quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Resenha — Drácula

STOKER, Bram. Dracula. Ware, Hertfordshire: Wordsworth Editions, 2000.


"There was one great tomb more lordly than all the rest; huge it was, and nobly proportioned. On it was but one word

DRACULA.
(p. 309)
Essa resenha vai ser parecida com a que fiz de Frankenstein: fatos e fakes sobre o que de fato está no livro do Drácula. Pretendo mostrar como muito do que se toma por "vampiro" hoje não tem nada a ver com o clássico que marcou o gênero de uma vez para sempre. Antes porém, dois adendos.

A edição da Wordsworth Classics é muito boa por ser bem trabalhada e ter preço acessível. O texto é bem diagramado e as notas de rodapé são bem úteis (coisa rara!) e ajudam a gente a entender melhor a história. O único pecado é essa capa horrível, que, assim como Frankenstein, não tem nada a ver com o personagem.

A história é narrada de forma epistolar, ou seja, em forma de cartas ou relatos escritos nos diários dos personagens. Stoker foi genial em conseguir não só expressar bem toda a narrativa usando essa técnica, como também foi capaz de concatenar toda a série de acontecimentos e relatá-la de forma ordenada nessa mistura de diários e cadernos. Só não gostei do uso de maneirismos na hora de falar (tipo escrever em caboquês), dá muito trabalho de ler e dificulta o ritmo.

O autor nos informa de tudo isso sem de fato nos informar. São detalhes que surgem na narrativa e a gente absorve sem perceber — eis aí a maestria de um escritor. Não sei se fiquei assustado, embora devo admitir que várias vezes o livro conseguiu me deixar com um pouco de medo. Por outro lado, em mais de um momento, fiquei sim horrorizado.

Só lembrando que Stoker não foi o primeiro a falar de vampiros. Enquanto Drácula é de 1897, a primeira menção a "vampyre" apareceu em 1819 com John Polidori. Quando Stoker escreveu sobre o tema, ele já era bem popularizado na Europa. Stoker só fez consolidá-lo de modo incrível. A partir daqui vou enumerar diversos fatos que o livro traz sobre o Drácula. 

O livro dá medo, dá vontade de chorar, é eletrizante em alguns momentos... Hoje nós lemos Drácula e já temos todo um imaginário formado sobre ele. Fico me perguntando como deveria ter sido ler isso em 1897 pela primeira vez. Daí a importância de comentar o que está de fato no livro:

