sexta-feira, 23 de junho de 2023

Crônicas do cotidiano — XIV — NO CENTRO CIRÚRGICO (2)

Senti meu corpo sendo arrastado e depois virado de lado. Finalmente me depositaram em cima de alguma coisa macia. Olhei pro lado, a Laryssa estava lá:
— Amo você — eu disse, sorrindo.
— Shh! Você não pode falar.
E eu dormi.

Acordei não sei quanto tempo depois, minha mãe estava ao lado da cama, a Laryssa tinha saído pra comer. Percebi que eu estava de volta no quarto do hospital. Engraçado, eu não sentia dores, nem cansaço. Aliás, eu não sentia nada da cintura pra baixo.

A cirurgia fora um sucesso, durou cerca de uma hora, e me levaram de volta para o quarto. A anestesia fora uma raquidiana (imobilizou a metade debaixo do meu corpo) e eu estava ali mais existindo do que de fato vivendo. Nada me incomodava, mas eu estava preso ali.

Meus pais estavam no quarto e eu contei um pouco do que aconteceu na sala de operação (o que vocês leram na primeira parte desse relato). E não muito tempo depois a Laryssa chegou. Acho que eram umas 15h quando de fato me senti mais acordado. Daí em diante, não há muito mais o que falar. É um doente, num quarto de hospital, esperando o efeito da anestesia passar pra ver se está tudo bem de fato.

Eu ainda não podia comer nem beber água. A recomendação do médico era que a anestesia tinha que primeiro passar. No meio tempo, o acesso que fizeram na minha mão esquerda era o caminho para meu corpo sobreviver. Tomei bastante soro para manter o corpo hidratado, e de hora em hora me aplicavam sei lá quantos remédios (entre antibióticos, anti-inflamatórios, analgésicos e sei lá mais o que). No dia seguinte, um enfermeiro até comentou que ficou impressionado por minha veia ter aguentado tanto sem estourar. Foram mais de 24h recebendo medicamentos e soro direto.

Demorou bastante pra anestesia passar. Devo ter ficado umas 10h ao todo até conseguir sentir de fato toda a parte inferior do meu corpo. Fui sentindo o pé, depois a perna, e aos poucos os movimentos foram voltando.

Muito se fala de comida de hospital, mas eu não tive do que reclamar. Minha janta foi arroz, feijão, frango, batata, suco e gelatina de sobremesa. Claro que eu só fui comer lá pelas 21h, quando já tinha algum movimento do corpo. De qualquer forma, a comida estava era muito boa. No dia seguinte, no café da manhã, eu nem dei conta de comer tudo (café, tapioca, pão, manteiga, cuscuz, maçã). Mas me adianto, porque antes do café teve uma longa noite pra enfrentar, voltemos às humilhações.

Eu ainda estava usando a mesma bata e touca da sala de cirurgia. Fiquei naquela de hora dorme, hora acorda, hora conversa, hora dorme de novo, nesse ciclo que faz a gente perder a noção do tempo. Só fui saber do horário mesmo lá pelas 21h na hora que fui comer (aliás, a Laryssa teve que me dar comida na boca, já que eu não conseguia sentar o suficiente pra comer sozinho).

A enfermeira da noite constantemente me perguntava se eu tinha conseguido fazer xixi e a resposta continuava sendo não. Confesso que aquilo estava me deixando preocupado, porque estava vendo a hora de ela precisar colocar uma sonda em mim. Será que já não bastava de humilhação? Pedi dela um bico de papagaio (sei lá se é esse o nome ou não) pra deixar do lado da cama e eu tentar depois.

Nessa altura eu comecei a perceber que tem várias coisas que nós tomamos por normal e simples, mas que nem todo mundo tem. Eu não conseguia sentar, não conseguia fazer xixi, não conseguia nem comer sozinho. Apenas vislumbres de realidades que são distantes pra mim, mas que naquele momento pude contemplar. Cirurgias são experiências que deveriam nos deixar, no mínimo, um pouco mais humildes.

Minha narrativa desse dia está confusa porque o dia foi todo confuso pra mim. O quarto não tinha janelas, então eu não sabia dizer se o sol estava se pondo ou não. Além disso, durante a madrugada inteira eu era acordado pra tomar diferentes medicações. Por isso relato três momentos distintos, no que considero ser a ordem cronológica.

Inicio pela primeira vez que tive que levantar. Era 1 da manhã (eu acho), quando o enfermeiro veio novamente pra dizer que eu precisava tentar me levantar.
— O senhor precisa tentar — ele insistia.
No fundo eu sei que ele estava certo: ali era o lugar certo pra tentar. Se qualquer coisa desse errado (ponto abrisse, eu desmaiasse, me desse um siricutico) não haveria melhor lugar para estar do que num hospital cheio de enfermeiros e médicos a postos, com medicamentos prontos para uso imediato.

A minha sorte era o que o enfermeiro fez força pra me levantar. Senti uma dor lancinante me cortar o bucho quando finalmente me esgueirei pra beirada da cama e fiquei de pé. A ideia do enfermeiro era que eu andasse de fato, mas não teve nem perigo. Fiquei em pé por alguns segundos e já estava de bom tamanho, precisei deitar de novo. Mais tarde, quando finalmente consegui dar alguns passos, precisei deitar logo em seguida porque aqueles meros três passos foram suficiente para me deixar com enjoo.

O segundo causo ocorreu não muito depois do primeiro, quando finalmente tentei fazer xixi. Não vou entrar em detalhes, apenas descrevo que pedi para ficar sozinho no quarto. E lá estava eu de pé, ao lado da cama, com um bico de papagaio, falando:
— Funciona pelo amor de Deus, isso é para o benefício de nós dois, amigo. Funciona.
Ele funcionou parcialmente naquele momento, mas era tudo que eu precisava. Suspirei com alívio de quem pensa: "Ainda funciona!"

O terceiro causo foi o último da noite antes de eu acordar no dia seguinte. Era, sei lá, umas 3 da manhã, quando eu precisei de alguma coisa (acho que tinha acabado o soro, algo assim) e a Laryssa foi avisar as enfermeiras. Foi então que ela voltou dizendo, sorrindo:
— Você nem sabe, as enfermeiras estão abismadas que você ainda não tá andando. Tem três mulheres aqui nesse bloco que fizeram cesariana e já estão caminhando nos corredores pra cima e pra baixo.

Uf! Aquele golpe no orgulho. Senti o peso daquelas palavras. Olhei bem pra ela, depois olhei bem para dentro de mim mesmo. "Rapaz, a coisa tá feia desse tanto?", pensei. "Vai ser o jeito encarar, né?". Passados poucos minutos eu disse pra Laryssa:
— Chama lá elas pra me ajudarem a andar.

Alguns segundos depois as duas entram no quarto, junto da Laryssa:
— Quer dizer que o senhor vai tentar andar agora?
Eu olhei bem pra cara delas e falei:
— Antes de qualquer coisa. — fiz uma pausa dramática. — É verdade que as mulheres que fizeram cesareana já tão andando?
Todo mundo riu.
— Sim! Só tá faltando você!
Dei um muxoxo e disse:
— Droga. Então bora.

Foram esses os causos dignos de nota daquela noite eterna. Acho que fui dormir de fato perto de 4 da manhã e acordei pouco depois de 7:30 com o café sendo servido. Recebi alta pouco depois de meio-dia (o almoço estava muito bom lá) e caminhei com passos bem lentos até a recepção do hospital, onde a Laryssa me pegou de carro e fui pra casa.

E essa é a história da minha primeira vez no centro cirúrgico.



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