segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Resenha - Um lugar ao sol

VERÍSSIMO, Érico. Um lugar ao sol. 30ª ed. São Paulo: Globo, 1995. 

Gente do céu, mais de um mês sem postar nada. Mas explico: é a correria para o lançamento do meu livro "Personagens não bíblicos e suas histórias", que acontecerá no próximo dia 09/11/2019, no Teatro Jaber Xaud (Sesc Mecejana), às 19h, aqui em Boa Vista/RR. Pronto, tendo explicado e feito o registro aqui. Vamos para a resenha.


"Sou uma vaca sentimental.", a verdade é essa. Assim como o Vasco em alguns momentos do livro se repreendia pelo excesso de sentimentalismo, também eu me vi várias vezes nessa situação. Bah... Mas quem liga? Se tem um livro que mexe com minhas emoções é esse aí. Ouso dizer: é meu livro favorito de todos os tempos. E nesta resenha pretendo explicar o porquê.

Pra começo de conversa, minha história é marcada por Veríssimo. Quando eu era criança, emprestei de uma amiga da minha mãe o livro "O tempo e o vento - Continente I". Era apenas o primeiro de 7 volumes que contam a saga completa de O tempo e o vento. Esse livro exerceu um fascínio estranho sobre mim. Eu não sabia explicar o que era. Mas algo me movia a lê-lo várias vezes. Eu devia ter, quando muito, 10 anos.

Já na adolescência, eu visitava minha avó em Manaus e perguntei dela se não havia ali livros pra eu ler. Ela apontou para um canto da casa e disse: "Tem uns livros velhos jogados ali, pode levar tudo se quiser". Foi o que eu fiz. Na época eu não sabia da relevância, mas dentre eles, estava justamente uma edição de "Um lugar ao sol", pertencente à senhora (na época chamada) Luciette Araújo, minha mãe. 


Isto já seria o suficiente para que eu tivesse um carinho especial pelo livro. A verdade é que Érico Veríssimo se tornou um autor muito lido a partir dos anos 50 justamente pela sua capacidade de expressar ao povo, de maneira simples, as histórias da vida. Embora ele foque na classe média, os especialistas dele (aqui me refiro especialmente a Flávio Loureiro Chaves) garantem que ele era lido em todas as camadas sociais.

Este tem sido, em grande parte, o objetivo da minha escrita. Eu quero, do fundo do meu coração, que tudo que eu escreva seja acessível a todos. Absolutamente todos. Do professor doutor à diarista que depois da novela quer pegar um livro pra ler. A grande especialidade de Érico Veríssimo não era o Rio Grande do Sul, não eram as classes, nem mesmo o cotidiano per si. A especialidade dele era o ser humano. A humanidade em suas facetas, lutas e vitórias.

Mas é evidente que a capacidade descritiva de Veríssimo é ímpar. O jeito como ele faz a gente imergir no texto é simplesmente fantástica. Ele tem várias estratégias interessantes para fazer isso. Uma delas, que eu notei com certa frequência (olhares diferentes agora, né?) é o uso dos sentidos para levar o leitor diretamente à pele do personagem. Em vez de descrever a situação por fora, ele faz por dentro, e o leitor vê o mundo pelos olhos do personagem.

Ainda neste quesito, parece que Cassill leu Veríssimo para dar dicas de como escrever (lembram das resenhas que fiz dele?). O uso da descrição, cortando pequenas cenas, até desembocar no diálogo que vai revelar de maneira muito sutil o personagem, é brilhante. Todo o contexto do texto (Cassill chama isso de entonação) gera um conhecimento quase tácito do personagem.

Antes de passar para o conteúdo em si, quero ainda ressaltar outros aspectos da técnica. Uma coisa que eu notei foi o uso de parágrafos. Eu sempre tenho certo receio com parágrafos muito curtos. Não sei explicar a razão. Porque Érico Veríssimo não tem pena de deixar parágrafos com apenas uma ou duas linhas. Se serve ao propósito do texto, por que não? Está aí uma lição a se aprender.

O autor faz umas intervenções inesperadas no meio de frases, com parênteses e pensamentos ou impressões dos personagens. Isso traz uma familiaridade interessante ao texto, revela melhor o personagem sem tomar muito espaço. Traz, na verdade, uma leveza maior a diálogos, que mistura a fala principal com outras secundárias. Interessante como já estou lendo com outros olhos

Detalhe interessante: uma vez um revisor leu meu texto e disse que eu usar "kkk" ou mesmo "cá-cá-cá" estava errado, que era ridículo que um livro tivesse estes tipos de onomatopeias, e que um texto com essas coisas jamais seria levado a sério. Pois adivinhem o que eu encontrei no livro de Veríssimo? Livro escrito há 80 anos: "quá-quá-quá" (nesta exata grafia!) para identificar risada. Ora, ora.

