quinta-feira, 23 de maio de 2019

Conexão em Nova Ómicron

– Quase lá. 
– Vê se não enrola – ele me respondeu, impaciente. – Se fosse eu já tinha terminado. 
– Você realmente acha que consegue descriptografar dez camadas de código mais rápido que eu? 
– Minha filha, você esqueceu com quem está falando? 
Ter uma inteligência artificial como seu aliado tem seus custos e seus benefícios. O Arty realmente conseguiria fazer isso bem mais rápido que eu. Mas ele não consegue acessar o terminal a não ser que eu plugue meu cytron no próprio terminal, e eu não estou doida ainda. Se alguém invade meu cytron já era. Melhor fazer à distância mesmo. 
– Consegui! Arty, como faz agora? 
– Você tem certeza que eu não posso fazer eu mesmo? 
– Bora, Arty! Eles vão já detectar a gente. 
Meio a contragosto ele me ensinou quais códigos lançar. O solavanco do trem elétrico fazia meu laptop balançar demais. As outras pessoas no trem estavam focadas nos seus cytrons ou cansadas demais pra prestar atenção em mim. Eu fingia trabalhar, o equipamento antigo fazia com que eu não chamasse a atenção e era um bom disfarce pra verdadeira máquina que eu usava. 
Arty, achei. Vou começar a copiar. Tá pronto? 
– Minha filha, achei que não mandaria nunca, vamo simbora! 
Conectei o cytron e Arty começou a fazer sua mágica. O trem parou e entraram uns sintéticos. Eu morro de medo deles. As tatuagens espalhadas pelo corpo ora destacam ora escondem as cicatrizes dos implantes de órgãos artificiais. Pelo menos não preciso falar muito, graças ao implante do chip auricular pra me comunicar diretamente com o Arty. 
Olhei pela janela e ainda dava pra ver o Espaço-Porto à distância. Aquele domo cinza me dava arrepios. Enquanto Arty copiava os dados e os sintéticos conversavam entre si sem me dar bola, eu pensava nas favelas de Anortis. Foi onde nasci, mas tive que sair depois que a companhia de extração das Nações Unidas estabeleceu umas regras mais pesadas. Não gosto de voltar lá. 
Arty, depressa, minhas barreiras não vão durar muito. 
– Tá na mão filha, pode desconectar. 
Despluguei o cytron e comecei a apagar meus rastros. Dessa vez não nos pegaram.

[...]  
 
Entrei no ultrabus e pegamos o tubo principal pra Nova Ómicron. Como estava cedo tinha lugar pra sentar. Evans me passou o contato de um conhecido que tava precisando de um serviço. Esse era mais ousado. Eu precisaria ir à Nova Ómicron pra fazer ele. A cidade até que é boa, mas é complicado lidar com as pessoas. Com minha velha mochila e o laptop seguimos pra lá. 
Arty, tá acordado? 
– E eu lá durmo, filhona? – ele brincou – que você manda? 
– Eu não mando nada. – brinquei de volta – tu achou o acesso pro pavilhão? 
– Tive que quebrar alguns algoritmos, mas foi moleza, deu pra começar o dia. 
– Beleza, já deixa engatilhado o coquetel viral, pra gente espalhar assim que eu entrar. 
– É nóis. 
Esse serviço era pra ser tranquilo. O contato do Evans queria uma série de dados pessoais que iam ser transmitidos pelo Espaço-Porto para a colônia de Hamerdan, em Marte. Consegui confirmar o dia certo e bolei com o Arty como fazer. 
Conforme o ultrabus percorria o tubo central e eu via o maldito domo cinzento se aproximando, eu ficava pensando na sorte que é ter o Arty. Não sei porque tenho essa capacidade de lidar com a tecnologia de maneira que outras pessoas não conseguiam. Meu pai dizia que eu era uma verdadeira “lunática”. Ele morreu trabalhando nas minas de anortositos. 
Eu programei a primeira versão do Arty quando tinha doze anos, como um amigo. Conectado no cyberespaço, de uma vez ele desenvolveu uma personalidade própria e vive comigo desde então. Não sei até que ponto ele é senciente ou é programado. Nem quero saber. Depois que minha mãe morreu e eu me vi sozinha no mundo, ele é tudo que tenho. 
Não demorou muito pra chegarmos na ultraviária. Desci e fui num terminal de consulta pra ver meus créditos. Passei o cytron no visor e o que vi me deixou preocupada, era bem menos do que eu gostaria. Comecei a andar em direção ao Espaço-Porto. “Pavilhão C-23”, passei o nome na memória de novo.

