sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Café com pão de queijo

Tive muita vontade de ir embora depois que tudo aconteceu. A pandemia havia acabado e nós resolvemos fazer uma viagem juntos pra comemorar. Íamos à Manaus visitar minha avó. Nessa época meu avô já havia falecido e minha mãe queria ficar o máximo de tempo possível com ela. Não que estivesse solitária (outro neto morava com ela), mas não há nada como um carinho especial pra melhorar nosso dia.

Preparamos tudo. Tínhamos provisões e sabíamos que a viagem pela frente seria longa. É, meu povo, oito horas de carro não é pra qualquer um. Deus sabe que eu não queria ter feito a viagem de carro, é tempo demais perdido. Mas eles insistiram e eu fui. À frente, meu pai guiava o carro com minha mãe e irmã; eu vinha logo atrás no meu carro, com minha esposa. Saímos cedo, pra chegarmos cedo. 

Chegamos cedo demais pro meu gosto. Já havíamos passado do Jundiá e entramos na reserva indígena que fica na fronteira Roraima-Amazonas. Chovia muito e era tanto buraco na via que a dúvida era se havia mesmo estrada ali. Aquilo nos atrasou muito e acho que foi a impaciência que nos levou a fazer o que fizemos. Finalmente em estrada lisa, nos danamos a correr. Recuperar o tempo perdido.

Pff. “Recuperar o tempo perdido”.

Em resumo: aquaplanagem. Nos dois carros.

Eu vi a hora que o carro do meu pai desceu a encosta e rolou barranco abaixo. Não tive muito tempo pra processar aquilo, porque eu fui atrás logo em seguida. O mundo virou uma confusão de cores e sons. O air-bag do carro estourou, protegendo minha cabeça e fazendo um som que deixou meu ouvido zunindo. 

Não tenho ideia de como aconteceu, porque, quando abri os olhos, o mundo estava de cabeça para baixo. Foi horrível. Não sei quanto tempo fiquei daquele jeito, nem quem foi a pessoa a ver o acidente. 

Meu primeiro instinto foi ver se minha esposa estava bem. Hoje, olhando para trás, acho que eu preferia não ter visto. O seu pescoço estava num ângulo impossível para um ser humano e seus olhos estavam sem vida. Eu me desesperei e entrei em choque. É muito difícil pra mim processar e explicar o que aconteceu em seguida. 

Quando finalmente me tiraram do carro, lembrei que meus pais e minha irmã também haviam tombado. Olhei para o carro deles, em frangalhos. Minha mãe chorava, desesperada. E era o único som que eu ouvia de lá. 

Nos dias seguintes recebemos muitas condolências e o funeral estava lotado. Eu não tinha compreendido tudo. Não. Na verdade, me recusava a compreender. Foi só quando eles fecharam a tampa do caixão que eu percebi que nunca mais veria o rosto de nenhum deles. Entrei em choque de novo. Lembro de ter gritado, mas não lembro de muita coisa depois. 

Então estávamos em casa. Na casa dos meus pais, digo. Minha mãe não tinha escolha senão voltar pra lá e eu não tive coragem de voltar pra minha. Nós dois ficamos sentados no sofá sem falar nada. Na nossa frente a televisão estava muda e fria. Que nem o resto da casa. 

As semanas que se seguiram foram de muito choro. Acho que se eu e minha mãe não tivéssemos um ao outro naquela ocasião, teríamos os dois ficado loucos. Nossos corações eram confortados apenas pela presença do outro e pela certeza de que na Eternidade ainda encontraríamos de novo com eles. E embora a gente soubesse daquilo racionalmente, na prática, a eternidade estava muito longe. Quem já viu a morte de perto sabe muito bem como é.

Mas o tempo passa, a gente se regenera. Isto é, na medida do possível. 

