terça-feira, 30 de julho de 2019

Resenha - Writing fiction (III): Description, narrative passages, scenes, and dialogue

CASSILL, R.V. Writing fiction. 2nd edition. New York: Prentice Hall Press, 1986.


A vida acadêmica me preparou para muita coisa. No começo da vida de artista (especialmente nas composições musicais e agora com os textos) o medo do julgamento sempre foi constante. Mas, como falei, a vida acadêmica ajudou demais: depois de um mestrado, você se acostuma a ter seu texto criticado e constantemente posto em dúvida.

Porém esta é uma etapa essencial do amadurecimento: você entende que as críticas vêm para melhorar o que você está fazendo. O ataque não é à pessoa, mas ao conteúdo produzido. Isso se torna tão comum e natural que, quando entregamos um texto para alguém e a pessoa não tem crítica nenhuma, logo desconfiamos: ou ela não leu ou não leu com o devido afinco.

Isso não tem nada a ver com a resenha (risos), mas foi algo que Cassill trouxe à tona e eu achei interessante registrar. A resenha mesmo é sobre o que ele chama de partes "mecânicas" do processo da escrita: a descrição, narração, cenas e diálogos. Vamos falar individualmente de cada um.


PARTE 3: AS MECÂNICAS DA FICÇÃO


A DESCRIÇÃO contemporânea não é igual àquela do século XIX onde se fazia um relato fotográfico de absolutamente tudo que estava na cena. Em vez disso, a descrição atual utiliza elementos externos para criar a ambientação necessária, que não a descrição direta de cada objeto ou item da cena. Cassill classifica-a em três tipos: concreta, figurativa ou abstrata.

A concreta, como o nome diz, é a mais direta, onde se abordam os itens. Ela tem a vantagem de ser a mais segura e estável de todas, porém, traz o risco de deixar o texto monótono e rígido. A abstrata, em contraponto, é a mais perigosa, porque: "[...] they may pass judgments on characters without allowing the reader to make up his own mind on the basis of evidence. This is called 'author intrusion' and can very gravely weaken the sense of reality in fiction." (p. 21)

A descrição, via de regra, utiliza os sentidos (tato, olfato, paladar, visão e audição) para criar no leitor a ilusão da realidade. Ela também serve para mostrar o estado emocional dos personagens: se no começo tudo parecia "vivo e colorido", em determinado momento um bom escritor utiliza o cenário "cinza e frio" para espelhar o estado de espírito do personagem. Claro que isso é um clichê: é aí que entra a habilidade do escritor em fazer isto sem ser notado.

Uma técnica que pode facilitar muito é usar um personagem para descrever outro, numa descrição indireta. Com isso, o escritor ganha um pouco mais de liberdade, sem se intrometer tanto no texto. Além disso, quando um personagem fala de alguém, isso revela um pouco dele mesmo. Ou seja, você descreve dois personagens de uma vez, matando dois coelhos numa cajadada só. Some-se a isso: a descrição indireta cria expectativa sobre o outro personagem, e você pode usar isso a seu favor.

Para manter uma textura consistente por toda a ficção, o escritor deve se atentar para as TRANSIÇÕES. A técnica clássica de transição é descrever um objeto e logo em seguida fazer alguém interagir com ele (você descreve uma maçã e logo depois alguém a come, e este alguém se torna o centro de interesse da cena). As transições podem ser de lugar pra lugar, de um tempo para outro, entre um objeto visível e uma metáfora, e por aí vai. Algumas transições na literatura foram emprestadas do Cinema e outras da Poesia. Mas tudo é válido se for bem construído.

A NARRAÇÃO, que é considerada por Stephen King um dos três pilares da escrita, "[...] are those parts of fiction which condense action into its largest movements." (p. 24). Há uma infinidade de possibilidades nesta categoria. Por isso, o bom escritor deve estar atento em suas leituras para identificar as diferentes manifestações da narração.

No caso de contos, "Since economy is nearly always an issue in the short story, we can see why the compression of time and action into narrative passages may often be useful." (p. 25). Mas, via de regra, isto não se aplica só ao conto, é apenas um pouco mais restrito neste caso. O que é interessante, muitas vezes, é utilizar esse recurso para uma abordagem macro até chegar no ponto onde o escritor pode focar na abordagem micro.

Essa "abordagem micro" a que me refiro, nada mais é do que as CENAS. Nelas, o escritor tenta ao máximo trazer um senso de realidade ao mesmo tempo que procura economizar nas palavras, num constante malabarismo entre esses extremos.

