quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Resenha – Feliz ano velho

RUBENS PAIVA, Marcelo. Feliz ano velho. São Paulo: Círculo do Livro, 198(5?)


Depois do esplendor que foi Camilo Castelo Branco, eu precisava mesmo era de um português velho escrachado do Marcelo Rubens Paiva. Chega foi um alívio. Não tem jeito, tudo que é demais é exagero. Bom mesmo é variar a leitura. E vamos à resenha.

Gostaria de iniciar dizendo que, mesmo sendo cristão, não tenho medo de livros cujos autores sejam profanos ou heréticos. Sei filtrar o que é bom (exemplo claro é eu gostar da linguagem direta de Rubens Paiva). Sinceramente gostaria que mais cristãos fossem assim, com um mínimo de maturidade pra filtrar e não ter medo das coisas do mundo. Elas não me contaminam. Mais interessante, porém, é que elas podem me ensinar.

Pra quem não sabe, o livro é um relato autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, um moleque de 20 anos (na época) que resolveu mergulhar de cabeça num lago raso, quebrou uma das vértebras da coluna e ficou tetraplégico (depois paraplégico). Além da história do acidente em si e da recuperação, o autor pincela trechos da vida pré-acidente, com destaque para suas aventuras amorosas e o desaparecimento do seu pai quando era criança, devido a perseguições da ditadura.

O que me chama atenção logo de cara é o estilo. Rubens Paiva é tão direto e seco que em menos de duas páginas eu precisei fechar o livro como se tivesse levado um soco. Não é só o jeito que ele fala, mas o conteúdo cheio de verdades sobre seu acidente e tratamento.

A realidade na descrição da vida pós-acidente me deixou com dor de barriga em uma ocasião. Não é só a tristeza de ver o mundo passar enquanto se está preso num hospital, mas a agonia de pensar que aquela pode ser a sua vida para sempre. Conforme você lê, porém, é que vem a parte mais aterrorizante: esta, na verdade, é a vida de muita gente.

É inegável a fluidez da narrativa. É difícil desgrudar do livro. Os parágrafos curtos e os blocos de texto são separados de modo agradável e instigante. Como são bem condensados (dado estilo direto e seco do autor) são carregados de informação e deixam a gente sempre na expectativa do que virá depois.

Existe gente que consegue fazer a separação do autor e da sua obra. Via de regra, eu sou um deles. A exceção a essa regra acontece só quando eu conheço o autor pessoalmente e aquela famosa frase "não conheça seus heróis" começa a fazer sentido.

No caso de Marcelo Rubens Paiva, porém, eu tenho a nítida impressão de que é o tipo de gente arrogante com quem eu não aguentaria conviver muito tempo. Pode ser, é claro, só impressão de um texto que ele escreveu falando sobre um evento muito traumático. Sei que isso altera um pouco as circunstâncias. mas não foi só uma vez que tive essa impressão da soberba do autor.

A narrativa é bem erotizada, mas não julgo o autor. No auge dos 20 anos, universitário, morando em república, sua vida se resumia em boa parte a essas aventuras. Por outro lado, eu canso do drama. Do "será que ela quer?" ou "como vou chegar nela?". Sinceramente taí uma coisa da qual não sinto a menor falta. Drama demais, energia demais gasta com tão pouco resultado. Canso só de pensar. 

Único parágrafo sobre política que vou fazer nessa resenha. Primeiro: Marcelo Rubens Paiva é esquerda caviar do jeito mais claro que eu já vi. Segundo: tanto faz o seu lado, leitor, o poder no Brasil se traduz em conhecidos e QI (quem indica). Agora, voltando, saca só esse trecho:
Todos precisavam me ver, não sei por quê, aliás eu sei, é que agora estou com preguiça de explicar. (p. 96)
Essa citação mostra não só o estilo direto, mas o caráter bem despojado que o texto tem. Gosto dessa autenticidade do autor, em escrever não só o que está na superfície e também não fazer meandros pra dizer o que quer.

Uma coisa eu preciso admitir: o cara é corajoso. Eu acho que são poucos, bem poucos, que teriam coragem de se expor no nível que ele se expôs. Relatar os detalhes do dia a dia, mas não só os constrangimentos do acidente; mas até mesmo os sentimentos guardados em segredos por diferentes pessoas ao seu redor – gente que, tenho certeza, leu este livro (e o autor sabia que eles iriam ler).

Não tenho dúvidas que essa coragem foi uma das principais contribuições pra garantirem ao livro o Prêmio Jabuti de Literatura. O livro foi publicado em 1982 e, segundo pesquisa, foi o livro mais vendido da década de 1980 no Brasil. Não foi à toa que o autor ganhou repercussão. 

O livro não ganhou o prêmio à toa, ele tem qualidade sim. Não precisa ser moralista pra saber que tudo precisa ser filtrado, é claro, pra absorver aquilo que nos faz bem (seria meu único "porém"). Por isso, sinceramente, não tenho medo de indicar essa leitura. Basta ter uma cabeça boa.

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