quarta-feira, 29 de abril de 2020

Resenha - Viagem à aurora do mundo

VERÍSSIMO, Érico. Viagem à aurora do mundo. São Paulo: Globo, 1996.

– Pois o que o Prof. Fabricius e eu prometemos a vocês é uma excursão através das idades, começando no Período Cambriano e terminando nos tempos recentes.
– Uma viagem à aurora do mundo! – exclamei.
– Isso, romancista. Isso! Uma viagem à aurora do mundo. (p. 83)

Algo dentro de mim sabia que esse dia chegaria; mas, como as evidências até aqui sempre apontaram na direção contrária, surpreendi-me quando chegou. É o dia em que não gostei de um livro de Érico Veríssimo. Vamos à resenha.

Viagem à aurora do mundo conta a história de um escritor que, sem querer, vê-se preso numa casa onde pessoas no mínimo estranhas se reúnem para fazer um experimento científico nunca antes visto. Um grande cientista, Prof. Fabricius, criou uma máquina que consegue captar imagens do passado e projetá-las numa tela. Não é um filme, mas a vida real, o passado da Terra, bem diante dos nossos olhos. A premissa não é ruim, mas é que o livro tem um problema de bases. Vou explicar. 

Não tenho conhecimento científico para embasar o que estou falando, mas minha experiência como leitor e como "escritor" têm mostrado isso. Quando escrevemos um roteiro, livro, conto, etc., precisamos nos ater àquilo que propomos (é bem parecido com o que fazemos na pesquisa científica). Se deixamos o foco ou perdemos nossa base, o texto fica arenoso e o leitor não sabe direito como caminhar nele.

Acontece que neste livro, finalmente Veríssimo mergulhou na ficção científica. Mas parece que ele ainda faz isso como quem pede desculpas. A verdade é que, na sua literatura, Érico Veríssimo sempre apontou um desejo de escrever fantasia, mas sua gana por contar os causos da realidade (o que eu chamo de "fantasia do cotidiano"), sempre o impediram de seguir nesta linha. Mas aqui ele faz isso, o livro é uma espécie de ficção fantasiosa. Porém... 

Érico Veríssimo transformou o livro num texto didático! A ideia de viajar no tempo não é novidade, o diferencial aqui seria a máquina projetar a imagem sem que os personagens viajassem de fato. Porém Veríssimo não foca na viagem em si ou na ficção científica por trás disso, mas explora um caráter didático explicando, por exemplo, o que são as eras pré-históricas, quais são as teorias do surgimento da Terra, da origem da vida, como eram os animais no passado (incluindo até figuras deles!).

Novamente, é o que disse: é um problema de bases. Porque se Veríssimo tivesse focado neste aspecto didático, bom, então não haveria problema! O livro seria perfeito para um professor de Ciências da escola usar, ainda mais numa época (1939!) onde a televisão não era difundida e a sociedade se valia muito do rádio e dos livros para ter informações. 

Mas o que Érico Veríssimo faz é permear a história toda com ares de fantasia. O casarão misterioso, os "bruxos", a "mocinha", o "vilão", o "herói", o "tutor", e por aí vai. O livro acaba oscilando entre dois aspectos que, no fim das contas, não permite que a gente se firme bem em nenhum dos dois. Por isso a leitura, pelo menos para mim, não foi tão agradável quanto poderia ser.

Não obstante, permanece quem o escreveu: do meu ponto de vista, o maior nome da literatura brasileira. Tem umas referências que ele faz que eu acho fenomenais! Eu já deveria ter desconfiado quando ele colocou uma partitura em "Incidente em Antares" e nas várias referências musicais que ele fazia. Mas olha só que bacana essa citação dele, que só vai entender de verdade quem é músico (especialmente os tenores!):
"[...] depois me precipitei corredor em fora, na ponta dos pés, glorioso como um tenor que sai de cena a berrar um dó natural numa fermata que começa junto da prima dona, em cena aberta, [...]" (p. 126)
Talvez o cerne da minha questão com o livro tenha sido o velho problema de expectativas. Não esperava ver em Veríssimo uma literatura infantil como essa (ou seria infanto-juvenil?). Porque, sinceramente, o livro é perfeito pra crianças. Tem um herói, uma mocinha, personagens misteriosos e fantásticos, seres antediluvianos e até figuras! Como disse, talvez tenha sido só um problema de expectativas.

