terça-feira, 1 de março de 2022

Resenha – Notas do subsolo

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Notas do subsolo. Porto Alegre: LP&M, 2012.


Antes da resenha, um causo.

Sempre que viajo, preciso de um livro pra ler. É inegociável. Pois bem, estava eu às vésperas de viajar e percebi que queria algo novo para ler, mas que nada que eu comprasse chegaria à tempo da viagem. Percebi novamente que estava sendo burro. Ora! Eu tinha a Biblioteca pública no Palácio da Cultura à minha disposição, bastava ir lá e fazer minha carteirinha! Livros e livros disponíveis de graça pra mim, bastava ir lá, pegar e ler. Pois bem. 

Após reunir os documentos e me dirigir à biblioteca, fiz a carteirinha e fui explorar a seção de livros que podiam ser emprestados (romances e ficção), todo contente. O que descobri, porém, é que não tenho sistema imunológico suficiente para emprestar um livro daquela biblioteca. O mofo e a poeira eram demasiados até mesmo para tocar em alguns casos. 

Chegou ao cúmulo de encontrar uma senhora teia de aranha em uma das estantes. Mas não uma teia, mas uma teia, tipo aquela que Frodo e Sam caíram. Na verdade, fiquei com medo de tocar nela e Aragogue sair pra me capturar e me dar de alimento pros seus filhos. 

Saí de lá bem triste e decepcionado. Não só a biblioteca estava mal abastecida (obras de Dostoiévski por exemplo, se contavam nos dedos os exemplares – e alguns deles ainda eram da mesma obra), como também os livros que estão ali, do meu ponto de vista, são im-prestáveis. Temo que se alguém levar pra casa, o bicho se desfaça no caminho. 

Até que ponto não dá e até que ponto não se quer
Foi este o questionamento que ficou quando desci as escadas da biblioteca, sem nenhum livro na mão e ansiando por um álcool em gel pra me livrar das alergias.

Findado o causo, vamos à resenha.

O que este causo tem a ver com tudo? É que após decidir que não teria outra escolha senão encontrar um livro na minha estante e reler, tive a grata surpresa de pegar esta obra de Dostoiévski que eu já havia lido há tanto tempo que sequer lembrava o conteúdo. Tudo que eu lembrava é que tinha gostado. Ah! E como eu estava certo com essa lembrança. 

Como pode, um livro tão bom desse sentado na minha estante e, pior, ignorado quando uma oportunidade de escolha surgiu. Quantos livos bons não estão sentados em estantes? Essa obra de Dostoiévski foi comentada da seguinte forma: "Notas do subsolo é um verdadeiro golpe de mestre da psicologia." E quem disse isso? Ninguém mais, ninguém menos, que Friedrich Nietzsche. 

Era uma obra desse nível que estava sentada na minha estante. 
"Sou um homem doente... Sou mal. Não tenho atrativos. Acho que sofro do fígado. Aliás, não entendo bulhufas da minha doença e não sei com certeza o que é que me dói." (p. 11)
"Quanto mais consciência eu tinha do bem e de todo esse 'belo e sublime', mais afundava no meu lodo e mais capaz me tornava de atolar-me completamente." (p. 15-16)
Dostoiévski faz nas primeiras páginas deste livro um verdadeiro tratado sobre a Depravação Total: não só ele é mau, como também tem deleite e satisfação em causar o mal a outros; e queda-se indiferente se ele gosta disso ou não, porque percebe que isso é parte da sua própria natureza. Tanto quanto dois mais dois são quatro, ele não o pode negar.

[Curiosidade interessante: toda essa exposição é feita por meio de uma diatribe. (Fica aí a instigação para googlar).]

O livro é dividido em duas partes. Na primeira, há um caráter ensaístico do autor, que usa o personagem para falar da condição humana e tentar refutar várias ideias do seu tempo. Por exemplo, o personagem se nega a acreditar nas ideias do modernismo científico como base do comportamento humano. Ou seja, que há uma série de leis que regem o comportamento humano e basta descobri-las para se prever tudo. Dostoiévski estava à frente do seu tempo, uma vez que estas ideias seriam defendidas por um bom tempo, até eclodirem no caos da II Guerra Mundial e as justificativas "científicas" do nazismo.

Na segunda parte encontramos três episódios da vida do personagem sem nome que nos revelam quem ele realmente é: um homem perturbado, constantemente achando que é superior aos outros ao seu redor e sentindo-se injustiçado por que ninguém reconhece esta superioridade. 

Na verdade, o personagem tem uma espécie de síndrome do pombo enxadrista, com a possível diferença de que às vezes ele nota que é um pombo. Em determinado momento ele até me lembra aquele personagem do Guia do Mochileiro das Galáxias que, não importa a realidade ou tempo, é sempre "perseguido" por Arthur Dent, mesmo quando este sequer reconhece a existência do outro.

O personagem se coloca em situações terríveis e constrangedoras, mas seu orgulho é tamanho que ele só afunda cada vez mais nelas. Em determinado momento, por exemplo, ele tem uma crise nervosa e fica evidente que ele é provavelmente seu maior opressor – ainda que não se possa negar que as outras pessoas também o oprimam devagarzinho, cada um à sua maneira.

Ficamos ao mesmo tempo com pena e agonizando ao ver o personagem agir do jeito que age, aparentemente incapaz de escapar dos ciclos autodestrutivos em que ele mesmo se coloca, incapaz de sair do "subsolo" e todas as ramificações que ele traz.

Por fim, ressalto que amo as edições de livro de bolso. Tem alguma coisa nesses livros pequenos e tão cheios de coisas que me atrai, não sei dizer ao certo o que é. Mas o que vale a pena tirar o chapéu aqui é a tradução. Maria Aparecida Botelho Pereira Soares fez um trabalho excepcional trazendo um Dostoiévski que não fala bonito, mas também não fala feio. Aquele limiar entre a norma culta e o coloquial que só os mestres da arte conseguem dominar.

No fim das contas, não é à toa que pretendo um dia ter a coleção completa com todas as obras de Dostoiévski. O cara é um gênio no qual vale a pena se inspirar.

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