quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Resenha - Grito de alerta

JUNGES, João Euclides; DANIEL VELHO, Édison Eroquês. Grito de alerta. Boa Vista: MGM, 2017.


Este livro representou um desafio pra mim. Não pelo conteúdo ou a escrita, mas pelo simples fato de que conheço os autores. Tive que refletir bastante sobre fazer uma resenha de gente que conheço. Especialmente porque não necessariamente vou falar bem do livro. Isso tem que ser livre! A crítica vem para o bem da arte. Jamais falei mal da pessoa de algum autor, mas critico sem medo a técnica, vocabulário, seja o que for – qualquer coisa que eu não goste.

Mas dá pra fazer isso falando de alguém que conheço? Especialmente quando sei do trabalho e do empenho que esses autores tiveram pra fazer esse livro? Poxa. Dá pena. Mas porque dá pena? Pelo simples fato de que não gostamos de ouvir a verdade às vezes. A crítica tem que existir, pelo bem da arte. Aí depois disso tudo me toquei que meu blog é só uma piaba num Rio Amazonas de gente muito mais experiente e que é levada mais a sério. Então eu pensei: "Ah, que se lasque" (risos).

Esse livro tem um propósito social. Isso tem que ser destacado desde o começo, porque é o que vai nortear o livro como um todo. O propósito dele é fazer uma campanha de conscientização contra o suicídio. Para alcançar esse objetivo, os autores reúnem uma série de relatos de histórias de pessoas que passaram por isso e superaram, com direito a um poema perdido no meio do livro.

Acho que, no fundo, eu não gostei do livro por causa da expectativa. Eu sabia que o livro tinha esse propósito, mas não esperava que ele fosse fazer isso como se fosse uma roda de conversa. Pensava que o tema seria trazido por meio de contos, não meros relatos, que muitas vezes beiram as crônicas ou ensaios. Digo isso porque em alguns momentos não há narrativa, o texto é quase de autoajuda.

Novamente: questão de expectativa. O livro reúne uma série de relatos (que não chamo de contos) e muitos deles não achei interessantes. Cada história é uma história, mas como o autor vai passar isso ao leitor é que faz a diferença. Por exemplo: tanto no texto Viajante Solitário quanto o que fala do cachorro, em vários momentos o texto é excessivamente enciclopédico. Esse tipo de informação eu coloco no Google, uai, de graça. Além disso, o texto O beijo da dependência química nada mais é que uma resenha de outro livro! E nem é dos mesmos autores. Não acho que isso é texto para se compor antologia, é algo a se postar no Facebook. 

Várias introduções de textos podem ser retiradas, deixaria o texto mais denso e envolveria melhor o leitor. Falando nisso, penso que algumas dessas histórias poderiam ser melhor aproveitadas. O último conto, por exemplo, é absolutamente lindo! Mas é um desperdício (por falta de palavra melhor) deixar ele no fim do livro. Ele teria que ser um livro por si. E seria lindo, maravilhoso, ao estilo Um lugar ao sol de Érico Veríssimo. A história (que é real!) tem altos e baixos bonitos de se ler. 

O trabalho de revisão também deixou a desejar. Há diversos erros de grafia crassos como "skipe" e algumas construções infelizes, por exemplo: "elo de ligação", "literalmente, para o fundo do poço"; pontuações estranhas também se fazem presentes como o uso desnecessário de três pontos de exclamação em seguida (!!!) – esse uso exacerbado faz com que o sinal perca sua eficácia; além dele, há uma inversão de ponto de exclamação com interrogação (!? em vez de ?!).

Mas falando de editoração e revisão, o que mais mata mesmo é ler o livro com aquele espaçamento. Nossa, poderia pelo menos ter aumentado um pouco o espaço entrelinhas. A leitura fica cansativa, algumas vezes até me perdi nas linhas e tive que voltar pra acertar. O trabalho da MGM Gráfica foi triste. É ruim falar isso, porque os autores até têm um conto muito bonito sobre os donos da empresa – mas mesmo assim não dá pra perdoar esse espaçamento, temos que defender a verdade.

A capa e a contracapa poderiam ser um pouco mais felizes. Na capa há uma foto da Praça das Águas (até que vai, embora não tenha tanto a ver), mas na contracapa uma figura obscura contra uma janela embaçada? Nossa, isso foi de matar. O livro é de terror ou pra prevenir o suicídio? Achei bem infeliz essa escolha. 

Só que nem tudo na vida são os espinhos: junto a eles estão belas flores. O conto do aposentado, mesmo com alguns problemas, é muito envolvente, a gente se sente realmente na pele do personagem. Agora, o primeiro conto, o que foi aquilo? Foi tão lindo, mas tão lindo, que tinha que parar no meio pra segurar as lágrimas. A escrita não é só envolvente, mas a gente sente a tristeza, o senso de perdição do personagem que – talvez uma das principais razões pra gostar do conto – é o próprio autor. 

Talvez tê-lo colocado no começo do livro não tenha sido a melhor escolha, porque ele é tão bom que depois dele tudo sofre em comparação, é um decrescendo. Por outro lado, entendo que ele introduz a temática do livro. Não obstante, talvez desse pra inverter algumas coisas e esse conto deveria fechar o livro, ou pelo menos a primeira parte dele. 

No fundo, é como eu disse: o livro cumpre um propósito social, não literário. Além disso, tem muito a questão da expectativa junto. Dá uma coisa ruim falar essas coisas, porque os próprios autores foram os revisores, seus amigos foram os diagramadores, o livro é todo fruto de colaboração, num universo triste e árido que é a publicação literária, especialmente em Roraima. Tudo que falo não é para criticar os autores, mas sim o trabalho deles, não com vistas a denegrir, mas para fazer crescer a nossa boa arte roraimense.

Esses homens já têm inspirado a muitas pessoas (jovens, adultos, crianças, mulheres, homens) e o trabalho deles, ainda que não perfeito literariamente (Ah! E quem sou eu pra dizer algo assim?), tem cumprido sua função social de alertar quanto aos perigos da depressão e suicídio, numa sociedade que cada vez mais negligencia esses perigos. Só por isso, já são homens dignos de honra.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Resenha - O vampiro de Curitiba

TREVISAN, Dalton. O vampiro de Curitiba. Rio de Janeiro: Record, 1997.


Mas que droga de livro, hein? Este é um compilado de 15 contos sobre o "Vampiro de Curitiba". Pra falar bem a verdade talvez a culpa tenha sido minha de criar expectativa sobre o "vampiro", que não tem nada de vampiro. A única similaridade com a criação de Stoker é a sedução de mulheres. Sobre o que é o livro, então? Sobre Curitiba? Nem isso sei.

