sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Resenha - Cain

MCPHERSON, Brennan S. Cain. Racine: BroadStreet, 2016.


Faz tempo que uma narrativa não me prendia tanto. Faz um bom tempo que não fico tão imerso numa história que esqueço de ver além dela. Nos últimos tempos, toda vez que leio alguma coisa, automaticamente vejo algumas coisas relacionadas à escrita, ao método do autor, a visão vai ficando treinada com o tempo. Mas esse livro foi muito diferente. 

"Cain" conta a história do primeiro assassinato. Essa é uma história que todos conhecemos. Caim e Abel apresentaram suas ofertas diante de Deus; mas Abel deu o melhor de suas ofertas, por isso Deus se agradou dele e rejeitou a de Caim. Isto caminha até o fatídico dia em que Caim mata Abel. Esta é a parte que nós já sabemos, mas... o que acontece depois disso?

McPherson, dotado de uma magnífica criatividade, escreve essa obra de ficção cristã e dá continuidade à história. O cara teve uma sacada fantástica -- tanto que eu gostaria de ter pensado nisso antes -- porque ao escrever sobre fatos do Gênesis, ele consegue preservar a narrativa bíblica sem alterá-la. E como se trata de um tempo em que não há muitos detalhes, ele é livre para transitar na fantasia e criar monstros e demônios sem problemas. 

Mas essa abordagem da fantasia, por incrível que pareça, não foi o que mais me chamou a atenção. Mas a capacidade do autor em descrever os personagens e, principalmente, seus dramas internos foi algo de tirar o fôlego. A gente realmente  sente a dor e a angústia interna do personagem. E eu não estou falando só de Caim não, mas de todo mundo que aparece na história (que, aliás, não é só Adão e Eva não).

Falando em personagens, McPherson (esse miserávi que deve ter a minha idade!) fez uma jogada arriscada que eu não faria: colocou Deus na história e dar-lhe falas. Por outro lado, interessante que, na história esse personagem chama-se Homem. Eu entendi a sacada do autor: o Todo-Poderoso (como é chamado em alguns momentos), quando se relaciona com os seres humanos, é o Deus Filho, o Deus Homem. É Jesus.

Voltando ao enredo, o drama familiar da primeira parte é chocante e intenso, muito bem escrito. O contraste entre o que queremos fazer e o que realmente fazemos -- bem como as consequências disso -- são muito bem exploradas. Todo o enredo é pincelado com fantasia e demonstra uma excelente criatividade do autor; embora, em alguns momentos, as descrições tenham me deixado um pouco confuso na hora de entender as cenas.

Quando a gente chega na parte da Guerra, onde há uma sucessão de nomes e personagens, aí já achei que não ficou tão bom. O texto é bem escrito, mas o leitor se perde nos vários personagens que são apresentados de supetão pra ele; e, pra complicar, se tornam os personagens principais da narrativa, ou seja, o leitor não pode abrir de mão de compreender quem é quem, o que torna bem cansativo.

E, ainda falando dessa parte, não me interessa tanto a batalha ou a guerra quanto as lutas pessoais que travamos e com as quais nos identificamos quando conhecemos melhor os personagens (nossa, como você está mudado, né Gabriel?). Mas eu entendo que isso é um paralelo importante no próprio livro: assim como aconteceu no começo da trama, aqui o autor demonstra o homem buscando com sua própria força estabelecer seu destino, reforçando os fatos anteriores.

Há alguns poucos momentos de muito tell e pouco show, mas isso é tranquilamente eclipsado pelo enredo e o encadeamento muito bem feito. Aliás, o dilema moral do Sumo Sacerdote Calebna é, no mínimo, intrigante. E é muito legal como alguns personagens quebram estereótipos. Vou falar só do Mason, porque gostei muito. 

O autor explica a diversidade genética da humanidade logo nos primeiros filhos de Adão e Eva. Ele diz que toda vez que Eva dá a luz, o filho ou filha sai com características bem distintas. Então hora ela deu à luz uma ruiva e o próximo filho foi um negro, outro foi pardo e mais um loiro, e por aí vai. O mesmo se dá com as filhas de Eva. Mason, portanto, seria filho de Caim.

Mason é um gigante. O autor diz que o punho dele é do tamanho da cabeça de um ser humano. Ele é grande, forte e tem um diferencial: nasceu deficiente. Mason é mudo, incapaz de se expressar com palavras. Mas isto não significa que ele seja menos inteligente ou capaz, pelo contrário, a narrativa demonstra que ele era um dos mais fervorosos. 

Enquanto seus irmãos estava com sede de violência, ameaçando seus próprios familiares, Mason ficava ao lado da mãe, cuidando dela e -- no silêncio que ele tão bem compreendia -- orando ao Deus Todo-Poderoso pela segurança de todos. O gigante bruto e mudo era o mais fiel de todos os seres humanos. 


Como falei, faz um tempo que não fico tão imerso numa história. Há referências a fatos que se desenrolariam no decorrer da narrativa bíblica e isso aumenta a sensação de pertencimento -- especialmente nas partes que se referem a Jesus. Talvez o livro choque alguns leitores por conta das cenas de violência, às vezes um pouco pesadas, mas isso é pouco se comparado ao resto do livro.

A única coisa que me deixou realmente com um pé atrás (além de usar Deus como personagem) foi o retrato de Caim no final. Acho que o autor deveria ter segurado o desejo de redenção. Tudo bem que ele não explicita e deixa na cabeça do leitor, mas a inclinação é clara pra tentar mostrar um Caim redimido quando, nas Escrituras, não temos referência a isso, é bem o contrário.

De qualquer forma, Brennan McPherson teve uma sacada genial, escreveu o tipo de ficção cristã que só agora, em 2019, eu começo a fazer no Brasil; embora, penso, eu esteja num estágio embrionário se comparado ao trabalho dele. Eu falo de personagens não-bíblicos, do Novo Testamento e na forma de contos. Ele fala de personagens bíblicos, do Velho Testamento, na forma de romance.

A sacada dele foi tão boa que ele produziu mais três livros baseados nesse mesmo estilo, todos parte da série "A Queda do Homem": Adam, a história de como foi dada a Vida ao primeiro homem, mas ele escolheu a Morte (este está disponível gratuitamente no site do autor!);  Flood, a história de Noé e a família que o criou; e, o mais recente, Babel, a história da Torre e a rebelião do homem. Não satisfeito com isso, teve uma outra iniciativa, a "Salmos", com o livro "O Caçador e o Vale da Sombra da Morte", uma parábola inspirada no Salmo 23.

Eu não sei vocês, mas taí um cara que vai entrar pra minha estante definitivamente se continuar assim. Mal posso esperar para ler todos os outros livros! 

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