Mesmo assim, como já falei, ainda há ali escondidos os traços do grande escritor que foi (que é!) Érico Veríssimo. Olha só essa frase: 
"– O homem foi, é e será sempre o mais incoerente e estúpido dos animais. Vive a se queixar de que a vida é monótona e de que não lhe acontecem coisas extraordinárias. Sonha com a aventura mas foge quando ela se lhe apresenta." (p. 172)
Nos seus capítulos curtos, Viagem à aurora do mundo talvez seja o livro perfeito para uma criança conhecer o trabalho de Érico Veríssimo e se deixar levar por uma leitura simples. O meu primeiro contato com o autor foi O tempo e o vento, né, mas vamos deixar aí essa sugestão no ar. E eis o fim da resenha, do primeiro livro que não gostei de Érico Veríssimo.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Resenha - Eden

McPHERSON, Brennan S. Eden: Biblical Fiction of the World's First Family. Sparta: McPherson Publishing, 2020.


Bom, não é a primeira vez que eu falo de Brennan McPherson e tenho certeza que não será a última. Vocês verão referências minhas às outras resenhas que fiz dele no decorrer do texto. Gostaria de destacar apenas que o cara é um escritor independente (os livros são autopublicados), mora nos EUA e deve ter a minha idade. 

Logo, a primeira coisa que impressiona é qualidade do material que temos em mãos. Embora não seja financiado por uma editora, tem qualidade superior a muita coisa que se vende por aí como "de primeira". Vamos passar direto pro texto e falar um bocado sobre este livro.

Pra começo de conversa, a primeira frase já me incomodou. Veja bem, depois que comecei a ler e tentar entender o processo de escrita com mais afinco, as primeiras frases de livros ou histórias ganharam novo significado pra mim. Elas precisam, elas têm a obrigação de me cativar. O poder desse gancho, pra mim, como escolha pessoal, se tornou muito forte.

E é por isso que a frase "a lua se escondia atrás de uma cortina cinza de nuvens", já me causa agonia, por conta do clichê. O começo do livro tem vários clichês sobre "a noite", incluindo as estrelas que brilham no céu e até o piado de uma coruja! Achei demasiado.

Mas a gente logo vê algo que eu acho muito bom na obra de McPherson: a psicologia dos personagens é bem trabalhada. Nós vemos Adão, por exemplo, no meio de sua família (que a este ponto já é um pequeno vilarejo), sentindo-se culpado pelo que fez, assombrado pelos fantasmas do passado que causaram tanto mal para toda a humanidade. E o livro se trata dele mesmo narrando sua história para Enoque, o primeiro profeta.

Como eu suspeitava, partes do que eu li na prequel "Adam" (que, inclusive, eu já até resenhei aqui) estão também no capítulo que Adão descreve a criação. Por conta disso, embora eu ame, ame de verdade esta parte da história, não vou comentar mais. Deixe de preguiça e leia a outra resenha. Por outro lado, o fato de lido Adam estragou muitas nuances do começo de Éden, porque eu já sabia o que o autor ia fazer: como o homem vai se afastando de Deus aos poucos, como o relacionamento com a serpente é algo cultivado devagar, até crescer e explodir tudo, etc.

Eu já comentei com McPherson (sim, somos colegas de e-mail!) que não gosto da ideia de tornar Deus um personagem, dando falas e tudo o mais. Pode ser preciosismo, pode ser exagero, mas não consigo ir contra a minha consciência. Eu estava disposto a não deixar me abater por isso nesse livro. Mas, mano, até dizer que os olhos de Deus são castanhos ele fez! Achei exagero e desnecessário. Porém cumpre-me dizer que o personagem é trabalhado com respeito no decorrer da história.

O reencontro com o Pai depois da Queda foi emocionante, infelizmente não para alegria, mas para a mais profunda tristeza. O autor descreveu com maestria e criatividade o que deve ter sido o momento mais terrível da História. Me doeu o coração só de imaginar. Houve vários momentos que me emocionei ao ver o desenrolar em minúcias de uma história que eu já conhecia.