[...]

Aí a tela do meu cytron se apagou. “Ah não! Não faça isso comigo!”. Nela apareceu uma mensagem em letras verdes destacadas contra o fundo negro da tela: 
“VOCÊ NÃO ESTÁ SOZINHA” 
Então ouvi fortes batidas de metal contra metal. 
– Ei! Quem ativou o robô policial?– ouvi um dos guardas falar.
– Não tenho ideia, mas ela vai chamar muita atenção, tem que desligar. Sargento! 
– ADA-22, verificar credencial, sargento Chant, tag 3316.34-ONU, desativar. 
As batidas não pararam. 
– Sargento, ela tá vindo pra cima de nós! 
– ADA-22, DESATIVAR! 
– Sargento, ela tá ativando as armas! 
– Bater em retirada! Ela está engajando em batalha! Corram!

 
E agora? O que aconteceu com os dois? Que trabalho era esse em Nova Ómicron e quais seriam as consequências dele? Você pode ter a resposta para todas estas perguntas lendo o conto completo na antologia "A Máquina Consciencial", um trabalho de organização de Miranda May por meio do Engenho das Palavras. Um excelente trabalho, onde você encontrará inclusive, outros contos de excelente qualidade. Bom proveito!

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Resenha - O trílio dourado

NORTON, Andre. O trílio dourado. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.



Ler sempre é algo muito bom. Mas quando a gente é criança ou adolescente, a gente lê de um jeito diferente. Se por um lado não temos maturidade pra entender muito do que lemos, por outro não temos o peso do tempo e das obrigações pra atrapalhar nossa leitura. Lemos simplesmente porque queremos ler.

Meus pais compraram esse livro pra mim quando a Livraria Nobel ainda funcionava ali na Glaycon de Paiva (era lá, né?). Devo tê-lo escolhido só pela capa, certeza. O livro é parte da Série Trílio, escrito por algumas das maiores escritoras de fantasia da atualidade. O "Trílio Dourado" é um interlúdio, uma história à parte, da série principal. A Editora Rocco fez parte da minha infância. O investimento no gênero fantasia para o público infantojuvenil deixou marcas que perduram até hoje.

Que eu sou meio excêntrico não deve ser novidade pra ninguém, e este livro ajuda a provar isso. Não é a primeira vez que leio essa obra, céus!, creio que já cheguei na marca das 10 leituras desse livro. Tudo começou na infância, entrou pela adolescência e, até hoje, é uma leitura que gosto de desfrutar. A excentricidade: sempre, por obra do acaso, li esse livro na época das chuvas. Hum, que coisa, né? Ah, e o mais interessante: o começo do livro se passa num pântano... no período de chuvas.

É um livro típico de fantasia: criaturas estranhas, objetos mágicos, vilões inesperados, batalhas com magia e espadas. O diferencial para a época: heroínas como personagens principais. O desenvolvimento inicial é lento, mas não tedioso. Como a história parte de um enredo já construído, há muitas menções que não entendo totalmente, mas que são suficientes para ter a ideia do contexto. Mas, pra um livro de fantasia, penso que deveria ter mais ação. Toda a aventura é um grande passeio, com algumas tensões, culminando numa dinâmica maior só no último 1/8 do livro.

O enredo é bem construído. A autora não tem pressa, mas às vezes enrola um pouco. Não obstante, os fatos são bem encaixados e são verossímeis dentro das regras do jogo estabelecidas pela autora; o universo compartilhado do Trílio vem a calhar também. Kadyia, uma das Três Princesas guerreiras, é a protagonista do livro e junto com o companheiro nyssomu Jagun, além do Desconhecido Lamaril, vai enfrentar um novo mal que assombra a terra de Ruwenda.

Fantasia não é um gênero uno. Se em Harry Potter a magia é a tônica, em Senhor dos Anéis há bem menos do que você pode esperar. Elfos não são sempre as mesmas criaturas, depende do autor e do universo onde eles estão. O gênero do Trílio é aquela fantasia medieval: castelos, princesas, espadas, poderes e lugares desconhecidos, amuletos; mas não há muitas criaturas fantásticas no livro, senão as principais raças da história: humanos, oddlings (criaturas habitantes dos pântanos, subdivididas em Nyssomus e Uisgus -- ambos amigáveis e parceiros dos humanos), skitreks (criaturas malignas que habitam a terra) e os Desconhecidos (uma raça de seres poderosos que viveu na terra, mas abandonou-a devido a uma guerra civil pelo poder). Magia ocupa boa parte da história; esta magia é uma forma de misticismo, com muita comunicação mental, forças ocultas e absolutas.

