quinta-feira, 14 de abril de 2022

Resenha – 1984

ORWELL, George. 1984. Jandira: Tricaju, 2021.

"Liberdade é ser livre para dizer que dois mais dois são quatro. Se isso estiver garantido, todo o resto é consequência." (p. 90)
Então, né. Como é que eu faço pra resenhar esse livro. É praticamente impossível escrever um texto que contenha tudo que esse livro tem pra dizer. É mais do que uma distopia onde o personagem Winston começa a discordar do Partido e questionar a própria realidade. É mais do que um livro de ficção, é quase um manifesto sobre o futuro, um guia para a distopia do presente.

Pra seguir um padrão, começo falando que a edição (outro paperback) é dessas mais recentes que tem assumido o bom padrão BBB que citei na última. Aliás, "BBB" vem a calhar para essa resenha, uma vez que estou falando do livro que deu origem ao termo "Big Brother" (o Grande Irmão). Eventualmente explico o quero dizer por paperback.

Sobre a narrativa como um todo, confesso que achei a primeira parte um pouco devagar demais, ainda que boa pra construir o cenário e tudo mais. A parte do livro de doutrinação foi longa demais, boa parte daquilo podia ser traduzido direto na trama, sem necessidade de uma descrição longa. O livro é tão interessante que a sensação que tive é que o autor perdeu tempo com aquilo, quando haveria coisa melhor para se falar (e que eu estaria doido pra ouvir).

Em mais de um momento, senti que houve uma forçada do autor, especialmente na terceira parte. Mais de uma vez o diálogo de Winston e O'Brien foi meio engatilhado demais. Cheio de respostas e deduções "óbvias" mas que, na verdade, são mera construção e não carregam em si a verdade, se não o discurso e aparência de verdade.

Ainda na trama, penso que há um erro na teoria geopolítica de 1984: a guerra não é sustentável por tanto tempo. Eventualmente se percebe que a guerra traz mais prejuízo do que lucro (vide a própria Guerra Fria, que pautava a existência de Orwell e por muito tempo foi o guia definitivo das Relações Internacionais – sim, estou falando de Kenneth Waltz). Mas entendo que foi o jeito que o autor encontrou pra justificar seu cenário.

E já que comecei a falar bonito, vamos abordar o que esse livro tem de mais precioso, que são as coisas que nos fazem pensar (por falta de expressão melhor). Orwell teve um insight fenomenal sobre como a sociedade caminharia no futuro. Um absurdo a capacidade do autor em pré-ver muitas nuances da sociedade contemporânea, onde a privacidade é bem distinta de séculos passados e a massificação quase um processo natural.
"E se todos os demais aceitavam a mentira que o Partido impunha, se todos os registros contavam a mesma história, então a farsa era incorporada à História e se tornava verdade." (p. 42)
Em mais de um momento, me pareceu que ele estava descrevendo regimes que hoje mesmo existem, com direito a manipulação da História, mentiras oficializadas, só falta mesmo a criação de um novo idioma que possa ser usado para fins ideológicos. 

Preciso falar da ideia do novidioma ou novafala (dependendo da tradução). Mas antes quero destacar que não creio e não concordo com essa objetificação do idioma e da História. Pra mim, você pode até instrumentalizar essas coisas; mas sempre haverá a Verdade, sempre haverá o Passado. Você pode não lembrar dele, você pode nem saber dele. Mas isso não significa que ele não existiu. 

No momento que tornamos a realidade externa como parte da nossa construção interna, na verdade distorcemo-na para encaixar na construção do nosso raciocínio. Eu acredito que mesmo que o mundo inteiro não acredite na Verdade, ela ainda existe. Porque (ainda bem!) ela não depende de mim ou de você.
"Existiam a verdade a mentira, e, se você se agarrasse à verdade, mesmo que contra o mundo inteiro, você não seria louco." (p. 233)
Quem primeiro traduziu fez um trabalho excepcional com a adaptação do Novidioma ao português. As palavras fazem sentido e algumas ganham sentido próprio fenomenal. Sim, estou falando de duplopensar.

De tudo que tenho pra falar da ideia de um idioma que fosse capaz de tolir o pensamento das pessoas, "duplipensar" ou "duplopensar" vale a pena ser comentado. Não só porque gostei da ideia, mas especialmente porque tenho visto esse conceito acontecer no mundo real, no aqui e no agora (novamente tirando o chapéu pra capacidade de Orwell em prever o futuro).
"Duplopensar significa a capacidade de manter simultaneamente duas crenças contraditórias e aceitar ambas." (p. 229)
Matar é errado. Mas eu posso se não gosto daquela vida. O que o meu oponente faz é crime. Quando aquele que eu apoio faz, é um ato de bravura e heroísmo. Sou capaz de negar a realidade objetiva ao mesmo tempo em que creio nas mentiras que o meu grupo criou para sustentar sua narrativa. Tudo isso não soa familiar?
"Sua mente imergiu no mundo labiríntico do duplopensar. Saber e não saber, ter consciência da veracidade completa e ao mesmo tempo contar com cuidado mentiras inventadas, manter simultaneamente duas opiniões que se anulavam, sabendo que eram contraditórias e acreditando em ambas [...]" (p. 43)
Essa ideia é tão presente hoje que (e eu sei que me repito) me assusta a capacidade de Orwell. E olha que nem estou falando da "teletela", um aparelho que fica dentro da casa das pessoas, monitorando cada pequeno aspecto de sua vida, vendo e ouvindo tudo que ela faz e fala para, se possível, prever até mesmo seus pensamentos, vontades e gostos. (Celular, anyone?)

É por essas e outras que este livro definitivamente vai ficar na minha estante. Eu mesmo não sabia que gosto tanto de distopias. Sei lá. A sensação constante de perigo, talvez o medo de que aquela realidade possa um dia ser verdade (!), o fato de torcer pro personagem ser capaz de quebrar com o sistema. São só algumas das características que com certeza me farão revisitar essa obra no futuro. Mais do que recomendado.

0 comentários:

Postar um comentário