Aliás, o livro é muito fiel ao retratar a Queda, mostrando como ato consciente do homem e da mulher, além de colocar a responsabilidade por ela nos ombros do homem, o que está absolutamente correto! E fica evidente a destruição do bom relacionamento entre homem e mulher (é um dos grandes focos temáticos do livro). Um odiava o outro por ter caído em pecado e perdido a graça de Deus, ao mesmo tempo que, na sua solidão, tudo que podiam ter era um ao outro:
"For I felt certain that I could not regain my Father's closeness. Yet, if that were true, I had nothing left but her. And she hated me." (posição 967)
A ideia da separação de Deus caiu em mim com um baque. Pense que todos os dias Adão e Eva encontravam Deus no jardim e que, depois da Queda, eles não podiam mais falar diretamente com Deus. Já pensou conversar com alguém todo dia e a pessoa chegar e dizer: "Não podemos mais nos falar, quem sabe daqui a um ano"? Terrível. Terrível.

Do jeito como é descrita a saída de Adão e Eva do paraíso, bem como o choque com a nova realidade, me surpreende que os dois tenham conseguido viver depois daquilo tudo. O autor é muito autêntico em mostrar os comportamentos de ambos beirando a loucura. 

O encadeamento dos capítulos é um absurdo de bom. Quero muito aprender como fazer isso, porque McPherson escreve de um jeito que não deixa a gente parar! E não é como se cada capítulo terminasse num cliffhanger (que é o truque mais barato da cartola), mas é realmente a cadência da história que joga o leitor pra frente. 

Há algumas questões de verossimilhança no livro. Penso que é natural, especialmente porque estamos falando de uma época sem registros. Mas quero trazer os questionamentos à tona, porque julgo que são pertinentes. 

Veja bem, em certo ponto da história, Adão e Eva partem do pressuposto que ela poderia ter um filho, que esse filho seria uma criança e que eles teriam que cuidar dessa criança. Mas... como eles sabiam disso? Tem gente hoje em dia tendo filhos mas sem esta profundidade! Quantos adolescentes inconsequentes não estão por aí sem ter noção da responsabilidade de criar outro ser humano? Penso que esta motivação partiu de pressupostos do autor, não dos personagens.

Mas, do meu ponto de vista, o livro tem um problema grande de verossimilhança e este problema foi gerado devido a percepções culturais do autor sem que ele percebesse. Eu me refiro às estações do ano.

Tendo eu vivido num lugar onde só há duas estações e num país onde os climas predominantes são tropical e equatorial, não é difícil pra mim imaginar um lugar em que o tempo não seja visto por estações. Porém acho que não foi o caso do autor, que delineou bem quatro estações para aquele lugar, incluindo até um período de neve que foi muito relevante na história. Eu sei que é ficção, eu sei que é um tempo extremamente remoto e eu o estou vendo com olhos contemporâneos. Não obstante, não me convence essa história de quatro estações. Acho que foi uma percepção cultural do autor.

Em alguns pontos, o livro me parece ter uma vaga defesa ao vegetarianismo. Mas eu suscito apenas uma pergunta: o que aconteceu com a carne dos primeiros animais que Deus sacrificou no Éden, para fazer as roupas? Deus permitiu o desperdício do alimento? Não quero criar polêmica, mas estas dúvidas pipocaram na minha cabeça.

Apesar destas coisas, porém, o livro brilha. Talvez a grande beleza do livro é porque reconhecemos em Adão nós mesmos. E até às circunstâncias que hoje enfrentamos, estão muito próximas em princípio das que ele também sentiu. Se hoje dependemos da Provisão, por exemplo, quanto mais ele. Veja como esse trecho captura muito bem essa ideia (esta, aliás, acho que foi a citação mais bonita de todo o livro):
"From the little we have shared of Eden, many believed that after we sinned, we were on our own. But that could not be further from the truth. We would have died without Him. We still would." (posição 1650)
Novamente vejo uma ponta de desejo de redenção de Caim. O autor fez isso no primeiro livro que li dele. E aqui isso não é tão direto quanto lá, mas vê-se uma trama de comportamentos e falas que querem mostrar uma pressão social que teria ajudado a moldar o caráter de Caim e empurrá-lo na direção errada. Neste ponto, porém, não posso deixar de notar a maestria do autor em fazer isso.