#DA SUA PESSOA
  • Drácula não era horripilante. Pelo contrário, ele era carismático, embora de fato a sua aparência tivesse algo peculiar. (p. 17)
  • O livro é claro em dizer que ele tinha bigode volumoso. (p. 17)
  • Ele não tem reflexo no espelho (p. 23)
  • Ele deve ter pelo menos 300 anos de idade (p. 41)
  • Ele dorme de olhos abertos e parece exatamente como um morto, sem pulso ou respiração (p. 41)
  • Ele tem olhos vermelhos (p. 79)
  • Ele não tem sombra (p. 199)
  • A cripta dele fede a sangue podre e decomposição (p. 208)
  • Ele é rico e tem um castelo, mas não tem só um covil (p. 219-220)
#QUEM ELE ERA EM VIDA (antes de ser vampiro)
  • Drácula era um nobre da etnia húngara dos sículos (p. 25)
  • Ele tinha um irmão que morreu na guerra contra os turcos (p. 26)
  • O seu primeiro nome é "Voivode" e ainda em vida ele era considerado um guerreiro forte e muito inteligente. (p. 200)
  • Ganhou seus poderes ao fazer um pacto com o diabo (p. 200)
  • Ele foi um soldado, político e o maior alquimista da sua época, além de ter sido muito inteligente e versado em todas as ciências. Após a morte, ele perdeu parte desse conhecimento, e teve que reaprender várias coisas (p. 251)
#PODERES
  • Ele é capaz de se mover pelas paredes como um lagarto (p. 30)
  • Alimentação
    • Ele se alimenta sugando o sangue de suas vítimas (p. 77)
      • Ele suga o sangue aos poucos, não é tudo de uma vez
      • As pessoas que morrem e se tornam vampiras por causa dele, passam a ficar sob seu controle (p. 169)
      • Ele passa a ter conexão mental com essas vítimas. Não chega a ser telepatia, mas há transmissão de sons e sensações (p. 260)
    • Ele rejuvenece depois de sugar sangue da vítima (p. 44)
    • Quando ele toca na vítima, ela não consegue lutar contra e ele toma o sangue dela sem resistência (p. 239)
  • Controle sobre animais
    • Ele pode comandar lobos (p. 40)
    • Ele pode controlar ratos, corujas, mariposas, raposas (p. 197)
  • Domínio sobre outras pessoas
    • Mesmo dormindo ele é capaz de paralisar a pessoa que olhar nos olhos dele (p. 45)
    • Pode hipnotizar pessoas (p. 76-77)
    • As vampiras, mesmo no caixão, têm uma espécie de encantamento que seduz os homens e faz eles não quererem matar elas. Eles ficam divagando até o por do sol, quando elas acordam e matam (p. 308)
  • Controle sobre o mar
    • Ele pode criar e controlar tempestades (p. 65)
    • Ele pode criar neblina (p. 65)
  • Mudança de formas
    • Ele pode encolher ou aumentar de tamanho (p. 197)
    • Pode ficar incorpóreo (p. 74)
    • Ele pode se transformar em um cachorro grande (p. 67)
    • Pode se transformar em morcego (p. 79)
      • Nesta forma ele pode hipnotizar pessoas (p. 79) 
      • Ele também pode sugar o sangue das vítimas (p. 80) 
#LIMITAÇÕES
  • Prevenção e morte
    • O alho de fato afasta ele (p. 119)
    • O crucifixo de fato afugenta (p. 177)
    • Estaca ou faca no coração mata o vampiro (p. 179)
    • Além da estaca, ele pode ser morto por decapitação ou uma "bala sagrada" — seja lá o que isso for (p. 200)
    • Um ramo de rosa selvagem colocado na tampa do caixão impede ele de sair ou entrar (p. 200)
    • O lugar onde ele dorme é considerado solo profano e é possível "santificar" o local de modo que ele não consiga voltar pra lá e descansar (p. 201).
    • Quando se mata um vampiro no túmulo, ele grita enquanto a estaca entra no seu peito e sua boca espuma sangue (p. 308-309)
  • Ele NÃO SE MACHUCA quando anda no sol. Exemplos dele andando no sol de boas:
    • Seguindo uma de suas vítimas durante o por do sol (p. 79)
    • Passeando num parque em Londres durante o dia (p. 143)
    • Durante o dia, disfarçado, ele mesmo ajudou estivadores a carregar seus caixões pra diferentes esconderijos em Londres (p. 219)
    • Pleno meio dia e ele andando na rua — embora confinado à forma de homem até o anoitecer (p. 253)
  • Durante o dia seus poderes são limitados. Para se transformar durante o dia em um animal ele só consegue exatamente no nascer do sol, ao meio-dia, ou no por do sol (p. 199)
  • Ele só pode entrar numa casa se tiver sido convidado (p. 199)
  • Ele não consegue atravessar água corrente (p. 199)
  • Símbolos sagrados (hóstia, crucifixo, etc.) queimam a pele do vampiro ou até da pessoa que está no processo de se transformar em um (p. 246)

#VAMPIROS EM GERAL
  • Um vampiro transformado não é a mesma pessoa, é mais como se um vampiro surgisse naquela pessoa, usando o corpo como seu receptáculo. Em determinado momento, quando encontraram com Lucy, era a mesma pessoa fisicamente, mas o olhar, os modos, gestos, tudo diferente. Eles chamam ela de a "Coisa" em vez do nome da pessoa, porque é totalmente distinto (p. 176)
  • O vampiro retém apenas parte das memórias de quando em vida (p. 176-177)
  • Vampiros entram e saem dos túmulos de forma incorpórea (p. 177)
  • Assim como todos os outros vampiros, Drácula era um prisioneiro dentro do seu próprio corpo (p. 314)

#OUTROS FATOS INTERESSANTES NO LIVRO

A primeira menção ao termo "vampiro" no livro é num contexto em que um dos personagens menciona os Pampas Argentinos e destaca que lá havia morcegos-vampiros que atacavam cavalos e sugavam o sangue deles:
"One of those big bats that they call vampires had got her in the night, and, walked with his gorge and the vein left open, there wasn't enough blood in her to let her stand up [...]" p. 126)
Aliás, o livro só vai chamar Drácula de vampiro lá do meio pro fim. Van Helsing também faz menção a ele como "Nosferatu", que é o mesmo que "Un-Dead" ou "Des-Morto" — nós conhecemos essa palavra mais comumente como "Morto Vivo".

O autor é deveras muito bom e tem momentos que o livro emociona, a gente realmente se vê inserido naquele contexto. Trago duas citações que achei bonitas e marcantes, ao ponto de valer a pena o registor aqui:
"[...] though sympathy can't alter facts, it can help to make them more bearable." (p. 79)
"If ever a face meant death — if looks could kill — we saw it at that moment." (p. 176)
Uma última conclusão que preciso destacar. Quando se lê esta obra NÃO DÁ vontade de ser o Drácula. Não tem nada de glamouroso ou sedutor em ser esse vilão. No fundo o Drácula é um covarde. Ele ataca apenas as mulheres e quando foi enfrentado por homens preferiu fugir. Ele é realmente desprezível. É como se você assistisse um filme de um monstro nojento e no final dissesse: "Que vontade de ser igual a ele". Não faz sentido nenhum.