Leitura agradável, espaçamento confortável, uma edição digna de uma boa editora. Mas a tradução é cruel para crianças: não é à toa que eu tinha dificuldade de entender algumas partes. A narração e a descrição não são sempre da melhor qualidade e a tradução só complica isso ainda mais (muita inversão em frases, além de palavras como "adejar" ou "esgar"). Vou dar um exemplo:
"Na cidade o céu continuava cinzento, pois era época de tempestades, mas as chuvas e as ventanias violentas não a atingiam. Mais uma mágica dos Desaparecidos, pensou Kadiya." (64)
A princípio, parece não haver nada demais, uma vez que é compreensível o texto e o significado. Tudo bem, até posso concordar, mas veja como eu reescreveria esse trecho:
"Na cidade, o céu permanecia cinza. Era o período de tempestades, mas as chuvas e as ventanias fortes não a atingiam. Outra mágica dos Desaparecidos, pensou Kadiya."
Vejam bem o que foi que eu fiz: como é um trecho sem ação, o acréscimo do ponto na primeira frase traz mais solenidade à descrição. Em segundo, eu fugi de várias aliterações (que foi um vício constante da tradução!): em lugar de "cidade céu continuava cinzento" (c+c+c+c), ficou com uma vírgula e troquei "continuar" por "permanecer". Logo a seguir, troquei "era época" pelo ponto e "período". "Ventanias violentas" (v+v) ficou "ventanias fortes". E tirei a cacofonia da frase posterior (u-mamá-gica).

Algo que percebi conforme lia é que essa descrição emaranhada me influenciou como escritor. Percebo que há traços de estilo que eu copiei, mesmo sem querer, especialmente quando faço textos de fantasia. E percebo que isso é comum entre vários escritores iniciantes também. Se pensarmos nos três pilares de um bom livro conforme apontados por King (Narração, Descrição e Diálogo), devo confessar que até as falas de Kadiya em vários momentos são muito formais ou pomposas para uma mulher impetuosa e guerreira, embora sejam condizentes com as regras do jogo que a autora propôs.

Voltando ao enredo, o final é uma bagunça: na ânsia de narrar a ação, peca na descrição. Resultado: o leitor fica confuso, não entendendo direito onde e como se desenrola a ação. Somos forçados a forçar a cena na mente, volta e meia tendo que voltar a leitura pra se encontrar. O livro termina de maneira abrupta, o que eu particularmente gostei, porque faz reverberar na expectativa do leitor.

Há uma máxima apontada repetidas vezes no livro: poder atrai poder. Algumas verdades estão escondidas no livro e são condizentes com uma leitura infantojuvenil. Mas ouso que esta leitura não é só para este público. Todo bom amante de fantasia poderia desfrutar dessa obra sem peso na consciência. Leitura mais do que recomendada.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Crônicas do cotidiano - VI

A armadilha do tempo passado


Eu não criei este título do nada, li-o em algum lugar, só não sei onde e não teve google que resolvesse a questão. Em algum lugar, alguém falou sobre a "armadilha do tempo passado". Isto não é novidade pra ninguém, trata-se daquele velho dilema: "No meu tempo as coisas eram diferentes, na minha infância era melhor, antigamente não tinha essas coisas, hoje está tudo pior, etc, etc.". Esse pensamento torna-se rapidamente um moto na cabeça da pessoa e uma lente pela qual ela encara a realidade, numa eterna ladainha reminiscente.

Já faz um tempo que quero falar sobre isso e dar a cara a tapa (eita!), porque minha timeline do face tem se tornado um chavascal dessa lenga-lenga sem fim. E, o pior: até cristãos caem nessa armadilha e instam, a todo momento, em argumentar como "antes era diferente". E quem são os culpados de tudo isso? Ora, eu, é claro. Talvez não eu nominalmente, mas "os jovens" ou "essa geração atual". Aff, é tanto besteirol.