Na sequência de 15 contos, nos deparamos com o jovem "Nelsinho", que é descrito em 15 aventuras amorosas diferentes ("amorosas" é ser gentil, a palavra que deveria usar era "sexuais" mesmo). Nestas aventuras, Nelsinho, que parece um adolescente cheio de hormônios incontroláveis, depara-se com uma série de moças e tenta conquistar todas elas. Algumas ele consegue, e se desenrolam algumas cenas meio quentes, mas que (para mim) não levam a lugar algum, senão ao próprio ato da conquista. Algumas ele não conquista, mas não significa que não haja ato sexual na história.

Isso é meio tenso na história. Teve mais de um caso de abuso e o que mais chocou foi o conto "Debaixo da Ponte Preta". Percebi que a ideia do autor foi de realmente causar o choque, de uma sociedade que muitas vezes vê a mulher apenas como objeto sexual. Este conto ainda tem um diferencial, que mostra o mesmo acontecimento sob o ponto de vista de diversos personagens. Foi uma sacada narrativa interessante. Apenas alguns minutos de ação descritos de diversos pontos.

Falando sobre narração, porém, não posso negar que o cara escreve bem. Há um equilíbrio entre narração, descrição e diálogo (o tripé da boa escrita, segundo Stephen King). Os diálogos também são bem construídos e verossímeis. Confesso que por não estar ainda tão ligado nesse tal de discurso indireto, às vezes me confundo na leitura e acho complicado desnecessariamente. 

Por outro lado não entendo alguns leitores condenando quem usa aspas para indicar falas (como em: "Eu vou", ela disse) enquanto Trevisan não tá nem aí e coloca falas misturadas com a narração, bem no meio do parágrafo, indicando-as com itálico. Mas seu estilo ainda é o clássico mesmo, de travessão, parágrafos e tudo o mais.

A edição é muito bonita e bem trabalhada. Record ficou de parabéns, a capa dura com contrastes dourados achei de qualidade bem especial. Soubesse eu o conteúdo do livro com antecedência, não teria pago os trinta contos que paguei. Não sei se esses escritores contemporâneos são meio estranhos de ler ou eu que tenho problemas com eles. São poucos os que me agradam. C'est la vie.

sábado, 20 de outubro de 2018

Resenha - Ciência Maluca

CASTRO, Carol. Ciência maluca. São Paulo: Abril, 2015.


Esse foi um livro bem diferente. Depois de ler clássicos do terror, um pouco de literatura contemporânea, navegar pela literatura que fala sobre escrever e aprender tanto... resolvi pegar um livro de... como classificar isso? É daqueles livros que a gente lê só pra matar a curiosidade sabe? Porque, no fundo, é um livro sobre curiosidades. Não necessariamente sobre ciência.

A proposta não deixa de ser boa: reunir curiosidades sobre experimentos científicos e descobertas malucas (como aquelas do prêmio IG Nobel). A linguagem é bem despojada e jovial, algumas vezes até chula (especialmente na parte que fala sobre sexo), mas a leitura é muito fluida, com uma linguagem de revistas jornalísticas mesmo. 

O livro fala de laboratórios, experimentos com animais (incluindo o macabro experimento de manter uma cabeça de animal viva sem corpo), vampiros, corpo humano e comportamento humano, até amor e Deus entraram na salada. Os assuntos são bem variados, o que torna o livro ainda mais interessante, numa leitura que não cansa. 

Vale ainda citar que quando a autora fala algo como "cientistas estudaram que...", ela faz a grande gentileza e honestidade intelectual de referenciar. Então, ao final do livro, há todos os estudos citados, com local de publicação, ano e tudo o mais. Só isso já deu uma credibilidade enorme pro livro e deu ainda mais gosto em aprender o que está lá.

Porém, como tudo na ciência, tem muita coisa questionável no livro. Isso me preocupa, sabe? Passa muitas coisas como verdade, porque houve estudos científicos por trás, porém há falácias e estudos, no mínimo, duvidosos. Aponto uma falácia, por exemplo: foram realizados estudos nos EUA demonstrando que Coca-Cola e Pepsi são a mesma coisa. Sim. 

Eles pegaram voluntários e colocaram numa sala pra beber de diversos copos com refrigerante da cor escura. Ao final eles tinham que dizer qual era Coca e qual era Pepsi. Os acertos eram ínfimos, ninguém sabia realmente diferenciar. Qual a falácia disso? Eles partiram do pressuposto que Coca e Pepsi têm a mesma concentração de fórmula em qualquer lugar do mundo. E isso eu sei por fato que não é verdade. A Coca nos EUA tem um teor de glicose menor que a nossa. Tanto é que muitos dos meus amigos lá gostavam de comprar Coca do México, porque ela é mais doce. Pressupostos falsos.

Além disso, são citados estudos sobre comportamento humano realizados na década de 1970! Aí pra tentar reforçar a ideia e mostrar como são reais, a autora cita outros estudos realizados nos anos 90! Gente do céu. Isso é, no mínimo, duvidoso. Depois dos anos 90 houve transformações tão profundas no mundo e na forma das pessoas se comportarem (queda do muro de Berlim, crises financeiras, surgimento da internet, computador, 11 de Setembro, guerras, tanta coisa!) que fica difícil dar credibilidade para afirmativas oriundas desses estudos e dadas como verdades.

E, claro, o livro ataca a ideia da existência de Deus e coloca tantos pressupostos embutidos na parte que fala sobre religião que dá até agonia. Argumentos bem fraquinhos mesmo, que no meu outro blog dava pra desconstruir. Tudo bem, a autora escreve o que quer. Só assusta pensar que muitos lerão isso e terão como verdade simplesmente pela falta do senso crítico. Penso que o trabalho de livros como esse deveria ser "in" não desinformar.

Por fim, foi com tristeza que encontrei ainda alguns erros de grafia soltos no livro e outros de espaçamento. Poxa, uma editora tradicional como essa não poderia ter deixado passar essas coisas. Achei ruim porque já foi o segundo livro contemporâneo (esse é de 2015 e o de Lovecraft é de 2018) que veio com essas edições furadas. 

Não obstante, é uma leitura muito divertida. Algumas seções para que foram feitas pra gente levar o livro pro banheiro e ler entre um movimento peristáltico e outro, haha. Isso, no meu ponto de vista, não torna o livro ruim, só dá uma nova perspectiva. Acho que precisamos de leituras assim também, nem tudo pode ser tão sério. A vida se vive também nos detalhes, não só nos grandes momentos.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Resenha - H. P. Lovecraft (três livros)

LOVECRAFT, H. P. A cor que caiu do céu. São Paulo: PandorgA, 2018.
________. Sussurros na escuridão. São Paulo: PandorgA, 2018.
________. O chamado de Cthulhu e outros contos. São Paulo: PandorgA, 2018


Então. Encontrei essa coleção a módicos R$ 10,00 por livro e resolvi investir. Estava na hora de ler um clássico do terror, embora eu mesmo tenha escrito apenas um conto nesse estilo. Já havia ouvido falar de Lovecraft, claro, por conta do Cthulhu (ainda que não tivesse a menor ideia do que era esse bicho), mas não conhecia de fato a obra do autor. Vou comentar primeiro dos livros, depois das edições e por fim um comentário geral sobre o autor.