Na época minha mãe já era aposentada, mas eu continuava trabalhando oito horas por dia. Morria de medo de deixar minha mãe sozinha em casa. Graças a Deus ela buscou outras ocupações, pra não ficar parada. Quando eu chegava, já quase noite, ela sempre tinha café pronto. Eu sabia e por isso já vinha da rua com pão de queijo quentinho. Nós sentávamos, agradecíamos a Deus pelo alimento e comíamos em silêncio. Eventualmente surgia alguma anedota de algum causo jornalístico ou algo referente ao meu trabalho. Mas até isso era difícil, porque meu pai trabalhava no mesmo órgão público que eu.

Por estes tempos eu já havia escrito meus dois primeiros livros e pensava num terceiro. Digo “pensava” porque, diante do que aconteceu, minha criatividade praticamente morreu. E não sem razão. 

Engraçado é que adquiri um hábito inusitado (pelo menos pra mim, dentro daquele contexto). Da minha herança literária, o que mantive, pela força do costume ou a necessidade do presente, foi a leitura de livros mais diversos. A possibilidade de encontrar uma boa história e mergulhar nela era um alento. O hábito inusitado a que me referi foi que eu passei a ler para minha mãe toda noite. 

Eu pegava um livro (de preferência algo baseado em “fatos reais” – expressão que ela adora) e sentava-me numa cadeira junto à sua cama. Ela ainda deitava apenas no seu lado, deixava o outro sempre arrumado e limpo, como se meu pai pudesse voltar a qualquer momento e dizer:

– Eita, comadre, que o calor lá fora tá tinindo – ocasião em que ele tomaria um bom banho frio e depois se deitaria na cama, ao lado dela. 

Eu pegava então o livro e não apenas lia, mas o interpretava. Eu era o narrador, os personagens, as onomatopeias, eu era o homem-livro. 

Minha mãe ouvia tudo quietinha, até que em certo momento eu percebia que ela havia dormido. Nunca sabia em que ponto ela tinha dormido. No dia seguinte eu precisava voltar algumas páginas pra que ela lembrasse da história. 

Fora de casa minha rotina não mudou muito. Trânsito, trabalho, almoço, trabalho, trânsito. E talvez essa mesmice me fosse até suportável, não fossem os olhares das pessoas. Enquanto eu tentava a todo custo deixar o passado pra trás, ainda com as feridas sangrando de memórias, as pessoas miravam-me com a pena e dor que eu tanto precisava esquecer. Talvez não “esquecer”, mas, pelo menos, não me fixar nelas. 

Atormentavam-me os abraços do meu pai, os comentários sarcásticos da minha irmã e os beijos da minha esposa. Ninguém me falou que as memórias seriam tão terríveis assim. 

Um dia cheguei em casa e o café não estava pronto. Chamei por minha mãe, mas não tive resposta. Larguei a mochila na sala e corri para o quarto dela. O lado do meu pai na cama estava feito, perfeito. No outro, ela dormia, com o livro que eu lia para ela toda noite sobre o ventre.

Eu estava assustado, mas aquela imagem se apresentou tão serena, tão cheia de paz que eu dei um suspiro de alívio. Sorri para mim mesmo e fechei a porta do quarto devagar. Deixe a velha descansar um pouco mais, sua vida já é muito sofrida.

Desci para fazer o café. O pão de queijo ainda estava quentinho. Coloquei água na chaleira e preparei o coador com o pó. A tarde ia se findando e eu via o sol pronto para seu repouso, também mais do que merecido. Enquanto a água fervia, eu me dei ao luxo de sair no quintal pra ver esse por do sol mais de perto e lembrar que ainda havia beleza na vida. 

Um som me tirou a concentração. Virei a cabeça e minha mãe saía do quarto, com o livro na mão. 

– Bibinho? – ela me chamou e me viu no quintal. – Acho que eu dormi demais, né?

Olhei para a cara de sono dela e sorri. Entrei em casa e abracei-a, dando-lhe um beijo carinhoso na testa. 

– Só um pouquinho – sorri pra ela. – Bora tomar café?

– Bora.

Na cozinha, a chaleira anunciava que a água estava pronta.


Texto publicado na 25ª edição da Revista Literalivre (p. 43-45), disponível aqui.

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