Diferente do estilo tradicional de argumentação que gosto de seguir, em que aponto diferentes argumentos para, no final, indicar aquele com o qual mais concordo ou o que denomino como certo definitivamente, dessa vez ou iniciar com os argumentos que mostram, de uma vez por todas, que a armadilha do tempo presente é uma praga. Inicio com a Bíblia.
"O que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol." (Ec. 1:9)
"Ah, porque antigamente não tinha tanto tal coisa." Meu Deus! Como uma pessoa letrada e conhecedora do mínimo pode falar uma coisa dessas? Que mundo foi que você viveu que era tão cheio de paz? Que não se ouvia falar de mortes? Que não se ouvia falar de assaltos e assassinatos? "Ah, mas é que agora é bem pior". Depende.

Bem pior pra quem? Pra você que mora numa região em que a densidade populacional aumenta ou para aquele que mora num lugar onde a estruturação policial tem aumentado mais (pense fora do Brasil)? Ou está pior porque antes você não tinha que lidar com certos problemas e hoje tem? O que mudou foi a situação... ou foi você?

Entendam de uma vez por todas: nada há, pois, novo debaixo do sol. Desde a Antiguidade, (desde antes dela!) há violência, há ideias e ideais, teorias, ideologias, tudo que foi sempre será. Quem foi o filósofo que venceu a dicotomia matéria x espírito? Quem conseguiu resolver o problema do movimento x estrutura? Quem dirimiu na arte os movimentos de expressão x impressão?

Não fossem esses argumentos suficientes, há ainda um versículo que põe por terra qualquer tentativa de apegar-se a essas reminiscências. A armadilha do tempo passado, que para muitos cristãos só serve como âncora para a murmuração, é também um pecado e o texto bíblico o condena:
"Jamais digas: Por que foram os dias passados melhores do que estes? Pois não é sábio perguntar assim." (Ec. 7:10)
Touché! Meus irmãos cristãos, por favor, parem de encher a paciência! Parem de dizer que "antes era melhor", que hoje "é assim ou assado", tudo por culpa "dessa geração". E, já parou pra perceber, que a culpa sempre é do "outro", nunca da pessoa? A culpa é dessa geração, é dos políticos, é dos jovens. E olha que tem gente da minha idade (geração dos anos 90) que já culpa os da Geração Z (pós anos 2000)! É muito espaço pra reclamação e pouco espaço pra ação.

Mas, talvez você não seja cristão e ainda se apegue a essa armadilha do tempo passado por não achar que o texto bíblico é suficiente. Mesmo pensando assim, ouso dizer, você sabe que não há nada de novo debaixo do sol, você sabe que, no fundo, nada realmente muda, apenas acontece de outras maneiras. Mas, para você também, além dos argumentos bíblicos (que, para os cristãos, já devem ter sido suficientes), trago um pouco do que aprendi com Dostoiévski em "Os Irmãos Karamázovi" (link para a resenha aqui).
"Com efeito, neste século, todos se fracionaram em unidades, cada qual se isola no seu buraco, separa-se dos outros, oculta-se, ele e seus bens, afasta-se de seus semelhantes e os afasta de si." (p. 222)
Espera um pouco. Hoje em dia nós falamos da tecnologia e dos problemas que ela traz. O celular: ah! A desgraça do século XXI. Nos isolamos, não falamos mais, não conversamos mais, vivemos no mundo digital em nossas mãos. Pais e filhos não se conversam, namorados já não trocam beijos no mundo real, somos escravos dessa tecnologia, argh! Como nossa sociedade está depravada! Ah, são esses jovens, são essas novas tecnologias!

Meu caro leitor, se é assim, do que diabos falava Dostoiévski em 1880, há mais de 100 anos? Que tecnologia era aquela que estava afastando as pessoas na Rússia? Por que cada um se isolava, que a relação entre os familiares era algo conturbado, não havia mais respeito, não havia mais civilidade (temas que são tônicas no livro dele!)? Que explicação você pode me dar, ó pessoa capturada pela armadilha do tempo passado, para esclarecer tamanha semelhança num espaço de mais de um século?! Ora! Será que... realmente... não há nada de novo debaixo do sol?