O primeiro que li foi A cor que caiu do céu. Além do conto que dá título ao livro, também há dois contos: Ele e Horror em Red Hook. De cara o primeiro conto me bateu com força porque na hora percebi a influência de Lovecraft nos dias atuais: a história é basicamente a mesma do filme "Aniquilação", e eu gostei muito desse filme! Fala de um horror biológico e ao mesmo tempo não natural que permeia uma cidade nos EUA. 

Sussurros na escuridão, por sua vez, traz um horror vintage, com troca de cartas entre os personagens principais e com direito a registros fonográficos, fotografias antigas, tudo parte de uma trama que deixa a gente tenso do começo ao fim. Porém, creio que Lovecraft cometeu um erro (olha que ousadia!) porque lá no final a gente vê o personagem principal cometer aqueles erros que só se faz em filme de terror. Tipo quando o cara ouve um som do lado de fora da cabana isolada e resolve ir lá pra ver o que é, sabe? Aquele tipo de momento que a plateia fica "Tem mais é que morrer mesmo". 

Pois é, Lovecraft fez isso e me deu foi raiva. No caso dessa história, não sei se Lovecraft escreveu pra ser um conto ou noveleta, mas facilmente funciona como romance mesmo. São 123 páginas de enredo bem construído, paulatino, criando tensão e agonia no leitor. Não fosse por esse final, estaria perdoado todo o livro.

Deixei por último pra ler O chamado de Cthulhu e outros contos justamente porque sabia que aí estava um dos contos mais famosos de Lovecraft. E de fato, vale cada palavra. O conto é sensacional e muito bem escrito. É fantástico como ele consegue em tão pouco espaço (porque o conto não é grande) transmitir tamanha construção e enredo sólido. Isso é algo que contemporaneamente só vi acontecer em Jorge Luis Borges. Além deste poderoso conto, o livro ainda conta com outros cinco, dentre os quais destaco Dagon, o conto que alavancou a carreira de Lovecraft.

Falando da edição agora, a editora PandorgA fez um excelente trabalho gráfico no livro. Não só a capa, mas as divisões internas com páginas escuras, a minibiografia do autor no final de cada livro, a preocupação estética foi excelente. Porém, pecou na qualidade editorial, per si. Vou postar apenas uma das várias falhas que encontrei, e (o pior!) justo no livro do Chtulhu. Na imagem ao lado vocês podem verificar a divisão silábica. Infelizmente, além deste, encontrei erros de espaçamento e grafia (não me refiro a typo, mas sim palavras que não fazem o menor sentido na frase).

Por fim, Lovecraft não tem a fama que tem à toa. Ele realmente é um mestre do terror. Suas histórias são todas ambientadas no seu país de origem, os Estados Unidos do começo do século XX e final do XIX. Seu estilo, como ele mesmo classifica, é o "horror cósmico". As histórias de Lovecraft não são sobre vampiros, monstros (não são, mesmo tendo o Cthulhu) ou assombrações, as histórias deles são sobre horrores que desafiam a realidade, que não fazem sentido e levam à loucura pelo mero conhecimento delas. Esse tipo de horror é explorado em todos seus escritos. E muito bem.

Porém, há algo que fica claro em Lovecraft: racismo e preconceito. Em muitos dos seus contos a origem das coisas horrendas está em pessoas, que ele mesmo chama, de "mestiços", "escuros", "manchados pelo pecado", "provindos da Ásia", "árabes". Aliás, é dito que Lovecraft mudou-se de certa cidade apenas porque lá havia muitos destes tipos. 

Nos livros, em vários momentos ele deixa a entender que negros não são capazes de pensamento complexo, sendo quase animalescos e muitos dos horrores que ele descreve tem origem na África ou na Ásia. Não obstante, precisamos ver o contexto em que esse escritor estava. Ainda que não justifique de maneira alguma, lemos seus textos com olhos críticos, sabendo que era alguém cegado, em partes também, por um contexto de racismo institucionalizado e tido como natural. 

Mesmo assim, permanece a patente de mestre e recomendo absolutamente a leitura desse mizerávi que consegue criar uma atmosfera de tensão tão grande que a gente fica se contorcendo pensando "Desembucha, homi!", mas ele faz isso de maneira tão simples e colossal ao mesmo tempo que não temos outra opção senão dar-lhe a patente de gênio e ficarmos assombrados com isso.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Dois microcontos ao acaso

I

Reunião da Diretoria do Inep. Tensão na sala. O Diretor inicia:

– É o seguinte, pessoal, temos que pensar em alguma coisa pra esse ano. Os memes estão ficando batidos, as pessoas perdendo o interesse. A gente tem que bolar um jeito de tornar o Enem ainda mais propício a memes!
– Mas, chefe! Será que dá pra fazer isso? 

O silêncio na sala. Uma representação não audível da dúvida que perpassava a todos: como tornar um evento já tão memético ainda mais? Será que isso era possível?
No fundo da sala, a estagiária ajeita os óculos e levanta a mão:

– É... eu... eu acho que tive uma ideia.

No dia seguinte vem a notícia.


Microconto publicado no Facebook em 30/09/2018
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II

Foi uma experiência inovadora. Um amigo nos convidou para visitarmos seu castelo mental. O George também achou estranho, mas topamos o convite.

Em pouco tempo estávamos na sala de compartilhamento mental. Encontramos o Bruno lá e ele disse:
– E ae! É por aqui.

Eu e o George nos entreolhamos, mas o seguimos, em direção a um precipício. Ele pulou e pulamos logo em seguida. Caímos numa poça d'água, como se tivéssemos descido apenas um pequeno degrau. E lá estava o Palácio mental dele.

Um conjunto de pedras irregulares compunham a parede do palácio, que muito se assemelhava a um monastério, mas entulhado de geringonças tecnológicas, piscando e emitindo ruídos estranhos. Eu e o George pensamos: como diabos passaríamos por ali até chegar ao Palácio?

Bruno pareceu ler nossa mente:
– É fácil! Só pular aqui, escalar esse scarabuncho, dar um salto mortal pra chegar na antena, executar um golpe de jiujitsu nessa barra de metal, que aí ela cede, vira uma ponte, aí a gente se joga por aqui, pra não cair no lago de lava e... pronto! Chegamos.

Enquanto ele falava executou tudo que disse e estava na porta do Palácio mental. Eu e o George tentamos repetir os feitos pra chegar lá. Digamos que se não estivéssemos no universo mental, teríamos um braço a menos, olhos, orelhas e pernas inutilizáveis, mas chegamos.

