domingo, 3 de janeiro de 2021

Crônicas do cotidiano – X

Conceda-me a gentileza de não perguntar o porquê. Nem eu sei. Eis-me aqui novamente com a necessidade de falar algo sobre este lugar. Talvez sejam as descobertas misteriosas e inesperadas que fazemos naqueles momentos em que menos esperamos.

Há dois dias passeávamos no Largo de São Sebastião, também conhecido como "aquela praça que fica em frente ao Teatro Amazonas". Eu já havia ido lá antes, mas dessa vez algo diferente aconteceu. Eu me peguei gostando de tudo aquilo. Da brisa agradável, das crianças brincando na praça, dos velhos sentados em bancos vendo o mundo passar. Por um acaso, eu estava sentado num banco.

Quando nos pusemos a andar, contemplei o Teatro e pensei nas tantas histórias que aquele lugar já presenciou. Afinal, de 1896 pra cá, haja história! Lembro de uma vez que meu primo comentou sobre a realidade do Teatro nos idos de dois séculos atrás, quando carruagens chegavam para levar os mestres às casas ou outros compromissos. 

A vida sempre foi a vida. Não é à toa que existem ainda hoje registros históricos de problemas de trânsito em frente ao Teatro. Existe, inclusive, registros de multas que os guardas aplicaram na época e até colisões entre carruagens. 

E eu andava por ali pensando em tudo isso.

No dia seguinte fui uma última vez à casa da minha avó, antes de voltar para Boa Vista. Lá eu encontrei o velho calor de sempre, aquela presença sufocante que só era suportável por causa das pessoas que estavam ali. Não estava meu avô, já comentei, mas ainda está minha avó, e nisso está meu foco.

Sentei-me ao lado dela enquanto ela mandava minha mãe fazer café – coisa que minha mãe não estava muito a fim de fazer. Enquanto esperávamos, ela aproveitou pra me contar que o povo anda muito isolado, que depois que as visitas vão embora ela agora fica ali sozinha. Chegou até a me convidar para ir mais vezes. O quarto que era do meu avô é agora um quarto de hóspedes, todo mundo é bem-vindo. 

Por fim, fomos à cozinha onde falamos sobre tudo que sempre se fala num café de final de tarde. Mal dos vizinhos, mal da política, mal do clima. E somos novamente cúmplices nos nossos desencantos com a vida. Até aqui, não houve nada de diferente, mas algo aconteceu.

Conversa vai, conversa vem, chegamos no assunto deste escritor ao acaso e eu comentei que havia lido bastantes livros em 2020. Mencionei à minha esposa que na época da adolescência, em uma das muitas visitas à casa da minha avó, eu próprio salvei muitos livros do lixo. 

Depois que os filhos saíram de casa, minha avó não tinha mais serventia para aquele bando de papel velho. Aliás, um dos livros que eu salvei tornou-se, anos mais tarde, o meu livro favorito de todos os tempos: "Um lugar ao sol" de Érico Veríssimo.

Ocorre que, naquela mesma noite, havia alguns livros naquela casa que estavam em situação similar. Se não corriam o risco de irem para o lixo, certamente ficariam jogados num armário de canto onde as baratas adoram fazer morada. Eu prontamente fui ao resgate, vendo o que se salvava dali. E aí a outra surpresa inesperada aconteceu. 

Dentre livros didáticos, livros de receita, livros religiosos, até umas revistas velhas que eu nem me arrisquei a mexer (gente, se vocês vissem o tanto de poeira que estava aquilo ali... foi um milagre que eu não tenha morrido de choque anafilático), dentre todos eles, encontrei uma relíquia. Um único exemplar de uma coleção perdida de literatura luso-brasileira. Naquele volume, dois livros: "Amor de perdição" de Camilo Castelo Branco e "Eurico, o presbítero" de Alexandre Herculiano. Dois livros que eu nunca havia lido, bem ali, debaixo do meu nariz todos esses anos.

E eu fico aqui me perguntando quantos outros segredos estão escondidos por esses cantos que eu conheço há tantos anos. Por que somos tão desconectados dos legados de quem veio antes? Por que estamos sempre procurando tesouros em lugares deslumbrantes, em vez de olhar para o que está perto? E ainda me dá vontade de questionar por que é que... 

Eita! Acabei de me tocar que cometi um erro. Olha onde eu vim parar. Não concedi a mim mesmo a gentileza e estou agora a perguntar os porquês. Melhor seguir a vida. Dessa vez, com os olhos mais abertos.

0 comentários:

Postar um comentário