A história em si é muito bem montada. Nós sabemos o que vai acontecer, nós conhecemos a história do Éden, nós conhecemos a história de Caim e Abel (a narrativa termina um pouco depois do primeiro assassinato), mas ainda assim ficamos grudados no livro, curiosos pelos meandros que os personagens terão que percorrer até chegar naquele ponto fatídico.

Após a história em si, o autor insere no fim do livro um comentário sobre os capítulos 1-4 de Gênesis. Embora, a princípio, desnecessário para um livro de ficção cristã, achei que a seção veio a contribuir com a melhor leitura do livro. Mas, como parte do livro, a seção também está aberta a críticas e comentários.

O que tenho a ressaltar deste trecho é quando ele mostra a culpabilidade mútua tanto do homem quanto da mulher no momento da Queda, até mesmo a culpa maior recaindo sobre o homem. Eu concordo plenamente com isso. A última coisa que quero ver é a Escritura sendo usada para criar sexismos sob o falso selo de "Cristianismo."

Não obstante, embora eu creia que ele creia nisso, não foi exatamente o que foi repassado na história. O Adão que ele retrata é quase um banana! Em muitas, muitas situações mesmo, eu fico com raiva do personagem de Adão. Talvez o pecado dele o fizesse cada vez mais um homem ausente no seu lar, mostrar o homem cada vez mais omisso. Eu entendo e concordo com essa opção de narrativa (aliás, muito fiel). 

Mas nos momentos de maior agonia, eu o vejo se retrair e acovardar-se! O comportamento se encaixa na história, até porque a história é moldada, em boa parte, por este comportamento. Mas uma vez que Adão não é apenas um personagem de uma história fictícia, eu me pergunto se aí também não houve um problema de verossimilhança.

A não ser por este mero ponto, tudo que ele falou quanto às interpretações do começo de Gênesis se encaixam perfeitamente com tudo que acredito, incluindo aí que existia dor antes da Queda (as dores do parto seriam multiplicadas), que o mal já existia antes (o homem só não tinha o conhecimento da dicotomia bem x mal) e que, de certa forma, havia uma espécie de ciclo da vida, embora, a princípio, o homem não estivesse incluso quanto à morte (ainda que isto não impedisse que outras criaturas estivessem).

Fiquei bem triste em ver o livro que me apresentou a McPherson, Cain (resenhado aqui), des-publicado. Digo isso porque com "Eden", o autor descontinuou e reestruturou a história que ele tinha trabalhado no outro livro. Por outro lado, ao ver o autor "se desculpando" por aspectos de fantasia no seu livro sobre o Dilúvio, me faz entender seus motivos. Presumo eu que seu público não quis aceitar muito bem estes elementos de fantasia. Algo que eu, particularmente, acho uma grande pena, uma vez que para mim, é nestes elementos que resta o grande toque de singularidade do livro.

Agora tem algo muito interessante em como Deus age por meio de escritores de ficção cristã, e gostaria de me incluir nisto. O desejo de McPherson com seus livros é exatamente o mesmo que tenho com o meu (ou "os meus", quem sabe). Veja só:
"I hope that tese books stimulate thought and help you to fall deeper in love with Scripture. I also hope these books help you see the text of the Bible from a fresh perspective. As always, your source of truth is the Bible.I write these books not to add anything to the Bible, but to entertain, uplift, encourage, provoke thought, challenge (both myself and others), and to give myself an additional reaon to dive deeper into the heart of Jesus" (posição 4259)
Caramba, é exatamente isto que eu faço também! Está aqui um exemplo claro do Espírito Santo agindo com o mesmo propósito em corações tão distintos, separados por culturas, idiomas e espaço geográfico tão diferentes; mas unidos com o mesmo propósito de adorar o Criador com tudo que Ele mesmo nos concedeu. Pode parecer loucura, mas eu sinto no autor um verdadeiro irmão e amigo.