Ao abrir a porta do castelo (duas grandes asas de borboleta que fizeram eu e o George nos entreolharmos e levantar as sobrancelhas), entramos num pequeno quarto, com uma escrivaninha, cama e criado mudo. Tudo estava limpo e impecável. Eu e o George olhamos ao redor e balançamos as cabeças em aprovação. Então o Bruno disse:
– Que droga! Olha essa bagunça! Não consigo encontrar nada! Espera que vou resolver isso.

Num movimento rápido do corpo, Bruno tomou forma de um ciclone. As gavetas da escrivaninha se abriram, revelando papéis, nuvens de chuva, alguns personagens de quadrinhos vivos que começaram a gritar. De baixo da cama surge um policial rabugento ("Me deixa dormir, seu peste!"), os lençóis da cama vão parar no ventilador no teto, debaixo do travesseiro vê-se um enorme baú cheio de cartas de Magic. 

Bruno volta à sua forma normal e diz, satisfeito:
– Ah! Agora sim! – ele dá uma pausa. Olha para os lados, coça a cabeça. – Pessoal... o que é que eu ia mostrar pra vocês mesmo?

Eu e o George nos entreolhamos.


Microconto publicado no Facebook em 03/10/2018

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Resenha - A jornada do escritor V

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.



OS ESTÁGIOS DA JORNADA
Estágios 9 ao 12

#Estágio Nove: Recompensa

  • Depois que os Heróis conquistam a vitória → ganham a sua Recompensa
    • É natural que queiram festejar 
    • É preciso refazer as forças para a jornada de retorno
      • Nesse ponto é comum haver uma "cena da fogueira" → trocar histórias, relaxar
      • Esse tipo de cena é importante pro leitor se recompor depois de tanta emoção com o estágio anterior → conhece-se melhor os personagens
    • Pode haver aqui também uma cena de amor
  • Vogler chama esse estágio de Apanhando a Espada → ele acredita que é a atitude ativa do Herói que faz a diferença nesse momento
    • Campbell chama de "Benção Final" → é quando o Herói consegue aquilo que estava buscando
      • Em alguns casos, o Herói consegue isso apenas roubando 
      • Isso é mais ou menos comum → dificilmente o Herói conseguiria o tesouro sem que precisasse roubar (pense em Indiana Jones roubando o tesouro da caverna)
  • Os Heróis emergem mudados da Provação → Campbell chama de iniciação
    • Eles podem entrar em uma nova classe, categoria 
      • O Herói ganha uma nova percepção ou poderes 
      • Pode até ser mudança de comportamento
    • Mas eles também podem ter uma distorção de percepção → ficam cheios de si
      • Eles ficam perto do limite entre Herói e Vilão
      • Eles podem também ignorar que tenha havido alguma mudança
  • Perguntas da seção
    • O que o Herói aprendeu após observar a morte?
    • Qual a Recompensa que seu Herói conseguiu? Qual foi a consequência da posse disso?
    • Sua história muda de direção? Há alguma cena de amor?
    • Seu Herói percebe alguma mudança? Ele tem uma nova percepção?

#Estágio Dez: O Caminho de Volta
  • Nesse ponto o Herói tem que escolher → voltar ao Mundo Comum ou permanecer no Especial
    • São poucos os Heróis que decidem ficar
    • Nesse ponto da história, ela volta a ficar mais enérgica
      • É quando o Herói volta ao Mundo Comum para aplicar o que aprendeu no Mundo Especial
  • Quando os Heróis tomam o Caminho de volta → estão se lançando de novo na aventura
    • Isso pode ser voluntário ou motivado por alguma força externa
    • Aqui é possível haver uma transição de Limiar → com seu Guardião
      • Pode ser uma fuga → traz uma nova crise à jornada
      • No caso do roubo da Recompensa, por exemplo → alguém pode tentar reavê-la
  • Aqui há sempre a possibilidade da retaliação
    • As Sombras que não morreram voltam mais fortes ainda
      • Nesse ponto é útil que a Sombra consiga dar um golpe duro no Herói → inclusive matando um de seus Aliados, por exemplo
      • Em casos atípicos → o Herói pode ser perseguido por admiradores
    • As Sombras podem não estar mortas na história, mas presas → aqui elas escapam
  • Nesse estágio dos contos de fada → pode haver o voo mágico
    • Um objeto ou Aliado que ajuda o Herói a escapar
      • Muitas vezes, na fuga, o Herói pode deixar alguma coisa pra trás
      • Em alguns casos, jogam fora até o tesouro para garantir a vida
  • É importante haver obstáculos no Caminho de Volta
    • O Herói sai da euforia da vitória e volta ao mundo real → vai gerar nova tensão, para um novo clímax
  • Perguntas da seção
    • Como seu Herói decide voltar?
    • Qual o Caminho de Volta na sua história: o Mundo Comum, o Especial, ou outra via?
    • Há perseguição ou aceleração nesse estágio da sua história?

#Estágio Onze: Ressurreição
  • Esse é um dos estágios mais difíceis de escrever → para completar a jornada, o leitor tem que experimentar ainda outro momento de morrer-renascer
    • Esse é o grande clímax → o teste final do Herói ante a morte
      • O diferencial aqui é explicitar no Herói alguma mudança e não só descrevê-la
      • É um teste para ver se o Herói aprendeu mesmo → é a última chance dele conseguir realmente mudar se ainda não o fez
    • Tem que ficar claro que o Herói pode morrer novamente]
      • Lembrando que para o Herói renascer → ele tem que sacrificar alguma coisa
      • Um clímax ideal testaria tudo que o Herói aprendeu durante a jornada, com os mais diversos Aliados ou Inimigos
    • Via de regra os Heróis vencem e o Vilão morre → uma boa sacada, porém, é fazer o Herói cometer um erro logo antes de dar o golpe final, por exemplo
  • Há um truque que muitos usam para mostrar que o Herói renasceu → mudar a aparência
  • Alerta de Vogler → nesse ponto, parece óbvio que é o Herói que tem que ser a parte ativa da história, fazendo a diferença
    • Porém muitos escritores fazem do Herói um agente passivo → trazem Aliados ou outras situações para salvar o Herói da morte
      • Ele não condena que o auxílio venha → mas que a ação principal seja do Herói
  • Nesse ponto o escritor pode colocar o Herói diante de uma escolha difícil 
    • Pra ver se ele realmente aprendeu 
    • A escolha pode ser romântica também
  • Apesar de ser o clímax → ele não precisa ser explosivo
    • Há possibilidade de clímax tranquilo → seguido de onda de emoção
    • É possível até fazer clímax sucessivos → porém o melhor é que seja um
  • O clímax tem que trazer liberação de emoção → gargalhadas e lágrimas são o meio mais efetivo
    • Isso alivia a ansiedade do escritor e permite se expressar melhor as emoções
  • Aqui se completa o arco de personagem do Herói
    • Um erro comum é que os escritores desenvolvam o Herói de maneira abrupta, sem respeitar os diferentes estágios
    • O Arco do Personagem → pode ser visto em paralelo aos 12 estágios da Jornada
      • Consciência limitada do problema → aumento da consciência → relutância em mudar → superando a relutância → compromisso com a mudança
      • Experimentando a primeira mudança → preparando-se para uma grande mudança → testando a grande mudança 
      • Consequências da tentativa → nova dedicação à mudança → tentativa final de grande mudança → domínio final do problema
  • No retorno ao Mundo Comum → pode haver um falso pretendente
    • Alguém que questiona as credenciais do Herói
      • Por isso o Herói apresenta provas de sua jornada
      • Em alguns casos ele não tem → o que vale foi sua experiência e muitas vezes a pessoa tem que ir no Mundo Especial para experimentar
  • Perguntas da seção
    • Que características negativas seu Herói adquiriu? Quais dessas falhas você acha que deveriam ser preservadas nele?
    • Qual a provação final do seu Herói? Como ele ressurge?
    • Há necessidade de embate físico na sua história?
    • Seu personagem apresenta mudanças graduais, respeitando o arco de personagem?
    • Quando Herói morre ou não aprende suas lições, quem aprende alguma coisa?