Pra finalizar esta parte da técnica e do livro em si, só pra dizer que não vi nada, houve algumas falhas na diagramação, um parágrafo errado e uma margem cortada meio torta. Mas é isso. Tanto a edição da minha mãe quanto a minha têm exatamente o mesmo texto, com direito a um prefácio do próprio Érico Veríssimo à segunda edição. Falarei disto no final.

De maneira bem simples, "Um lugar ao sol" vai falar do drama do restante da família Albuquerque (Vasco, Clarissa, principais) que precisa sair de Jacarecanga devido a perseguições políticas e vai se estabelecer na capital Porto Alegre, lá encontrando outros personagens importantes (Noel, Fernanda, Dr. Seixas, Álvaro). Abordando de maneira simples as lutas diárias para manter as contas em dia, conseguir emprego, lidar com imprevistos e outras pessoas.

Como mencionei, já li umas 2 ou 3 vezes e hoje percebo que o personagem que acho mais interessante é Fernanda. O momento mais emocionante do livro está com ela. Ela é a personagem que move a história para frente. Quando as coisas parecem muito difíceis, é ela que enxerga um lado diferente e encoraja a todos. No fundo, acho que o que eu queria mesmo é ser mais como a Fernanda.

Vasco (e Clarissa até certo ponto) é em tese o personagem principal da história, já que acompanhamos bem os seus movimentos em diversas fases. Mas tanto ele quanto a prima, do meu ponto de vista, têm um espaço melhor em "Música ao longe", que é lindo de morrer. Ali a história fica realmente mais centrada neles. Em "Um lugar ao sol" tem ao todo uns 30 personagens que são importantes pra compor toda a trama, então não dá pra focar tanto, tanto assim.
"A rua, com seus anúncios luminosos [...] tinha uma beleza vagamente mágica." (p. 178)
Ah, sim! É claro. Não tem como eu falar de Érico Veríssimo sem citar o que eu considero o cerne de toda a sua literatura. Ele fala de magia. Ele fala de coisas inacreditáveis. Ele fala de ficção. Ele fala da fantasia do cotidiano. Ele fala das grandes coisas que não estão longe de nós, pelo contrário, estão ao nosso redor todos os dias. 

Neste livro ele não teve piedade de usar um simbolismo forte com os personagens. Refiro-me aqui ao dilema de Noel em escrever um livro realista versus escrever um livro de fantasia. Isto foi exageradamente brilhante. Porque este livro de Noel funciona como uma paródia do próprio livro que estamos lendo nas mãos! Enquanto Fernanda acredita que só o realismo é boa literatura, Noel fica balançado. E nós, os leitores, neste pêndulo, percebemos que somos tomados pelos dois ao mesmo tempo. Lemos realismo. Sentimos magia. 

Uma vez conversando com o escritor Aldenor Pimentel, falávamos algo sobre dinamismos em livros. Aquela constante necessidade pelo conflito, resolução, ação, etc. E eu argumentei que o que mais me entusiasmava não era tanto a ação em si, mas a capacidade do autor em me fazer imergir em outra realidade ao ponto de eu realmente ser transportado para um outro lugar, que existe ali naquelas páginas e na minha imaginação ao mesmo tempo.

Vejo Érico Veríssimo fazer isso com facilidade, sou mergulhado num outro mundo, assistindo personagens, ansioso por saber o que vai acontecer. Mas isto não significa que o livro não tenha cenas e fatos que o puxem pra frente. A verdade é que as histórias de Veríssimo são cheias de ação. Mas não é luta, não é desastre, não é nada grandioso. É estar em casa e a vizinha aparecer pedindo ajuda; é andar na rua e trombar com um desconhecido; é torcer para seu emprego dar certo... e ele não dar. Novamente: fantasia do cotidiano.

A partir daqui, preciso confessar uma coisa: tive que me controlar pra não citar demais e não aproveitar a leitura, senão ia citar o livro todo kkkkkk. Houve mais de uma reflexão (do conflito arte x realidade), simbolismo (o caso do sexo e estômago) ou paralelo (me refiro, é claro, ao paralelo do livro de Noel e o próprio livro de Veríssimo -- que, aliás, é brilhante) que se eu fosse escrever dava umas três crônicas. Por isso me limitei. Melhor assim, deixa o gostinho de quero mais.

Algo que notei é que Érico Veríssimo parece estar constantemente se desculpando (através dos personagens) pelas cenas que ele mesmo propõe. Algumas pareces incríveis demais, quase inverossímeis e, mesmo assim, não são. Talvez o limiar da ficção e realidade seja mesmo que coisas acontecem quando não deveriam acontecer e quase não acreditamos nelas. Mas elas acontecem. Basta ler os jornais e se deparar com notícias que parecem irreais. 