Por isso, não me resta outra opção senão mais uma vez recomendar este autor. Tenho o sincero desejo de que todos o leiam, porque eu creio que ele será um nome a ser reconhecido. E, se não for, terá sido uma grande pena para nossa geração. Deus em sua grande Providência poderá usar estes trabalhos mesmo que McPherson não se torne grande. Mas minha oração é que ele cresça, para abençoar ainda muito mais vidas. 

Leia-o.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Resenha - O Fantasma da Ópera

LEROUX, Gaston. The Phantom of the Opera. E-book. AmazonClassics, 2017.


Ah, meus amigos... Le Fantôme de l'Opéra... Eu nem sei como iniciar essa resenha. Este livro é fenomenal. Não, corta isso. Fantástico. Não, é pouco. Eu não consigo expressar como esse livro é bem escrito, envolvente, fascinante... (muitos adjetivos com a letra f). Mas eu vou tentar, sinceramente. Mas eu já aviso: essa vai ser uma resenha longa, eu tenho motivação pessoal especial para falar do Fantasma da Ópera, o livro é bom, etc. Estão avisados.

Bom, em 2019 eu tive o privilégio de participar de um musical aqui em Roraima intitulado "Os melhores da Broadway". O musical O Fantasma da Ópera foi apresentado em Los Angeles pela primeira vez em 1986 e... está em cartaz até hoje! É o musical com maior tempo de permanência na Broadway até hoje, passou até de Cats

Então, participando deste musical eu tinha uma única função: interpretar ninguém, ninguém menos, que o Fantasma da Ópera. Eu nem consigo explicar direito como foi aquilo, como foi experimentar ser o Fantasma, cantar como ele, pensar como ele, sentir como ele... ser louco como ele... ah! Só isto já era motivação suficiente para eu pegar esse livro para ler. 

Devo confessar que a primeira vez que ouvir falar do Fantasma não foi pelo livro, mas pelo musical que depois se tornou filme. Este filme eu achei muito interessante, mas eu achava que O Fantasma da Ópera era uma produção recente. Jamais eu desconfiaria que o livro foi lançado em 1910! Caramba... taí um título que sobreviveu ao teste do tempo, não dá pra negar. E não foi à toa.

"[...] every one felt that if the dead did ever come and sit at the table of the living, they could not cut a more ghastly figure." (p. 29)

No livro o autor tenta convencer a gente continuamente que a história é baseada em fatos reais sobre um fantasma que realmente existiu. Isso é legal porque sempre deixa a gente com uma pulga atrás da orelha. Além disso, é clássico daquela época as histórias serem contadas por meio de um storyteller e não diretamente por um narrador onisciente (a que me vem a cabeça com mais evidência é Moby Dick).

E vamos falar logo das técnicas e estilo do livro. De cara, notei que ele faz uso muito bem de uma técnica que já vi mestres recomendando: em vez de você falar ou descrever diretamente algo, você coloca um personagem para fazer isso. Torna muito mais interessante ouvir sob a perspectiva de outra pessoa, além de servir para enriquecer o próprio personagem. Classic win-win situation. 

E isso acontece várias vezes no decorrer do livro, porque o storyteller (narrador), para compor sua história, precisou pegar fragmentos de diários, entrevistas, além de pesquisas com fontes diretas (olha só como é interessante a questão da verossimilhança aqui!). Logo, a narrativa fica muito densa e rica, até pela necessidade de questionarmos os próprios relatos, uma vez que são narrativas de personagens, não de um narrador que sabe tudo.

Veja bem, exceto por umas duas ou três cenas, o livro não é escrito do ponto de vista do Fantasma (que seria o maior protagonista de toda a história). Isto torna o um personagem ainda mais interessante, porque sempre o conhecemos apenas a partir do ponto de vista de outras pessoas. Uma técnica narrativa utilizada com perfeição por Leroux! (Eu me adianto aqui falando de personagens, mas é que não consigo evitar falar... dele).