#Estágio Doze: O Retorno com o Elixir
  • Os Heróis retornam ao Mundo Comum com algo especial que trouxeram da Jornada → significa introduzir mudanças na vida cotidiana
    • Pode ser chamado denouement (desatamento, desenlace, desfecho) 
      • O escritor tem que tomar cuidado para que, ao tentar desatar os nós da trama, não se enrole com eles
      • É importante cuidar dos enredos secundários → o Retorno pode até suscitar novas questões, mas antigas tem que ser trazidas
    • Ao desatar os nós → efetua-se a distribuição de recompensas e castigos
      • Vilões são punidos e Heróis são recompensados
      • Em ambos os casos deve ser proporcional aos atos dos personagens
  • Duas maneiras de concluir a Jornada
    • Final circular → mais comum na cultura ocidental
      • O Herói retornar ao ponto de partida → oportunidade de comparação
      • Dá uma ideia de conquista ou superação → muitos escritores retratam isso com um casamento no final
    • Final aberto → mais comum na cultura oriental
      • Os defensores dessa abordagem dizem que o final fica a cargo do leitor
      • Especialmente porque algumas questões realmente não têm respostas
      • O final aberto é ideal para histórias mais sofisticadas
  • O Retorno tem funções importantes → ele se parece com a Recompensa
    • Mas nesse caso → é a última chance de trazer emoções ao leitor
    • Ele não pode ser muito arrumado → tem que ter ainda alguma surpresa
      • Essa surpresa não precisa ser boa → pode revelar um desvio oculto
  • Mas é preciso ter cuidado ao escrever o Retorno 
    • Problemas → muito abrupto ou prolongado / sem surpresas
      • Quando é muito abrupto → o leitor não tem tempo de se recompor depois do clímax → não há conclusões satisfatórias
    • Também não pode haver excesso de finais → o escritor sem saber qual o final correto, acaba escrevendo vários
    • É importante que no final o escritor não saia do foco da história
      • Mesmo que seja interessante deixar algum gostinho de desconhecido no final
  • O Elixir também pode ter diferentes significados
    • Pode ser o amor, a sabedoria, uma nova visão de responsabilidade
    • Pode ser um elixir de tragédia → quando o Herói morre, quem aprende é o leitor
      • É possível que o Herói não aprenda com seus erros → ele se condena a repetir as mesmas coisas até que aprenda sua lição
  • Epílogo → não é obrigatório 
    • Mas pode complementar a história → geralmente falando de algo no futuro dos personagens
  • Perguntas da seção
    • Qual Elixir seu Herói traz da experiência?
    • Seu Retorno está muito abrupto ou prolongado?
    • De que maneira seu Herói foi transformado?
    • A sua história vale a pena ser contada?

CONCLUSÃO

Uau! Deveras foi muita informação aí. Ao final do livro, Vogler falou aquilo que também defendi: a Jornada do Herói, ao final, é uma sugestão. A boa história não estará garantido só porque seguiu o padrão. Aliás, o ideal é que nem todas as histórias apresentem todas as etapas da Jornada: quem dita a estrutura é a história, não as regras.

Uma ideia interessante pra uso da Jornada do Herói é aplicar ela na sua história depois que você escreveu pra encontrar os pontos fracos dela. Gostei da ideia de Vogler que o ideal é a gente aprender a Jornada do Herói pra depois esquecer. A gente usa como um mapa: na hora que não soubermos o caminho, consultamos. Mas a viagem não é seguir o mapa, é aproveitar a experiência.

Uma regra básica: qualquer elemento da Jornada pode aparecer em qualquer momento da história. Há até a possibilidade do escritor desenvolver cenas que não se encaixam em nenhum dos 12 estágios padrão, adaptando a estrutura da Jornada às suas necessidades.

Vogler termina seu livro analisando filmes como Titanic e Rei Leão, aplicando sobre eles a Jornada do Herói. São análises muito boas, especialmente porque ele trabalhou na formulação de filmes da Disney. Sabe a cena do Rafiki levantando o Simba na pedra em Rei Leão? Foi ele que pensou nela. Realmente há muito o que aprender com Vogler. Mas penso, e creio que ele concordaria comigo, que o verdadeiro aprendizado só acontecerá quando trilharmos a nossa Jornada do Escritor. 

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Resenha - A jornada do escritor IV

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.



OS ESTÁGIOS DA JORNADA
Estágios 5 ao 8

#Estágio Cinco: Travessia do Primeiro Limiar

  • O momento fatídico que separa o Herói em "antes" e "depois" é a Travessia do Primeiro Limiar
    • Via de regra é uma escolha consciente do Herói
    • Normalmente o Herói não aceita os conselhos e presentes do Mentor pra se jogar de bom grado numa aventura
      • O que acontece é que há um turning point, alguma força externa ou acontecimento que marca definitivamente a necessidade de atravessar o Limiar
      • Verdade seja dita que alguns Heróis são lançados à aventura sem muita escolha
  • Neste ponto ele deve encontrar o Guardião do Limiar
    • Via de regra isso é mais um teste para ele poder seguir em frente
    • Ou seja, não é um obstáculo fatal, mas quase uma ilusão 
  • Acontece então a travessia do Mundo Comum para o Especial
    • Nem sempre essa travessia é suave → em muitos casos o Herói despenca
    • Via de regra essa travessia se dá no fim do primeiro ato
  • Perguntas da Seção
    • O seu Herói está disposto a atravessar o Limiar? 
    • Existem forças guardando o Limiar?
    • Quais Limiares você já enfrentou na vida?
    • Na travessia, do que o Herói está abrindo mão? Isso é trazido à tona novamente?