"Ah, Gabriel, mas você vem com um argumentozinho desses e...". Opa! Calma, espera lá. Tenho mais! Vou citar apenas Dostoiévski nessa crônica. Vamos ver o que um escritor do século XIX pode revelar da sua sociedade e como isso (será?!) tem alguma relação com o que acontece hoje (porque, claramente, segundo os especialistas do tempo passado, "antigamente era melhor"):
"Acontece-nos ser excelentes, mas só quando tudo nos vai bem. Nós nos entusiasmamos pelos mais nobres ideais, com a condição de alcançá-los sem esforço e sem que isso nos custe alguma coisa. Não gostamos de pagar, mas gostamos muito de receber." (p. 484)
"Esses jovens, que vivem no celular e não saem, não fazem nada, só querem ficar em casa assistindo Netflix.", "Não se faz mais política como antigamente, hoje todo mundo só quer ficar em casa no Facebook, mas na hora de ir, ninguém vai". "Esse pessoal fala muito e não faz nada". Novamente, o livro é do final do século XIX. Eu estou falando de um tempo em que o Brasil ainda era império! Ah, e por falar de Brasil, saca só:
"Somos amplos, amplos como nossa mãe, a Rússia, tudo admitimos e a tudo nos acomodamos." (p. 485)
"Esse Brasil é a casa da mãe Joana". "Brasil é coração de mãe, sempre cabe mais um, e aí vêm esses estrangeiros e...", "Esse Brasil é uma grande bagunça.", "Porque no meu tempo...", "Ah, mas antigamente...", "Essa geração de hoje...", "Esse celular...", "Essa internet...". E como é que lá na Rússia dos tempos czaristas havia tantos problemas semelhantes aos nossos hoje? Que geração foi a culpada por aquilo? "Antigamente" era melhor pros russos? Que "tempos passados" são esses que prendem você? Será que ainda não percebeu que o problema não são as coisas que mudaram? Onde está o problema? Já descobriu?

De uma vez por todas, poupem-nos desse festival de chatice. Escapem, corram, desprendam-se da armadilha do tempo passado! 
Fujam! Fujam! 

E parem de encher o saco.



Publicado originalmente no Facebook em 03/05/2019.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Resenha - Os irmãos Karamazovi

DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Os irmãos Karamázovi. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1971. 


Quedo-me catatônico. O que dizer? Como posso expressar o impacto dessa obra magnífica? Não é a primeira vez que leio Dostoiévski; mas, nem de perto, tivera ainda algum livro dele tamanha impressão sobre mim. Tenho muito a falar dele. A resenha é mais do que positiva: fiquei de tal modo absorto que, se havia no livro algum advérbio de modo, nem vi. Há muito a se falar aqui.

Aos personagens principais, a família Karamázov. Fiódor Pávlovitch (o pai), e os filhos por ordem etária: Dimítri Fiódorovitch (Mítia), Ivã Fiódorovitch e Alieksiéi Fiódorovitch (Aliócha). O velho: um depravado; o primeiro filho, um espelho do velho, devasso, bêbado e mulherengo; o segundo, um intelectual, ateu, com pinta de acadêmico; o terceiro, o "herói" da história, um quase monge, cristão ortodoxo, discípulo do stáriets Zósima.

Vou começar puxando este último ponto aí: em Dostoiévski é fortíssima a mística cristã. Ele próprio defensor do cristianismo ortodoxo russo, seus personagens refletem isso com bastante força, especialmente porque ele se preocupa em retratar algo que a mim muito agrada: ele quer retratar a Rússia, tal como ela é (voltarei a este ponto em breve).
"O homem não pode cometer pecado tão grande que esgote o amor infinito de Deus" (p. 44)
No livro, Dostoiévski deixa bem claro que acreditava que o futuro da Rússia estava nas mãos do povo. Mas, (interessante como nós vemos a coisa com olhar histórico e achamos que entendemos todo o contexto), jamais imaginou que a Revolução Russa aconteceria. Na verdade, ele tinha plena convicção de quando o povo se voltasse a Deus, então, finalmente, seria livre.

Falando disso, o autor trata muito de teologia, em alguns momentos o livro parece até doutrinário e em outros parece de autoajuda espiritual. Até o diabo entra na história, embora, a meu ver, pintado com cores de um humanismo romântico, bem próprio da época de Dostoiévski. Os críticos, aliás, reclamam muito dessa característica do autor.

Os próprios russos divergem entre amor e ódio a Dostoiévski. Por um lado, é um baita autor, com uma capacidade surpreendente. Por outro, muitos não gostam do modo como ele retrata a Rússia dos anos 1880: servil, quebrada, sufocada pela burocracia, permeada pela miséria do cotidiano, sujeita a coronelismos e seus personagens sempre doentes (citarei isso em breve). 

