quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Resenha – Almas mortas

GÓGOL, Nikolai. Almas mortas. São Paulo: Abril Cultural, 1987.


Esse é um daqueles livros que é difícil de resenhar logo depois que se termina a leitura. É que ele reverbera demais, é profundo demais. Não só pelo teor do livro em si, mas pelo próprio destino do autor, que nunca terminou o livro. Na verdade, ninguém jamais saberá o final de Almas Mortas, porque o autor queimou seu manuscrito original, nove dias antes de morrer.

Neste livro acompanhamos a história de Tchítchicov, um ex-funcionário público corrupto, que bolou um esquema para enriquecer: acontece que todos os proprietários rurais (chamados de pomiêchtchik) têm que listar seus servos, ou seja, as almas que têm na sua propriedade e pagar tributos delas ao governo. Porém, o governo só atualiza essa listagem a cada tantos anos (como um censo). E se nesse meio tempo morrer algum servo, o proprietário continuará pagando tributo por ele até o próximo censo, quando finalmente poderá retirá-lo do seu rol de almas.

Como uma alma bondosa, Tchítchicov aparece na propriedade destes latifundiários e oferece para comprar essas "almas mortas", este peso que os proprietários carregam. A brecha que ele encontrou é que, embora as pessoas estejam de fato mortas, elas ainda existem como vivas no papel. E como servos são um tipo de propriedade, ele pode utilizá-los como caução ou moeda de barganha para conseguir altos empréstimos com o governo (e, teoricamente, sumir com a grana).

Só essa explicação já serve pra mostrar bem o caráter da história. Ela não trata de um herói, mas, como próprio Gógol diz, trata de um patife. Gógol ajuda a inaugurar, lá pelos meados do século XIX, o realismo na literatura russa. Ele não tem pena de retratar seu país tal como ele é – e, o mais interessante, isso não diminui em nada o seu patriotismo (embora, veja só, o autor tivesse nascido na Ucrânia). De qualquer forma, dá gosto de vê-lo falar do povo russo.

Aliás, sempre que leio boa literatura russa fico assustado com as semelhanças com o Brasil. Burocracia, coronelismo, servilismo público e tudo que isso traz (da puxação de saco à corrupção). Chega a ser desconcertante tanta parecença. 
[...] a nossa pátria está perecendo, não pela invasão de vinte tribo estrangeiras, mas por nossas próprias mãos. (p. 444-445)
Gógol não chega a ser tão psicológico quanto Dostoiévski. E, justamente por isso, talvez ele consiga transmitir com mais gosto quem é o ser humano. Porque enquanto Gógol não explora com profundidade a psiquê, ele traduz isso de modo fenomenal no próprio comportamento dos personagens, em vários pontos apenas destacando o que já ficou visível ao leitor:
E ficou claro que espécie de criatura é o ser humano: é sábio inteligente e sensato em tudo o que se refere aos outros, mas não a ele próprio. (p. 250)
Deus do céu, que distância imensurável há entre conhecer o mundo e o saber utilizar-se deste conhecimento! (p. 396)
A tradução deste livro foi feita pela finada Tatiana Belinky, que fez um trabalho simplesmente fenomenal. Não sei se Gogol tinha a linguagem acessível que o livro parece ter; mas, ao julgar pelo teor das narrações, ouso dizer que sim. Tudo graças ao exímio trabalho da tradutora, que fez um equilíbrio sensacional entre coloquial e formal:
O dia, ao que parece, foi encerrado com uma porção de vitela fria, uma garrafa de sopa de repolho azedo e um sono ferrado, um ronco puxado, como se dizem algumas partes do vasto império russo. (p. 13, grifos meus)
Some-se a isso o próprio estilo sagaz e quase cômico de Gógol. Quem lê o livro, parece estar diante de um erudito, um sábio, um formalista. Mas quando a gente começa a ler e se depara com essas expressões ou até mesmo algumas construções, não consegue evitar, no mínimo, um sorriso de orelha a orelha com trechos como esse aqui:
[...] adormeceu logo, num sono forte e profundo, um sono maravilhoso como só é dado dormir àqueles felizardos que não conhecem nem as hemorróidas, nem as pulgas, nem os dotes intelectuais excessivos. (p. 156, com destaque para a equiparação de hemorroidas e dotes intelectuais excessivos)
Caramba, que escritor! Aliás, é interessante notar que o livro começa com pura narração, mas não cansa! Pelo contrário, é gostoso de ler. Quero entender o que tem de tão gostoso, saboroso até nessas obras realistas que nos fazem ter tanta vontade de continuar a leitura. É assim que eu quero um dia escrever.

Vale citar também que Gógol faz uso da viagem como elemento motor da sua narrativa. Até mesmo quando Tchítchicov está hospedado por um longo tempo numa cidade, ele ainda viaja para as fazendas dos latifundiários que pretende engabelar. Essa constante movimentação por meio da viagem faz o leitor sempre olhar pra frente, sempre traz sensação de movimento. E isso ainda livra o autor de precisar continuamente justificar os deslocamentos e abrindo um espaço não-forçado para divagações e digressões no trajeto entre os lugares. Este é um exemplo sensacional do uso eficaz da viagem como recurso narrativo.

Antes de concluir, vale dizer que o livro nos traz muitas características interessantes sobre a cultura russa. A começar pela centralidade do pomiêchtchik não só para a narrativa como para a própria forma de organização em glebas, com servos sendo propriedade, gerando pequenas vilas em cada fazenda, atraindo um clero próprio, etc. A propriedade rural, nesse caso, é um microcosmo próprio, cada uma como uma realidade paralela.

Além disso, me surpreendeu bastante a hospitalidade dos pomiêchtchik. O cara vai visitar alguém que nunca conheceu, mas o anfitrião faz questão que ele fique pro almoço. Se entabularem boas relações, o hóspede deve dormir no local, sob pena de ofender o dono dela. Se forem conhecidos, o hóspede deverá ficar pelo menos um mês naquela casa, presenteando o anfitrião com sua companhia.

Parece até estranho descrever dessa forma, mas é absolutamente verdade! Aqui no Brasil mesmo não é estranho que alguém, em viagem de férias, hospede-se por duas semanas na casa de um parente. Cheguei a comentar isso uma vez pra um amigo dos EUA. Ele arregalou os olhos e ele achou um absurdo.
Se a devassidão tem que entrar neste mundo, que não seja pelas minhas mãos! (p. 374)
Haveria muito mais a falar, tanto sobre as várias temáticas que Gógol traz da sociedade russa (propinas, jogo de influências, falsidade social, etc.) como outros traços muito interessantes da sua cultura (nessa época ainda muito influenciada pela França); mas vou concluir com esta pintura de Mikhail Clodt, que retrata o porquê de não termos o fim desse livro. 

O que acontece com Tchítchicov no fim das contas? Dá certo a maracutaia? Não sabemos ao certo. O livro termina com um discurso de outro personagem sobre a necessidade da nobreza de espírito do povo russo. Pra saber o que vem depois disso, precisaríamos ter acesso àquele manuscrito que Gógol queimou. Alguns dizem que foi um acesso de raiva, outros dizem que foi acidente. O fato é que aquilo o perturbou de tal modo que ele ficou acamado, recusou-se a comer, e morreu de inanição nove dias depois.

Fim de 'Almas Mortas"  (Gógol queima seu manuscrito). Mikhail Clodt, 1887

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