segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Resenha - Solo de clarineta: memórias – I

VERÍSSIMO, Érico. Solo de clarineta: memórias – I. São Paulo: Globo, 1995.


A verdade é que eu não tinha estrutura emocional pra ler esse livro e não sabia. Não sabia. Aqui está a primeira parte da autobiografia de Érico Veríssimo. É isso. Não tem muito o que apresentar aqui, vamos à resenha mesmo.

Vejo-me numa posição privilegiada ao ler este livro. Aqui encontro um Érico Veríssimo já idoso, caminhando pros 70 e contando a história da sua vida. E, enquanto o faz, sempre mostra como diferentes personagens ou situações de seus livros foram inspirados na sua própria vida. Digo que sou privilegiado não apenas por conhecê-lo melhor, mas porque já li toda a sua obra e sempre sei ao que ele se refere quando menciona seus romances.
"Creio necessário esclarecer que a família Cambará não é positivamente uma projeção dos Veríssimo no domínio da ficção, assim como Santa Fé não é uma cópia de papel carbono de Cruz Alta." (p. 14)
Estou chocado com a coragem de Érico Veríssimo em se expor. Fala não só da família, como também tem a ousadia de falar de suas próprias dúvidas e anseios sexuais na infância e adolescência. Some-se a isso sua capacidade de descrição absurda. Uma coisa é descrever algo que você cria do zero, outra é descrever algo real que existe na sua memória. Tenta aí pra você ver como é difícil. E, mesmo assim, Veríssimo o faz.

Esse é um livro, primordialmente, de história. Ele conta uma história, uma narrativa, claro; mas é parte da História com "H" maiúsculo, uma vez que ele está narrando fatos, não uma construção ficcional. E por isso é muito interessante a gente ler sempre pensando no que estava acontecendo na História nacional e internacional. Pra citar só um dos vários exemplos, olha só ele num contexto de pandemia:
"Em 1918 a influenza espanhola atirou na cama mais da me metade da população de Cruz Alta, matando algumas dezenas de pessoas. Não se dignou, porém, contaminar-me. Lembro-me da tristeza de nossas ruas quase desertas durante o tempo que durou a epidemia, e dos dias de calor daquele dramático novembro bochornoso." (p. 120)
Não fica muito claro em que ponto se deu a gênese do autor. Mas na casa dos 20 anos, Érico Veríssimo já escrevia contos que nunca publicava e era um devorador de livros não só em português, mas como em francês e inglês. Tem um ponto que sempre é comum a todos os grandes escritores: lê-se muito.

E isso não cansa de me chocar. Enquanto Stephen King já namorava a literatura desde a infância, eu encontro aqui um Érico que sabia fazer desenhos, amava a ópera e vez ou outra arriscava uns versos (poesia!), quiçá alguns contos que nunca chegou a publicar. Marrapaz! Será que este é o mesmo Érico Veríssimo que eu tanto admiro e conheço? Um cara que é dono de uma farmácia em Cruz Alta, que tem suas escapadelas com mulheres, que vive uma vida... comum... 

Aqui fica muito clara aquela dica que todo mundo dá para os jovens escritores: escreva sobre algo que você conhece. É isso. A vida de Érico Veríssimo poderia ser facilmente um livro de ficção escrito por ele mesmo. Em cada pequena anedota, em cada personagem, em cada fato que ele narra, eu encontro as sementes de diferentes cenas de seus livros, ideias e até mesmo pessoas. 

Quando ele saiu de Cruz Alta rumo a Porto Alegre com a resolução de se tornar escritor, eu fiquei triste. Porque neste ponto a história dele e a minha começam a ficar muito diferentes. Porque no fundo, eu sei que não consigo fazer o que ele fez. Estou para sempre preso à minha Cruz Alta. Sem o networking que ele fez em Porto Alegre, duvido que tivesse conseguido galgar os degraus necessários.

Quando Érico Veríssimo passou a se dedicar à editora Globo, esta ganhou muito mais do que um escritor; mas também um produtor com olhar arguto pra escolher quais obras publicar e traduzir, conquistando aí direitos autorais para várias obras estrangeiras de grosso calibre.

Caramba só agora que me toquei: Érico Veríssimo nunca terminou sequer o Ensino Médio.

Não sei que lições ele quis passar quando escreveu suas memórias. Mas, puxa vida!, não tem como não enxergar tudo isso e se maravilhar. Nem parece que é a história do maior escritor brasileiro de todos os tempos; mas de um conhecido da família que sempre tivemos curiosidade em conhecer mais. O que torna evidente, mais do que nunca: Érico Veríssimo é o mestre da fantasia do cotidiano.