Falando ainda dos críticos, é interessante notar que Dostoiévski é um dos autores russos favoritos no Brasil. Fora da Rússia, porém, sua reputação também é debatida. De tudo que li comentando a respeito dele (há mais sobre isso neste link), foi a fala de Hemingway que mais me surpreendeu:  “Como um homem pode escrever tão mal, tão incrivelmente mal, e despertar sentimentos tão profundos?”.

Ah, miserável Hemingway. Se ele escreve mal, eu não sei. Mas a segunda parte do que você falou... nossa! Como é verdade. Não é um mero enredo, é uma construção simbólica e profunda, tão profunda, que passamos por todo o espectro de emoções ao ler e somos encantados com a capacidade de encadeamento de Dostoiévski. Ele, inclusive, faz até menções a escritores russos, como Gógol (um dos que já li também, havendo no texto mais de uma referência a "Almas Mortas").

Já falei bastante do contexto e do todo da obra, mas é preciso adentrar no que ela tem de mais precioso: seus personagens. Não vou tratar de cada um dos irmãos ou dos personagens secundários, até porque essa resenha é non-spoiler, mas há algumas características que revelam muito dessa profundidade à qual eu e Hemingway nos referimos (olha, que audácia!, me juntei ao mestre).

Algo que, pra mim, é muito característico de Dostoiévski, até pelos outros livros que já li dele (Crime e Castigo, O Jogador, Notas do Subsolo e O Eterno Marido) é sua capacidade de descrever a psiqué dos personagens. E isto revela também traços da sua época e da sua cultura. Por exemplo, personagens sempre se importam muito com o que vão pensar dele: não querem fazer cena, têm algo de "honra" ou "palavra". Até que ponto isto é algo do autor ou parte do orgulho russo (que nos é, pelo menos em parte, bem famoso)?

Ainda sobre isso: há um constante jogo de forças em campo. O ato de dominar parece ser uma constante, uma necessidade, quase um ímpeto social. Ter domínio ou influência sobre algo ou alguém. O contrário também é bem explícito: ser dominado por outro, quase como objeto de desejo (como um discípulo que segue um líder). Ao mesmo tempo, porém, Dostoiévski faz questão de voltar a pontos que ressalta, como a força do povo russo, ou a importância da simplicidade, das pessoas comuns, do cotidiano (e aqui não consigo deixar de lembrar do nosso Érico Veríssimo):
"Precisa conhecer tais criaturas para saber apreciar muitas outras coisas que aprenderá precisamente em companhia delas -- observou Aliócha com ardor -- É o melhor meio para você se transformar." (p. 388)
Por outro lado, ainda que admire essa capacidade descritiva de Dostoiévski (que, em grande parte, penso ser um paralelo com meu apreço a Veríssimo, embora este último descreva muito bem os contextos e o primeiro, os personagens), às vezes os personagens têm uma capacidade de introspecção e revelam sentimentos/vontades de maneira que não sei se é verossímil. Quem conhece a tal ponto os próprios pensamentos? Quem tem tal domínio de si? Ou será que isso foi algo que perdemos? 

Ah!! Aqui chegamos num ponto interessante. Tenho muito a falar sobre a "armadilha do tempo perdido". Mas não é o lugar aqui. Isto foi uma das muitas lições que aprendi com este livro e escreverei uma crônica só a esse respeito. É deveras bem interessante. Mas divago, retomo. Vamos falar ainda dos personagens e da capacidade do autor em lidar com eles:
"Já era bastante tarde e Ivã Fiódorovitch não dormia. Meditava e só se deitou às 2 horas. Não exporemos o curso de seus pensamentos; não chegou o momento de entrar naquela alma; chegará a vez dela." (p. 203)
Mano, olha o sangue frio desse infeliz em saber que depois haveria tempo e espaço para aprofundar a narrativa de Ivã. Como será que ele consegue se segurar e pensar que, para o bem da trama e do livro, o melhor é não aprofundar nisso, pelo menos naquele momento? Aliás, olha a capacidade de analisar de maneira tão profunda dois lados da moeda (refiro-me ao final do livro e aos dois juristas), sem se deixar pender para um e outro... uff! Não sei como ele conseguiu. Prosseguimos:
"Na minha opinião, todos se enganavam; nosso procurador era, eu creio, dum caráter bem mais sério do que muitos pensavam." (458)
Novamente algo que vejo no mestre russo e encontro paralelo com o mestre brasileiro (e até mestres americanos, como King), é que em vários momentos o escritor conota que não conhece ainda profundamente os personagens: eles precisam, antes de tudo, revelar-se ao autor. Na narrativa do livro, algumas vezes o narrador parece ser um personagem e, em mais de um momento, perguntamo-nos se ele não teria participação direta na trama.

