sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Resenha - Farenheit 451

BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. 2ª ed. São Paulo: Globo, 2012.


Fala, meu povo! Estamos aí com mais uma resenha distópica. Não sei por que mas todos estes últimos livros que comprei são bem com essa temática. Pra ser sincero, acho que me deixei levar mais pelos títulos e a hype do que pelo conteúdo. Mas eu diria que valeu a pena. E já me adianto: não ficou uma beleza essa capa minimalista?

Em Fahrenheit 451 estamos num futuro distante (pelo menos uns cinco séculos a nossa frente), onde acompanhamos a história de Guy Montag, um bombeiro que começa a questionar se o seu trabalho é mesmo a coisa certa a fazer. Isto porque neste futuro, os livros são proibidos e a função dos bombeiros é queimar as casas de pessoas onde há livros armazenados. Em suma, é isso.

Quanto ao estilo do livro não tenho muito a comentar, senão a evidente ausência de capítulos – algo que, pra mim, foi meio chato. Digo isto porque estou acostumado a usar capítulos como pontos de parada na leitura. Mas não é nada demais, só questão de costume.

A tradução ficou excelente. Não li no original, mas percebi algumas escolhas do tradutor que vieram a calhar muito bem com a cultura brasileira e expressar de modo mais claro o que o texto original quis dizer. Está de parabéns.

Ainda sobre o estilo, é preciso deixar claro: não se trata de ficção científica, mas de uma distopia. Na ficção científica, boa parte do conteúdo da história precisa estar atrelado a um reflexo do conflito homem-máquina ou homem-tecnologia. E não é este o caso aqui, uma vez que o conflito está muito mais para homem-homem.

Cara, novamente encontrei erros de digitação que não deveriam ter passado. Sinceramente, não sei se é por que antigamente eu não prestava atenção nisso ou se as editoras têm ficado cada vez mais relapsas; mas este não era o tipo de coisa que eu costumava ver. E nem era o tipo de coisa que a editora Globo devesse ter deixado passar. 

Por fim, alguns trechos eu acho q passam devagar demais. Falo daquela reunião com os outros exilados em que há uma série de elucubrações que me parecem desnecessárias para a história. Isto acontece, na verdade, em mais de um momento. Embora em alguns destes eu tenha detectado que o autor fez isso de propósito, mostrando a alienação de personagens (especialmente Mildred, a esposa de Montag), que se apegam a coisas fúteis e efêmeras em vez de atentar para as grandes questões.

E com esse gancho acho que posso falar um pouco da história em si. Veja bem, como se trata de uma distopia, estamos falando de uma sociedade estratificada, que passou por um processo de burrificação geral, quase paranoica. Isso, pra mim, tem horas que é maluco demais. Embora eu entenda o propósito do autor, fica arenoso demais para um entendimento mínimo que é necessário.

Embora eu precise reconhecer que tratava-se de um pioneirismo exorbitante para a época, confesso que agora as teorias da conspiração de uma distopia tão absoluta já me cansam. Acho que isso se dá, especialmente, porque eu não acredito que algo assim possa acontecer e, portanto, trata-se de algo inverossímil.

Mas são as mensagens e reflexões do livro que o tornaram um marco tão importante na literatura do século passado. Pra começar, é evidente que há sim no livro um pouco de "tecnofobia". Eis aqui neste livro uma das origens da fobia à televisão que perdurou até meados dos anos 2000. Mas é necessário enxergar isso dentro do contexto em que o livro foi escrito.

Vejam bem, o livro publicado na década de 1950 e o mundo desta época tinha acabado de sair da II Guerra Mundial, que transformou as bases de todo um pensamento filosófico. Entendam, desde o século XIX as pessoas acreditavam que a tecnologia e o progresso seriam a grande salvação da humanidade, e isso até fazia sentido. Mas quando as pessoas se depararam com o auge da tecnologia – a bomba atômica – e o potencial que a tecnologia tinha para erradicar a raça humana, as perspectivas mudaram.

Daí a necessidade de enxergar essa tecnofobia (especialmente direcionada à televisão) que Bradbury fez de modo descarado no livro. Havia também a predição aí de que os livros impressos estariam fadados à morte. Predição essa que, graças a Deus, não se cumpriu.

Ainda nessa questão, não precisa ser um crítico literário pra identificar que Fahrenheit 451 faz uma pesada apologia ao uso e preservação do livro. A isto soma-se o brilhantismo do autor em usar uma metalinguagem realmente muito à frente do seu tempo. Aliás, todo esse trecho da defesa e importância do livro é um absurdo de tão bem escrita:
"Os livros eram só um tipo de receptáculo onde armazenávamos muitas coisas que receamos esquecer. Não há neles nada de mágico. A magia está apenas no que os livros dizem, no modo como confeccionavam um traje para nós a partir de retalhos do universo." (p. 107-108)
Além dessa questão, o autor faz um excelente crítica ao hedonismo. E noto que isso é até algo comum entre as distopias. Se lembrarmos de "admirável Mundo Novo" e sua "soma", temos a exata mesma receita: uma sociedade "avançada" cuja receita da "felicidade" é tão plena, que o seu cidadão têm dificuldade de lidar com a realidade.

E, claro, é evidente que há um componente político muito forte na obra (como é natural de todas as distopias também). Existe aqui uma crítica real à enxurrada de informações às quais as pessoas são submetidas e a consequente incapacidade de processamento qualitativo delas, o que leva (e aqui eu não tenho como discordar) a um processo de burrificação em massa.

Não quero me alongar muito nessa questão, porém mais dia menos dia vou acabar escrevendo alguma coisa que mostra de maneira bem clara qual é a minha posição política e o porquê dela. Mas, por enquanto, quero apenas trazer à tona essa citação: 
"Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas um." (p. 84)
Por fim, quero trazer uma crítica ao mau uso deste livro por diferentes grupos políticos. Interessante notar que, na história, são as próprias minorias que iniciaram todo o processo de queima dos livros, pegando aqueles textos que falavam coisas com as quais não concordavam ou acreditavam. O autor não mencionou isto por acaso, mas tem uma opinião bem severa sobre o assunto:
"Cada minoria, seja ela batista, unitarista; irlandesa, italiana, octogenária, zen-budista; sionista, adventista-do-sétimo-dia; feminista, republicana; homossexual, do evangelho-quadrangular, acha que tem a vontade, o direito e o dever de esparramar o querosene e acender o pavio." (p. 211)
Ele inclusive é ferrenho com uma série de críticas que recebeu de diferentes grupos feministas quando estes abordaram que muitos de seus livros e peças de teatro não tinham partes expressivas para mulheres. Em outra ocasião, foi um grupo negro que recomendou que ele reescrevesse uma história para inserir nela um personagem negro. Sobre tudo isso, o autor é categórico:
"Pois este é um mundo louco e ficará mais louco se permitirmos que as minorias [...] interfiram na estética." (p. 212)
E, neste ponto, por mais que eu não acredite em distopias malucas e totalitárias em nível tão amplo, não dá pra deixar de se assustar com algumas predições que acertaram na mosca, especialmente esta última, em que nossa arte é cada vez mais guiada por padrões externos à própria arte, delimitando não só a estética, mas oprimindo o artista.

A verdade é que o mundo está ficando sim cada vez mais maluco. Não se trata de discriminação, se trata de uma ultra-sensitividade que quer nos homogeneizar e fazer justamente o oposto do que tanto prega: eliminar as diferenças e, assim, tornar o mundo um lugar mais cinza, feio e árido.

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