sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Remanso

— Doutor, fui picado por um carapanã no lavrado.
— Quem não foi, né? — ele sorriu. — Deixe eu ver.

Apresentei-lhe minha mão arroxeada e inchada, mostrei bem pra ele as veias onde os vermes passeavam.

— Que é isso?!
— Doutor o senhor já foi a um igarapé num fim de tarde?
— Sim, mas o que isso…
— O senhor sabe aquele horário em que os piuns e carapanãs saem? Bem perto do pôr do sol?
— S-sim.
— Então o senhor sabe que naquela hora, aquela mesma hora, em que Cruviana não sai, fica escondida com medo do silêncio, aquele momento entre a luz e a escuridão em que você tá mas não tá ali, sabe? Em que os buritizais ficam parados, esperando pra ver o que vai acontecer naquela hora específica.

Levantei da maca devagar e caminhei até ele. Minha mão roxa pesava e doía, eu comecei a suar. O médico deu dois passos pra trás, ele olhou pra porta, mas então já não tinha porta porque era o crepúsculo.

— O que tá acontecendo? — tinha medo na voz dele.
— Não tá acontecendo nada, nada mesmo. O senhor não entende que é exatamente isso? Não acontece nada. Não é mais dia, mas também não é mais noite. E só o que resta é o enxame de insetos que vem nos morder, tirar o sangue, a sanidade, porque eles entram no seu olho, no seu nariz, no seu ouvido, e não importa quanto você se debata eles não param de te atacar, porque você é só um e eles são centenas, milhares, centenas de milhares.

E no fundo dos olhos daquele médico eu vi que ele sabia também. Quem é de Roraima sabe. Sabe que quando o mormaço entorpecente vem, não tem rede que resolva, não tem ventilado que aguente, não tem ninguém que consiga suportar. Todo mundo acha que gosta do silêncio, até a hora que ele vem.

O médico continuou recuando até que os pés dele entraram na água do igarapé. A água também corria sem fazer som. Ele estava descalço e agora eu também. Na verdade, estava nu. Porque agora eu já não conseguia impedir o fluxo, e senti quando meus olhos começaram a inchar e o mundo começou a ficar arroxeado e tudo se espalhava. O médico ainda conseguiu gritar:

— O que é isso?! — e já o grito dele estava abafado, engolido pela infinitude do lavrado.
— Silêncio, doutor… — eu sussurrei.

Silêncio…


Conto publicado na Newsletter da revista Égua Literária, disponível AQUI.

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