Como já disse, nestes personagens há  muitas coisas sobre a psiqué ou "identidade" do povo russo: maldade, tortura, sentimento de superioridade sobre outro (arrogância). Russos: um apego ao Direito? Não! À burocracia, que é uma constante nos autores clássicos que li até então. Uma burocracia sufocante que reflete em todas as camadas da sociedade. Logo, reflete a profunda dor e miséria à qual submetia-se este povo. Ele fala, assim como Érico Veríssimo, do cotidiano daquelas pessoas e de fatos que poderiam ocorrer a qualquer pessoa. Ah, e que fatos terríveis às vezes podem acontecer (refiro-me ao menino Iliúcha).

Tendo dito isto, quero falar um pouco do livro em si e da tradução. Infelizmente (descobri apenas depois), li a tradução "errada" do texto. Pelo que consta, os tradutores Natália Nunes e Oscar Mendes não traduziram o livro direto do original russo, mas da sua versão francesa, o que muitos criticam. Mas, como não tenho com o que comparar, resta-me elogiar também este texto.

Para nós, numa nova cultura do século XXI, mesóclises como "negar-se-nos-ia" e o fraseado tornou a leitura muito agradável: confesso que bem menos intrincada do que a edição que li de Crime e Castigo (da qual ignoro a tradução). Por ter vindo do francês, talvez tenha sido mais fácil traduzir ao português algumas ideias. Mas confesso que fazer "a tradução da tradução" é sacanagem. No futuro, tenho que ler a tradução direta do original. Ou, vai saber, o próprio original.

Mas o texto em si, e aqui não temos como atribuir essa engenhosidade senão ao próprio Dostoiévski, eu achei fantástico. Há um título em cada capítulo, que demonstra muita criatividade e capacidade de coesão no texto, embora, seja um pouco spoiler, uma vez que adianta o que vai acontecer. O autor não tem pena de usar frases longas (coisa que já criticaram na minha escrita), o uso de parênteses, travessões, etc, tudo num mesmo parágrafo. Ah, e claro, parágrafos gigantescos: quase 2 páginas com um único parágrafo em diversos momentos. Aliás, pergunto-me se não criticariam seu uso de ponto e vírgula hoje.

Mas o texto em si não trata só de uma trama dos irmãos e as desgraças, mas traz temas profundos, tem um peso. Dostoiévski faz um encadeamento sensacional de cenas, que puxa a gente e não nos deixa descansar enquanto não aprendemos o desenvolvimento. No meio do livro, ele ganha um ímpeto vertiginoso. Sai da filosofia e vai pra uma sequência de fatos que, ainda que não seja eletrizante (pelo menos não para nossos termos do século XXI), reforça o encadeamento sagaz de cenas por Doistoiév .

No último quarto do livro o enredo dá uma nova guinada: quem foi o autor do crime terrível? E essa pergunta martela a cabeça do leitor, obrigando-o a devorar as páginas, absorto na curiosidade de descobrir e conhecer os personagens ainda mais profundamente. Há até uma reviravolta nas personagens: algumas que estavam em segundo plano, de repente, passam a ser extremamente relevantes. E uma única frase, uma única frase, é capaz de imprimir tamanho impacto que vira a cabeça do leitor: "Há uma hora [ele] enforcou-se -- disse Aliócha." (p. 453)

Ao final, o simbolismo por trás é explicitado pelo próprio Dostoiévski, e limito-me a ele, malgrado a amplitude de coisas passíveis de serem ditas:
"'Quem é, pois, essa família Karamázov, que adquiriu de súbito tão triste celebridade? Talvez exagere, mas parece-me que ela resume certos traços fundamentais de nossa sociedade contemporânea, em estado microscópico [...]" (482)
Ah, que livro! Que livro! E o que falar daquele final? Lindo, terrivelmente lindo, mas tanto, que não posso evitar: choro. Porque, no fundo, creio que Dostoiévski só falava daquilo que nós mais ansiamos, daquilo que meu mestre brasileiro mais gosta de falar. É simples, é a mensagem para todos os seres humanos. O mestre russo falava de esperança.