O Drácula apresentado nesse livro tem vários poderes, mas tem muitas limitações e uma personalidade corrompida. A personalidade podre é basilar, faz parte da essência do vampiro (não só do Drácula). Não há possibilidade de ser um "vampiro bom", pelo menos não como Stoker apresenta Drácula aqui.

No fim das contas, este livro é uma obra-prima. Isso que nem falei aqui dos diferentes personagens e das tramas! Não foi a primeira vez o que li e, tenho certeza, também não será a última vez que o lerei. Se você puder, tire tempo pra ler este livro.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Crônicas que eu não deveria publicar — 2

Do caboco.

O caboco não é o caboclo, que você aprendeu na escola. O caboco é um outro tipo, que não tem a ver com raça, tem mais a ver com comportamento. O caboco em si é um estudo sociológico e antropológico completo, uma espécie que faz parte da fauna do Brasil. 

Pensando assim, podemos começar com a geografia e a localização do caboco. O caboco é um ser que está na América Latina de modo geral. No Brasil, ele é encontrado em qualquer lugar, embora sua presença esteja mais forte nas regiões Norte e Nordeste, além de espalhado pelos interiores desse Brazilzão.

O caboco é por natureza desconfiado e auto-inferiorizado. O caboco não se sente à vontade nos círculos mais altos da sociedade ou, por contraste e exagero, sente-se à vontade demais nestes círculos, deixando bem claro que não pertence a eles. O caboco, no fundo, tem ojeriza ao ridículo — situação na qual, não importa o quanto se esforce, ele sempre se vê.

O caboco quando fica em uma fila (e ele fica muito em filas) não se distrai com um livro, com um celular, com as notícias na TV. O caboco gosta de olhar as outras pessoas. Ele fica olhando, julgando, morrendo de medo de ser comparado a outrem e, ao mesmo tempo, comparando-se. O caboco tem olhos rápidos. Se ele percebe que alguém o viu olhando, tenta disfarçar e fingir.

O caboco tem medo de conversar. Ele prefere fingir que não viu, prefere fazer gestos com a cabeça, prefere até mesmo ignorar, a correr o risco de passar vergonha quando fala. Porque, novamente, o caboco não sabe falar — ou pelo menos acha que não sabe.

O caboco, no fundo, tem medo. E, na maioria das vezes, ele expressa seu medo por meio da raiva. Não que ele seja violento; mas seus modos transparecem sua agressividade. O caboco é a garçonete que detesta atender as pessoas, que nem encara as pessoas na mesa, que faz de mau grado porque, no fundo, ela nem queria interagir com aquelas pessoas. E isso não tem a ver com o cansaço do dia de trabalho — ela teria esse comportamento em qualquer outra situação: é a caboquice.

A caboquice então se manifesta nessas coisas. O caboco só se sente à vontade quando está com outros cabocos. E ainda criticam uns os outros quando um deles faz caboquice. 

Aliado à desconfiança natural, o caboco tem por certo que ele é impotente. O caboco se submete às mais diversas situações porque ele não sabe falar, então quem fala, bom... esse deve saber o que está falando. O caboco não sabe se comportar em diversas situações sociais, então, bem... aquele que sabe deve saber mais que ele. 

O caboco quando se vê numa situação de desvantagem, em vez de buscar a vantagem, resume tudo numa reclamação, solta impropérios de indignação, e volta pra casa com a certeza de que fez absolutamente tudo que podia fazer, porque, sabe como é né, as coisas são assim mesmo, vai fazer o quê?

Às vezes, quando em manada, o caboco solta a voz. O problema é que caboco com voz alta afasta outros cabocos. Então basta um começar a se evadir do local, de repente quem falou se vê sozinho e, novamente, diante do sentimento de impotência que lhe é natural.

A dieta do caboco é, na maioria das vezes, o que ele consegue ter. Mas, se em alguma situação ele tem acesso a comida diferente da sua, logo critica, pois aquilo não é comida de verdade. E não me refiro a pratos finos e exóticos. Até mesmo a culinária caboca de outra região pode causar no caboco um sentimento de estranhamento.

Enfim, o caboco é uma espécime tão natural do Brasil, que não está limitado a um recorte geográfico ou social (embora, como já argumentei, alguns recortes o tornem mais evidente). O caboco é parte da alma do Brasil, da América Latina.

E, neste ponto, talvez você se pergunte: mas de onde vem isso? Foram séculos de colonização? Mas então porque isso se manifesta em uns e outros não? Por que isso é tão natural para algumas pessoas e outras não conseguem sequer entender a razão desse tipo de ser? Afinal, o que fez do caboco um caboco?

Aí já são perguntas para os universitários. Antropólogos e sociólogos, se algum de vocês desenvolver uma pesquisa falando sobre isso, por favor entrem em contato, quero ler uma boa explicação sobre esse fenômeno. Mas por favor não me liguem, nem olhem diretamente pra mim, se possível nem falem comigo que fico nervoso. 

Desculpem, é minha alma de caboco.