De modo geral, me vejo um pouco em todos os personagens. O encanto e desejo pela mudança que Vasco tanto sentia; os anseios de Clarissa e D. Clemência quanto à incerteza do trabalho e finanças; da melancolia de Noel em suas aventuras com a arte; até mesmo, vejam só, nas filosofias do Conde Oscar. Mas, no fundo, quero ser mais como Fernanda: um raio de sol em meio às névoas dos problemas da vida. Posso não ser capaz de controlar as circunstâncias; mas como eu reajo a elas, isso sim, eu sei que posso controlar.

Haveria muitas citações para trazer, mas resolvi limitar pra algumas interessantes. A primeira é só pra exemplificar aquilo que comentei sobre tornar a leitura acessível a todos os públicos. Uma maneira  de fazer isso é recorrer aos regionalismos, gírias e não ter pena de grafar um diálogo de maneira super realista, ou seja, exatamente como as pessoas falam: 
"Que é que tu qué, Pablo?" (p. 236)
A segunda, serve para ressaltar uma coisa: Veríssimo era católico, mas retratava em seus livros muitas das dúvidas que perpassam os religiosos que verdadeiramente não conhecem a Cristo. Existe um versículo na Bíblia que fala algo sobre a existência de Deus. A seguir, compare com a citação tirada do "Um lugar ao sol":
"Estes mostram a norma da lei gravada no seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e os seus pensamentos, mutuamente acusando-se ou defendendo-se," (Rm. 2:15)
"Ficava, no entanto, com a certeza de que aquela frustração não era uma negação da existência de Deus. Deus decerto existia. Não tinha culpa de que os homens não fossem suficientemente límpidos e leves para se elevarem até Ele." (p. 232)
Por fim, a terceira, vem pra reforçar algo que eu já disse em outro momento: o perigo da armadilha do tempo passado. Basicamente, é o seguinte (eu li isso em algum lugar, só não lembro onde): existe uma armadilha que perpassa toda a história da humanidade, que é a de achar que o passado sempre foi melhor. "Porque antigamente não tinha isso, tinha aquilo...", "Ah, no meu tempo isso não se fazia...", e por aí vai. 

Essa armadilha é perniciosa e até pecaminosa (leia Ec. 7:10 pra ver). E todo mundo sempre cai nela. Teve uma resenha que fiz de Dostoiévski em que apontei justamente falas deste estilo lá no final do século XIX. E agora venho aqui trazer uma de Veríssimo (do começo do século XX) para mostrar, novamente, as falácias desta armadilha. No contexto, são três velhas conversando sobre os mais novos: 
"Hoje está tudo tão diferente...  dizia D. Clemência.  Antigamente havia menos luxos, menos remédios, mas as crianças se criavam tão sadias..." (p. 317)
É como diz Eclesiastes mesmo: "O que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol." (Ec. 1:9). Aliás, quanto a estas referências bíblicas, algo me diz que foi em "Um lugar ao sol" que nasceu a semente que gerou "Olhai os lírios do campo", outro livro desta mesma fase de Érico Veríssimo.

De modo geral, reforço que o entrelaçamento das histórias é fantástico. Uma conversa entre Vasco e o Conde Óskar de repente faz sentido no capítulo seguinte, quando vemos eco daquilo nas ações de outro personagem que, por sua vez, está agindo de maneira oposta ao que ele mesmo propôs ao conversar com mais uma personagem em outra ocasião. E por aí vai. 


Foi o próprio Érico Veríssimo que, já na década de 1960, olhando para trás, afirmou quem em "Um lugar ao sol", ele conseguiu captar o elemento humano de maneira mais eficiente do que em toda a sua obra (com exceção, talvez, de "O tempo e o vento"). Eu não poderia concordar mais. É difícil comparar com "O tempo e o vento", porque este último na verdade são vários livros, várias histórias interligadas. Talvez em alguns momentos, realmente, o elemento humano esteja melhor em "O tempo e o vento"; mas, de maneira geral, não tem obra deste mestre que se compare a "Um lugar ao sol".

Por isso, repito, este é meu livro favorito de todos os tempos. Ele expressa, como nenhum outro, os anseios que estão presentes em todos nós. Fala das pequenas lutas que travamos todos os dias, e das pequenas recompensas que ganhamos quando enfrentamos as batalhas. No fundo, este livro fala de esperança. Afinal, quem não espera ter um cantinho pra chamar de seu? Alcançar paz, tranquilidade, aconchego? Qual de nós não quer também um lugar ao sol?

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