Quanto ao estilo, veja que estamos falando dos últimos resquícios do romantismo do século XIX. Ou seja, mesmo numa obra como esta encontramos ainda os arroubos de romantismo excessivo que causam um misto de agonia e vontade de rir. Acho que o autor não conseguia evitar aqueles diálogos melosos e motivações (ao meu ver contemporâneo) pífias a princípio. Mas isto é pequeno, pequeno.

O grande lance dessas falhas é que o autor encontrou uma mina de ouro. O Fantasma é um personagem muito bom. A ideia de ter um fantasma num teatro é simplesmente boa demais, quase surpreendente que ninguém tivesse pensando nisso antes. E talvez seja isso que torne a ideia tão genial: estava bem debaixo do nosso nariz.

E, pior!, se fosse apenas uma boa ideia, talvez Leroux ainda tivesse a capacidade de arruiná-la; mas, não. Ele foi habilidoso o suficiente para transformar essa ideia numa baita história. Estou convencido de que o que eu enxergo agora como problemas estilísticos não são mais do que marcas de sua época. Ninguém escapa ao Zeitgeist

Tá, agora vamos chegar no que eu acho o âmago do livro: os personagens. Não é que a trama seja ruim, pelo contrário. Mas é pela boca dos personagens que nós vemos a maior parte do desenrolar dos acontecimentos, dando a eles uma função mais do que primordial.

Pra começo de conversa, eu sempre tive um problema com a personagem Christine. Eu sempre achei ela boba demais, muito crédula e bem lesa mesmo. Mas conforme o livro foi desenrolando a psiqué dela, eu fiquei convencido. Enquanto ainda a odeio no filme -- visto que lá é impossível transparecer de maneira plena o que um livro traz --, aqui ela já parece realmente ser outra pessoa.

Alguns personagens foram bem mais realçados no livro do que no filme. Por exemplo, o filme deixa muito a desejar quando não inclui nele o Persa. Este cara é essencial não só para explicar a história do Fantasma (sua origem e desenvolvimento) mas também para os acontecimentos que garantem o final da história! Diabos, tem uns quatro capítulos que são narrados diretamente por ele! 

Falar de personagens ainda é falar de técnicas. O uso de nuances é brilhante. Por exemplo, o penacho negro do chapéu de Mademoiselle Giry. O autor usa este objeto pra constantemente se referir às agitações internas da personagem sem gastar uma linha abordando isso diretamente. Brilhante.

Claro que temos aqui o Raoul, o parzinho romântico de Christine. Embora meio bobão (novamente aqui transparece bem o estilo da época), a gente vê que o personagem tem uma certa consistência. Mas a impressão que eu tive dele não melhorou tanto, mesmo com o aprofundamento do livro. Este é o resquício mais forte que temos no livro de um romantismo babão.
"It is true, Christine!... I am not an Angel, nor a genius, nor a ghost... I am Erik!" (p. 130)
Ora, sem mais delongas, chegou a hora de falar do personagem principal, o Fantasma da Ópera. Ele é, de longe, o personagem mais interessante e mais bem trabalhado de toda essa narrativa. 

Este cidadão, cujo nome é Erik, tem uma história complexa de abandono social, deformação física e distúrbios psicológicos. Não obstante, ele consegue ter uma voz poderosíssima, uma criatividade cigana invejável com manipulações e ilusionismo, além de capacidades fantásticas como ventriloquismo.

A primeira coisa que realmente preciso falar dele é o seguinte: o Fantasma da Ópera não é bonito! E nem pode ser! Esquece aquele ator lindo e maravilhoso com uma mascarazinha furreca. Não! Aquilo não é suficiente! O Fantasma era chamado, na sua infância, de "O Cadáver Vivo". A sua própria mãe nunca o beijou nem abraçou, aliás, foi ela que fabricou sua primeira máscara! 

Ele rodou a Europa e Ásia Menor como uma aberração talentosa. As pessoas não conseguiam sequer olhar direito para ele sem que lhes causasse horror. O Fantasma é descrito como não tendo nariz, olhos afundados e a pele do rosto ressecada e sugada, como se ele fosse um cadáver mesmo! Além disso, era dito que ele tinha o cheiro de um, pois sua pele era fria e causava asco ao toque.