#Estágio Seis: Testes, Aliados, Inimigos
  • Não importa quanta experiência o Herói tenha → no Mundo Especial, tudo é novo
    • As primeiras impressões do Herói tem que destacar o contraste dos Mundos
      • Isso mesmo que o ambiente físico seja o mesmo 
      • A história deve demonstrar que o Limiar foi atravessado, que as coisas são diferentes
  • Este primeiro período no Mundo Especial → testes
    • Os escritores usam esse momento pra ver como o Herói lida com desafios e provas
      • Os testes costumam ser difíceis → mas sem a qualidade de vida-ou-morte
      • Exemplo do cotidiano: Universidade → vestibular pra entrar e depois tem as provas semestrais
      • Em alguns casos os testes podem ser continuação do treino com o Mentor
    • Os testes podem fazer parte da infraestrutura do Mundo Especial
      • Por exemplo um local dominado pela Sombra → armadilhas e capangas
      • A maneira como o Herói lida com as armadilhas é parte do teste
  • É normal que, ao chegar no Mundo Especial, o Herói não saiba em quem confiar → isso também é uma espécie de teste
    • Há a possibilidade de encontrar Aliados → que podem ser companheiros também (ao estilo Sherlock e Watson)
      • Esses aliados mais próximos podem servir de alívio cômico além de assistência
      • Esses personagens podem facilmente vestir a máscara do Pícaro e vez ou outra a do Mentor também
    • Nesse contexto também podem se formar equipes 
      • Pode até ser heróis múltiplos ou um herói apoiado por várias pessoas
      • Pode haver embates pelo controle do grupo também
    • O aparecimento do Herói no Mundo Especial pode chamar atenção de inimigos
      • Pode ser tanto a Sombra quanto os seus servidores
      • Há a figura do rival → não é necessariamente inimigo do Herói, mas sempre quer vencê-lo em competição
  • No Mundo Especial, o Herói tem que aprender as regras do lugar → isso também é um teste
  • Algo interessante → porque o Herói sempre que chega no Mundo Especial vai para os saloons ou tavernas?
    • Metáfora da caça → ao sair da aldeia, os caçadores vão para um local onde tem água, para procurar caça
      • O local de beber água é um local de reunião, de encontros, de observação
      • O bar (ou equivalente) pode ser um microcosmos do Mundo Especial
      • Saloons, boates e outros semelhantes podem ser local de intriga sexual também
  • As cenas neste estágio da jornada são úteis pra que o leitor conheça melhor os personagens
  • Perguntas da seção
    • Qual a diferença do Mundo Especial e o Mundo Comum na sua história? Há contraste?
    • De que modo seu herói é testado? 
    • Ele faz Aliados/Inimigos? Há heróis sem Aliados?
    • Seu personagem faz parte de uma equipe?
    • Como seu Herói reage às regras estranhas do Mundo Especial?

#Estágio Sete: Aproximação da Caverna Oculta
  • Depois de adaptados ao Mundo Especial →  o Herói segue para o âmago dele
    • Nesse ínterim podem haver outros Limiares com seus Guardiões
    • Há certas funções nessa fase de aproximação
      • Rever planos, reorganizar o grupo (até com mudanças de arquétipos)
      • Aqui é possível elaborar melhor um alívio cômico ou romance antes do perigo 
      • Serve também pra criar um senso de urgência → redireciona a missão da equipe
    • Nem sempre a aproximação será sutil → pode haver necessidade de uso da força
  • Alguns Heróis fazem uma aproximação ousada, sem muito preparo antes
    • Heróis confiantes e decididos podem escolher esse tipo de aproximação
      • Em muitos casos, porém, é uma distração para que algum Aliado faça algo
  • De qualquer forma, é bom que o Herói vá ao acontecimento principal de maneira consciente
    • Quando se aproximam da Caverna Oculta, os Heróis devem saber que ali há perigo de morte
      • Por isso o escritor pode desenvolver aqui as complicações dramáticas → reveses desanimadores conforme o Herói se aproxima do objetivo
      • Geralmente são problemas que testam o Herói para fazê-lo seguir em frente e não desistir diante das adversidades
  • Perguntas da seção
    • Na sua história, o que acontece entre a chegada no Mundo Especial e a crise?
    • O conflito cresce ou os obstáculos ficam mais difíceis?
    • Seus Heróis já pensaram em dar meia-volta e desistir?
    • De que maneira o Herói enfrenta os perigos externos? Você está trabalhando também os conflitos internos dele?
    • A Caverna Oculta é um local físico ou emocional? Como o Herói se aproxima dela?

#Estágio Oito: Provação
  • Este é o ponto da história onde o Herói está prestes a enfrentar o temível adversário →  é o amago do que a trama estava construindo até então
    • No estágio da provação deve prevalecer a ideia → o Herói tem que morrer para poder renascer 
      • Este é o ponto alto desse estágio
      • Na maioria das histórias os Heróis parecem morrer e depois renascem
    • A ideia, porém, é que os Heróis não simplesmente sobrevivem à morte → eles voltam transformados, mudados
  • Esse estágio de provação não é o clímax, é uma crise
    • É um dos principais pontos nervosos da história → muitos fios conduzem a esse ponto e saem dele também
      • Ainda que geralmente seja o ponto alto da história → não é o momento maior dela
      • Antes de melhorar, as coisas têm que piorar
  • O padrão é que esse momento de morte-renascimento venha perto do meio da história
    • Mas isso pode variar → embora uma crise central traga uma boa estrutura de tensão
    • Pode haver retardamento da crise → mas cuidado para não criar um meio enfadonho
      • Por outro lado, esse retardo chega perto da Razão Áurea → proporção elegante de 3/5 (muito apreciada na História da Arte)
      • Isso porque deixa mais tempo para preparativos e permite construir lentamente 
    • De todo modo o segundo ato é um trecho longo da história
      • A crise no meio serve como divisor de águas 
      • Ela mostra ao Herói que tudo mudou
  • Na crise de morrer-renascer é comum a figura da testemunha
    • Algum personagem que presencia a morte do Herói e lamenta por ele 
      • Essas testemunhas representam o leitor → que se identifica com a situação
      • Isso tem a ver com a elasticidade das emoções → quanto maior a tensão, maior a euforia que virá depois
  • Em alguns casos a experiência de quase morte não acontece numa única provação → mas numa série delas
    • O que importa é que o Herói não precisa morrer → ele pode ser testemunha da morte ou até mesmo o seu causador
      • O que está em jogo é a proximidade com a morte em si → é o enfrentamento do medo 
      • Lembrando que não precisa ser algo físico → pode ser amoroso também
  • O evento mais comum na provação é o encontro com a Sombra
    • Essa Sombra pode ser tanto um vilão externo quanto interno
      • De modo geral, a Sombra representa os medos e qualidades ruins rejeitadas pelo Herói 
      • Pode ser projetada num processo de demonização
    • Essa polarização serve para testar o Herói e fazê-lo quase falhar
  • De qualquer forma, no estágio da provação, enquanto o Herói parece morrer → é o vilão que de fato morre
    • Essa morte não pode ser algo fácil, mas algo pelo qual o Herói tenha que se esforçar
    • Isso também não significa que não haverá mais Sombras para o Herói lidar
      • O mesmo vilão pode retornar ou escapar para outro enfrentamento
  • Ao falar do vilão é importante lembrar que alguns são Heróis aos seus próprios olhos
    • Um momento escuro para o Herói pode ser um de luz para a Sombra
    • O escritor deve conhecer bem a sua história a ponto de poder contá-la até do ponto de vista da Sombra → também dos Aliados e até os NPCs
  • Na mitologia clássica os Heróis enfrentam a morte mas sobrevivem graças a alguma ajuda sobrenatural obtida em algum momento da história
  • Perguntas da seção
    • Qual a provação na sua história? Ela é causada pelo vilão?
    • De que modo o vilão/antagonista é uma Sombra do Herói?
    • O poder do vilão está canalizado em subalternos ou concentrado?
    • O vilão pode ser um Pícaro ou Camaleão?
    • De que modo seu Herói enfrenta a morte nesse estágio?

