo curioso: está num equilíbrio interessante entre o descrever e narrar demais. Vale notar, mais uma vez, a quebra da máxima de show, don't tell. Não é nem o primeiro nem o segundo clássico em que vejo autores quebrando descaradamente essa regra e... tudo dando certo! Talvez não seja uma máxima tão máxima assim.

Em mais de um momento, porém, senti que havia descrições demais e uma narração sem fim. Mas, por outro lado, depois de ler alguns trechos que julgava totalmente supérfluos, pairava sobre mim aquela sensação de que havia algo ali, embaixo da superfície, que talvez eu apenas não estivesse vendo a princípio. Quase, apenas quase, cedi ao impulso de analisar melhor e descobrir intenções e símbolos do autor. Porém, considerando o trabalho próprio à análise, pensei: "meh".

Porém, devo tirar o chapéu pra alguns destes momentos que serviram para criar simbolismos sensacionais (estes foram os que eu consegui ver). Cito apenas esse, que ocorre logo após o encontro de Emma com um dos seus aspirantes: 
"Ela não sabia que, no terraço das casas, a chuva forma lagos quando as calhas estão entupidas, e se manteve assim segurança, quando de repente descobriu uma rachadura na parede." (p. 112)
O simbolismo acima está diretamente ligado com a trama. Encontramos um jovem chamado Charles Bovary, um médico sem ambição, sem espinhaço, um autêntico bunda mole. Ele se casa com a sonhadora Emma (que se torna, então, a Madame Bovary). Uma jovem realmente tenra, amante da leitura, dos romances, dos versos e das artes. O que nós vemos na história, é a sua contínua decadência em casos amorosos e perversão moral. 

No começo temos a visão de um casamento feliz, que mostra felicidade das coisas pequenas do dia a dia. Mas não tarda até que ela se entedie e busque outras aventuras. O verdadeiro problema de Emma é que ela se viciou no thrill da novidade, da descoberta. E tudo isso sempre dura muito pouco, até que chega o ponto em que ela precisa de algo novo, de algo que desperte nela aquelas sensações de novo. E, conforme ela avança, o mesmo já não é suficiente, ela acaba precisando de algo mais – e esse "mais", ela só encontra conforme se afunda, afunda, afunda.

Ela foi egoísta do começo ao fim. Prezava pelo seu próprio bem-estar, não se preocupando com as consequências que seus atos trariam a outros. E o que vemos, de modo muito bem trabalhado pelo realismo do autor, é justamente as consequências que sobrevêm sobre aqueles que estão tão perto do conflito e, ao mesmo tempo, tão ignorados (refiro-me aqui à sua filha).

Madame Bovary findou controladora, tornou-se ela própria a condutora de um relacionamento abusivo (coisa que, infelizmente, aprendera com outro). E conforme a loucura se instalava, restou-lhe apenas descer a níveis cada vez mais absurdos. No fundo, ela nunca aprendeu que o amor não apenas nasce, se constrói.

Emma criou um ideal inalcançável (e assim não são todos os ideias?). Como resultado, ela conseguia apenas alcançar o vislumbre deles. Quando o vislumbre findava e ela via que seu ideal não era o que ela realmente tinha em mãos, desgostava-se da vida. Meu Deus! Será que as vezes eu vivo descontente porque faço exatamente a mesma coisa? 

E é justamente por causa desse tipo de reflexão que posso concluir dizendo que o livro vale muito à pena. Já disse isso em mais de uma ocasião e vale repetir: clássicos não são clássicos à toa. Perto do final o livro ganha um ritmo alucinante e não realmente não dá pra desgrudar da leitura. Não tem como, livro super recomendado.