Vejam, essa feiura moldou todo o caráter do Fantasma, ela não é um detalhe e tampouco pode ser retirada. O livro não é uma aventura romântica, longe disso! O livro é praticamente um terror gospel, quase uma aventura policial de suspense. O Fantasma pode falar de amor, pode dizer que sente amor, mas ele é um psicopata. Não esqueçam disso. A sua loucura o define.

Ah, e gente, gente!... Meu Deus! Não dá pra seguir em frente sem falar do capítulo 12: "A lira de Apolo". Caramba! Eu disse: CARAMBA! Aquele capítulo é fantástico! É quando somos apresentados ao Fantasma em toda a sua essência. E que personagem fascinante! E como é fascinante a relação dele com Christine, a quem eu tanto odiava ainda há pouco. 

Nossa, quantas exclamações neste último parágrafo, é quase um abuso; mas não consegui evitar. Este capítulo deve ser a alma de todo o livro, que é justamente a cena do telhado. A grande cena em que Christine se declara para Raoul, sem saber que lá, escondido, enchendo-se de fúria e vingança, estava o Fantasma da Ópera. 

Os lugares descritos no livro também têm uma relevância interessante. O mundo dos Porões do Teatro são absolutamente fascinantes. O autor criou ali um reino de fantasia, com monstros, personagens obscuros e quasi-zumbis que perambulam. É genial! Nós de repentes somos transportados e imersos num fundo de suspense, onde tudo é possível, onde paredes são espelhos, onde um homem pode conduzir uma miríade de ratos e onde uma sombra desconhecida passa, a serviço de alguém que não é o Fantasma!

A França é o centro dos acontecimentos, ou melhor, a grande Casa de Ópera de Paris. Mas a Escandinávia é constantemente mencionada e sempre se dá a ela um ar de "tempos melhores", paz ou simplicidade de vida. Curioso é perceber que mais de um personagem teve sua infância nestas localidades.

E é absolutamente chocante a quantidade de fatos reais envolvidos. Sim! Porque a Casa de Ópera à qual o livro se refere é real! Trata-se do Palais Garnier. Ele realmente é uma das maiores casas de ópera do mundo, tem de verdade túneis subterrâneos que foram inclusive usados como esconderijos durante guerras, e, pra piorar tudo, tem de verdade um lago subterrâneo que é usado até hoje em treinamentos de bombeiros.

As similaridades que o livro tem com a vida real o tornam ainda mais fascinante. Cabe aqui lembrar que Leroux foi jornalista na época e esteve bem informado quanto às obras de construção do Palais, daí seu insight tão perfeito sobre o local. Só esta Casa de Ópera em si já é um deslumbre, ponto perfeito para o mistério. E ele ainda resolveu colocar o Fantasma nela! Ah, que gênio!
"Poor, unhappy Erik! Shall we pity him? Shall we curse him? He asked only to be 'some one', like everybody else.
[...]
He had a heart that could have held the empire of the world; and, in the end, he had to content himself with a cellar.
" (p. 283-284)
Com o que finalizamos, então? Com um livro muito, mas muito bom mesmo. Caramba, e pensar que é uma obra do começo do século passado! Se formos pensar estilisticamente, na verdade é uma obra do final do século XIX! A gente fica vidrado nela, mas de um jeito diferente das obras contemporâneas, em que temos um pico de ação perto do fim.

Claro que temos sim mais acontecimentos se desdobrando perto do final, mas há constantemente mistério e temor que nos impulsiona à necessidade de saber o que vai acontecer. Até mesmo os diálogos são bem construídos pensando nisso, na doce agonia de deixar o leitor em permanente ânsia da revelação da verdade. E que verdade, meus caros.

Por favor, por favorzinho, leiam o Fantasma da Ópera, aproveitem que está de graça na Amazon por conta da quarentena do vírus (aliás!, segundo ou terceiro livro que leio já nesta quarentena). Aproveitem esta oportunidade para se deleitar com uma literatura que não dá pra botar defeito. Leiam, leiam! Venham para onde eu estou agora porque the Phantom of the Opera is here... inside my mind!