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Resenha - A jornada do escritor III

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.


Então. Dando continuidade ao fichamento desse livro (incrível, por sinal!), vamos falar agora das doze etapas que compõem a Jornada do Herói, aplicada ao processo de escrita. Confesso que algumas vezes o livro parece quase uma autoajuda, aplicando alguns desses conceitos à vida real. Não sei até que ponto dá pra aplicar dessa forma, mas é interessante, não obstante.

Nesse post vou abordar os 4 primeiros dos 12 estágios da jornada. A escolha foi para que não ficasse muito grande e o leitor pudesse aproveitar melhor o conteúdo, que, diga-se de passagem, é muito elucidador. Não obstante, mais de uma vez fiquei me perguntando na leitura: mas isso não é fórmula? Ainda defendo que a Jornada do Herói deve ser conhecida, mas não necessariamente seguida.

Agora um importante elogio à didática de Vogler. O cara não somente explica muito bem os termos, dá exemplos que são acessíveis, oriundos especialmente do cinema de Hollywood, aplicando de maneira excepcional o ensino aos roteiros dos filmes. Não satisfeito, ao final de cada capítulo ele traz o que chamei de "Perguntas da seção", onde ele traz exercícios práticos, em forma de perguntas, para auxiliar o escritor na sua própria jornada.


OS ESTÁGIOS DA JORNADA

#Estágio Um: o Mundo Comum

  • O início de uma aventura tem que ter alguma coisa que prenda o leitor
    • Qual a primeira coisa que o leitor vai ter da história? Qual a primeira imagem?
    • Esse estágio serve para dar um tom e impressão à história
      • Um título bem escolhido serve para deixar o leitor curioso e interessado
      • Isso se aplica também à capa do livro (não vamos ser ingênuos), a publicidade dele e seus anúncios
  • Por isso, o título é um marco para anunciar a natureza da história e atitude do escritor
  • Algumas histórias têm prólogo → precede o corpo principal da história
    • Tem várias funções → pode informar sobre o passado da história ou algum evento impactante para dar o tom da história
      • Pode ser um mecanismo pra desnortear o leitor → deixar confuso pra explicar depois
      • Pode iniciar também com o vilão ou uma ameaça (antes do Herói)
    • Nem sempre o prólogo é necessário ou desejado → a história que vai dizer
  • Nesse primeiro momento se estabelece o Mundo Comum
    • O Mundo Especial só vai ser "especial" quando em contraste com o Comum
    • Muitas vezes o Comum pode parecer calmo e chato
      • Mas as raízes da aventura já estão nele → algumas vezes nos acostumamos com o Mundo Especial que ele se torna um Mundo Comum
      • Nesse ponto, muitos escritores salpicam ideias do Mundo Especial, com indiretas
  • Toda boa história levanta uma série de perguntas que serão respondidas na trama
    • Esse primeiro momento tem que levar a isso 
    • O Herói vai conseguir? Como ele vai fazer isso?
  • Na apresentação do Herói → ele deve ter um problema interno e um externo
    • Muitos escritores se concentram só no problema externo
      • Mas ele deve ter alguma dificuldade interna → falha moral ou de personalidade 
      • Isso dá mais profundidade ao Herói e torna ele mais crível
    • O leitor deve estabelecer um vínculo com o Herói → ele tem que ser relacionável
      • Isso não quer dizer que o leitor deve simpatizar com o Herói
      • Mas que o leitor vai se identificar com alguma coisa no Herói
    • Algo que ajuda nisso é revelar uma carência (interna ou externa) do Herói
      • Isso ajuda a criar uma solidariedade com o Herói → gera o desejo de que ele se torne completo no final
      • Um jeito de fazer isso é colocar o Herói numa situação simples e mostrar que ele tem dificuldade de lidar com isso
    • Na mitologia grega → mesmos os melhores heróis tinham falhas trágicas
      • O Herói pode ter uma ferida (externa ou interna)
      • Ele até tenta esconder isso, mas é evidente na sua personalidade
  • Nesse momento também surge a questão → como o Herói entra em cena?
    • Esse primeiro contato com o Herói já informa sua atitude, estado emocional, contexto, forças, problemas, e por aí vai
      • Uma maneira interessante de revelar isso é por meio do diálogo → fazendo outros personagens revelar essas informações do Herói ao leitor
  • Desde o começo da história → o leitor precisa ter noção do que está em jogo
    • O escritor é que estabelece essas regras do jogo
    • Para o Herói, tem que ter alguma coisa em jogo → senão a história não é interessante
  • Outra coisa que pode haver nesse primeiro momento é a História Pregressa
    • Às vezes é necessário conhecer algo do passado do Herói para seguir em frente
      • A ideia é revelar essas coisas com elegância no decorrer da trama
      • A exposição não pode nem congelar a história nem ser o foco dela
    • Muita coisa é revelada pelo que o Herói não faz ou não diz
  • Facilita que nesse momento se revele o tema
    • Não é uma afirmação explícita → mas uma demonstração subjacente do teor da trama
    • Uma hora ou outra, porém, ele deve ser trazido à tona → pois vai influenciar nas escolhas e atitudes do Herói
  • Perguntas da seção
    • Como o Herói da sua história é incompleto?
    • Qual a história pregressa desse Herói?
    • Até que ponto você conhece o Herói?