E aqui nós podemos ver, claro muitos reflexos de tudo que ele viveu na sua própria literatura. Das muitas coisas que há para falar, também vou destacar só uma: o pai dele, Sebastião Veríssimo, que seria uma inspiração indireta para vários outros personagens. O temperamento do pai dele foi algo que marcou praticamente todos os grandes homens de O tempo e o vento.

Não entendo que capacidade absurda é essa que Érico Veríssimo tem de fazer a gente se emocionar com o que ele escreve. Não acredito que alguém consiga ler o trecho que ele fala do conflito com o pai bêbado sem lágrimas nos olhos. Aliás, e o que falar daquela despedida? Não tô nem aí: eu chorei de soluçar.
"Na minha opinião o que importa mesmo não é homenagear os mortos, levando-lhes regularmente flores às sepulturas, pois isso é formal e fácil. O que me parece da maior importância é tratá-los bem, com amor se possível, enquanto estão vivos." (p. 194)
Mas o que importa mesmo de uma biografia não são tanto os fatos, porque isso talvez a gente até consiga em outros lugares. O que importa mesmo são as marcas do que esta vida significou. E, meu amigo, como significou. 

Com o prestígio que galgou com Olhai os lírios do campo e várias outras conquistas literárias, Veríssimo se tornou uma referência nacional e internacional da nova literatura brasileira. Foi convidado para visitar os EUA com tudo pago pelo governo (conforme narrado em Gato preto em campo de neve) e depois voltou a ser convidado para morar lá por dois anos (visto em A volta do gato preto). Mas isso eu já sabia. O que não sabia é que ele foi convidado para ser Diretor do Departamento de Ações Culturais na então União Pan-Americana, que hoje é a Organização dos Estados Americanos (OEA), cargo que exerceu por 03 anos em Washington!

Impressionante como são realmente poucas as coisas que sobrevivem ao teste do tempo. Em determinada seção do livro, Érico descreve seu amor pelo cinema e as primeiras vezes que assistiu algo, ainda criança. O que me impressiona é que ele vira vários atores e filmes dos quais eu nunca ouvi falar. E o mesmo se repete para músicos e alguns escritores. Afinal de contas, acho que ele próprio foi um dos poucos que sobreviveu ao teste do tempo. 

Veríssimo argumenta que a indústria Hollywoodiana do começo do século passado ajudou a fomentar e solidificar alguns paradigmas de racismo presentes no imaginário americano, colocando o estrangeiro (ou mesmo o nacional) de pele escura como vilão ou bandidos em quase todos os filmes.

Ainda falando de marcas, vale lembrar que Érico Veríssimo era polêmico, porque seus livros mostravam a realidade dura da sociedade. Acusado de comunista, ele até tinha simpatia pela teoria, mas na prática não quis se associar à esquerda, porque detestava todo tipo de totalitarismo. Um homem com apurado e admirável senso político.

Ao falar de sua literatura, na parte final ele se dedica a contar como foi o processo de escrita de "O Tempo e o Vento", que ele já havia planejado pra ser sua magnum opus. Interessante notar (e não poderia ser diferente) que a pesquisa foi parte essencial de todo esse tratado histórico sobre a família Terra-Cambará.
"[...] nunca morri de amores pelo regionalismo e, para ser sincero, tinha e ainda tenho para com esse gênero literário as minhas reservas, pois acho-o limitado e, em certos casos, com um certo odor e um imobilismo anacrônico de museu." (p. 288)
You and me both, Érico. You and me both. Porém, diferente de mim, Érico Veríssimo percebeu que estava sentado numa mina de ouro, porque a história de toda aquela região tinha tudo para ser épica e caracterizar uma verdadeira saga que marcaria a história da literatura brasileira. Ele sabia disso. Não foi à toa que demorou anos pra escrever todas as mais de 2000 páginas que compõem os três tomos de O tempo e o vento.

A verdade, meus caros, é que eu estou a um passo de ter lido toda a obra de Érico Veríssimo. E isso me assusta. Porque depois não o terei mais em novidade, ainda que o tenha para sempre.

Acabou que essa resenha ficou muito mais analítica do que eu esperava. Ela reflete em nada (ou em muito pouco) o tanto que eu me emocionei lendo esse livro. Foi o que disse no começo: eu não estava preparado. Não estava preparado pra conhecer o homem por trás e ver que ele era um ser humano comum, alguém... como eu. E não canso de ver a mim mesmo nele e em vários aspectos da sua história.

Era um homem simples; que detestava extremos; que não tinha medo de falar a verdade, mas que sabia que era necessário ponderar o momento certo de fazê-lo; que amou a literatura e se sacrificou por ela. Um homem que marcou a história do Brasil. 

Ah, Érico, eu queria tanto ter te conhecido.

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