#Estágio Dois: Chamado à Aventura
  • Geralmente o Mundo Comum é uma coisa estática → mas ali estão as sementes para que algo aconteça
    • Por isso, depois de apresentado o Herói, é preciso colocar as engrenagens em movimento → alguma coisa acontece ou uma mensagem é trazida à tona
      • Isso significa que o Chamado pode ser causado tanto por fatores externos como internos (pode ser o descontentamento do Herói com o Mundo Comum)
      • O Chamado pode até ser uma tentação sobre o Herói
  • O Chamado não precisa ser um evento único → pode ser um encadeamento de fatores
    • Um desses fatores pode ser o Arauto → um personagem que apresenta ao Herói um convite ou desafio ao desconhecido
      • Esse Arauto pode ser tanto Aliado como Inimigo
      • Os Arautos podem abrir os olhos do Herói mostrando que há algo errado → muitas vezes o que há de errado no Mundo Comum já foi apresentado ao leitor no prólogo
  • Esse Chamado provavelmente será perturbador e desorientador para o Herói
    • Em alguns casos, o Herói pode simplesmente não ter opção senão aceitar o Chamado
    • Em alguns casos, pode até haver mais de um Chamado durante a história
  • Perguntas da seção
    • Você já recebeu Chamados a aventuras? Como reagiu a eles?
    • Você consegue pensar em alguma história sem um Chamado ao Herói?
    • Onde está o Chamado na sua história? É possível protelá-lo? Isso é viável?
    • Dá pra passar sem o Chamado?
    • Como você pode apresentar o Chamado sem transformá-lo num clichê?

#Estágio Três: Recusa do Chamado
  • Quando nos colocamos na posição do Herói, vemos que diante do Chamado é plausível hesitar e ter medo da nova situação
    • Essa é uma parada importante → mostra ao leitor que a aventura tem riscos e perigos
      • Além disso, essa pausa garante que a escolha do Herói será pensada
  • A maioria dos Heróis recusa ou hesita
    • Algumas vezes é por experiência anterior → já passaram por algo assim e não querem se submeter de novo
    • O Herói pode dar uma lista de desculpas
  • Essa Recusa Persistente por parte do Herói pode trazer consequências terríveis (eu estou olhando pra você, Peter Parker! Cadê o Tio Ben??)
  • Há outros casos, porém, que a recusa é algo bom 
    • Quando o Chamado é para o mal, por exemplo
    • Quando é um tipo de renegação → o Chamado era para algo que até poderia ser bom, mas o Herói abre mão disso em prol do bem comum
  • Por outro lado, há o caso dos Heróis Voluntários
    • Estes, quando recebem o Chamado, o aceitam prontamente e quase impetuosamente
      • Nestes casos, é comum haver outros personagens que alertam o Herói quanto aos perigos que podem haver na aventura
  • O Herói ainda pode ser posto à prova pelo Guardião do Limiar → eles eriçam o medo
    • Em alguns casos o Mentor pode exercer essa função também
    • Mas há o caso da Lei da Porta Secreta → se há uma porta e o Herói é impedido ou desencorajado a passar por ela, então, em algum momento, ele vai passar por ela.
      • Então, mesmo que o Mentor ou o Guardião do Limiar tentem impedir, o Herói vai em frente
  • Na história, essa Recusa pode ser um momento sutil
    • E também uma boa oportunidade para redirecionar o foco da aventura, torná-la mais profunda
  • Perguntas da seção
    • Do que o Herói da sua aventura tem medo? Esses medos são reais? Como ele expressa isso?
    • O Herói recusou o Chamado à Aventura? Como ele fez isso? Quais as consequências?
    • Se o Herói é voluntário, há personagens ou situações deixando claro ao leitor que a aventura incorre em perigos?
    • Você já aceitou Chamados à Aventura? Você já aceitou Chamados à Aventura que preferiria ter recusado?

#Estágio Quatro: Encontro com o Mentor
  • Muitas vezes não é má ideia recusar um Chamado até estar pronto
    • E na maioria das vezes é o Mentor que vai ajudar nesse preparo
      • Nesse Encontro com o Mentor, o Herói recebe ensinos, provisões e até equipamentos para dar segurança na jornada
      • Mesmo que na história não haja um personagem como Mentor → haverá alguma fonte de sabedoria ou segurança que ajude o Herói a aceitar o Chamado
  • Para o escritor esse é um excelente momento para criar tensão, envolvimento, humor ou drama
    • O Mentor é importante para ajudar a desencadear a história
    • Um bom Mentor é entusiasmado em ensinar o que sabe
      • De qualquer forma, o Mentor age principalmente na mente do Herói, para dar confiança
  • É importante evitar os clichês → mude o tipo de Mentor ou talvez tire ele da história, veja como o Herói se comporta sem um auxílio maior
    • Outra técnica é usar o Mentor como um engano ao leitor → pode ser uma máscara usada pela Sombra ou um Guardião, atraindo o Herói para o perigo
  • O escritor pode usar a relação Mentor-Herói como uma fonte de conflito que pode escalar até gerar morte
    • Às vezes o Mentor se torna um vilão ou trai o Herói
    • Em alguns casos a lealdade do Mentor é dúbia → leva o Herói a questionar
    • Pode ser até que o Mentor seja superprotetor → atrapalhe o Herói
    • Há casos em que a história se desenrola em torno do Mentor
  • De qualquer modo é comum que o Herói passe por treinamentos e testes para ajudar na sua caminhada → e geralmente quem faz isso no primeiro momento é o Mentor
    • Ele é importante para ajudar o Herói a quebrar a barreira do medo e falta de confiança
    • Ele serve para desempacar a história
      • Praticamente em qualquer história há algum personagem ou situação que usa essa máscara para ajudar o Herói
  • O escritor é um tipo de Mentor para os leitores → e o escritor também tem Mentores
  • Perguntas da seção
    • Pense em 3 seriados de TV. Quem são os Mentores na história?
    • Existe alguma história em que o personagem é integralmente Mentor, sem exercer nenhuma outra função?
    • Ajudaria a uma história sem Mentor que houvesse um?
    • Quem é o Mentor na sua história? 
      • Seu Herói precisa de um?
      • Seu Herói tem um Mentor interno, como código de honra ou ética?
    • Na sua história, como é a relação Mentor-Herói?
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Confesso que dá vontade de escrever logo sobre os outros estágios, mas vou seguir meu plano inicial, mesmo que isso gere um pouco mais de posts. É importante que a gente consiga absorver bem o que Vogler está querendo ensinar. Há muita coisa pra aprender, especialmente pra depois quebrar com a ideia. De qualquer modo, há muita coisa pra aprender. E segue a jornada.