Cassill diz que iniciar a história com uma cena tem suas vantagens e desvantagens: por um lado, imediatamente captura a atenção do leitor para algo dinâmico e específico, num encontro direto com os personagens; por outro lado, o leitor não estará familiarizado com o texto para captar nuances da cena e pode ficar perdido. Do meu ponto de vista, as vantagens superam, até porque:

"Every reader knows a story can't be blurted out as instantaneous revelation. If you have roused his interest by a dramatic opening, he is usually content to read on and see what the encounter meant." (p. 27)

No caso de cenas, tem-se que falar do recurso "flashback": "[...] while the flashback represents a movement backward in time, it actually advances our knowledge of the characters introduced in the preceding scene." (p. 27). Eu já vi gente falando desse recurso e o condenando com veemência -- deduzo que seja porque ele tenha se tornado um clichê.

Mas Cassill dá uma dica que achei válida: se você usar o flashback, crie algum suspense antes. A ideia é: por que o leitor precisa saber desse flashback pra continuar? Aliás, o leitor quer saber disso? Ou seja, antes de fazer o flashback, o escritor deve construir o texto para que se faça questão de ver esses fatos passados e isso contribua para a história no presente.

Ainda sobre cenas, há o que Cassill chama de cenas obrigatórias, ou seja, cenas que são absolutamente essenciais e não se pode abrir mão delas. O exemplo que ele dá são os clássicos do faroeste onde alguém diz: "Esta cidade não é grande o suficiente para nós dois" e isto acarreta, necessariamente, uma cena de duelo em algum momento da história. Via de regra, estas cenas estão no final da história, mas não é absoluto.

Voltando à ideia de ler como escritor (e até na hora que você estiver escrevendo mesmo), Cassill ressalta que não é má ideia comparar a quantidade de cenas, tamanhos e suas relações com as transições. Não há uma forma ou mecânica ideal, mas estas noções devem ser pesadas.

O autor traz uma caracterização que eu ainda não tinha ouvido falar. Cassill explica que as MEIAS CENAS ("Half Scenes" -- desculpa a tradução, foi o melhor que consegui) são aquelas cenas que não têm intuito de carregar algo, mas servem como um alívio depois de uma narração longa ou são utilizadas como meio para reforçar algo que a narração já trazia:

"It is a momentary shift from a distant view of the subject to a close-up, not designed to present a dramatic resolution but to borrow some of the qualities of the scene for a sample -- as if to show what the narrative is really talking about." (p. 29)

Estas cenas dificilmente levarão a história pra frente, mas elas têm uma função muito útil e prática para trazer insights sobre os personagens ou mesmo a situação em que eles se encontram. Servem em muitos casos para explicar o contexto sem precisar recorrer à narrativa, o que deixa bem mais intuitivo e natural para o leitor.

Por fim, o DIÁLOGO, ainda que seja parte essencial das cenas e meias cenas, é um elemento tão importante e essencial que merece um estudo à parte. O diálogo é, talvez, o elemento que mais traz "concretude" ao texto, porque nele o leitor "ouve" as personagens falando e assim consegue captar outras nuances além da palavra escrita.

Por outro lado: "Poor dialogue, on the other hand, gives away the writer's ineptitude more quickly and more devastantingly than any other fumbled passages of his story." (p. 31). Isto acontece por causa da capacidade do diálogo em revelar a personalidade de quem está falando. Logo, a grande regra do diálogo é que ele seja o mais natural e verossímil possível em relação a quem está falando.

A dica que Cassill dá não difere em nada do que ele já deu antes: você pode até aprender mais sobre diálogo lendo algumas passagens que tratam dele, mas é ouvindo que você vai captar melhor a naturalidade da fala e transmitir isso no texto escrito. Isto pode ser mais fácil do que parece e aí tem outra dica: ouça você mesmo. Você não soa da mesma forma quando está com sono ou quando está num show. Essas nuances devem aparecer nos diálogos.

Cassill alerta que, quando você estiver escrevendo sotaques ou dialetos, não tente traduzir isso na palavra escrita: é mais fácil demonstrar as características do personagem por meio da fala do que do registro escrito do sotaque. Se for usar, ele alerta, faça com parcimônia pra não exagerar, porque irrita o leitor ter que "traduzir" o que está lendo pra poder entender.

Uma dica que achei fantástica sobre diálogos é usar respostas indiretas. Por exemplo, duas amigas conversam:
-- Esse seu vestido não está frouxo?
-- Na verdade eu queria era uma saia que combinasse com a blusa.
A resposta da segunda personagem poderia ser direta: "Sim", "Não", "Talvez". Mas, na vida real, dificilmente duas mentes estão tão em sincronia que conversem de maneira tão direta. Nossas conversas, não raro, são dois monólogos distintos com pontos tangenciais em comum. Quando isto é retratado na ficção, reforça a ilusão da realidade:

"Indirect response reveals the mental gulf between speakers when each is busier with his own thoughts than with the superficial subject of the conversation." (p. 33)

Claro que há cenas onde o diálogo direto é o apropriado (em situações de ação ou tensão, principalmente). Cassill está só reforçando a utilidade das respostas indiretas. Além disso, uma oscilação entre respostas diretas e indiretas pode ajudar a estender uma percepção que varia entre superficial e profunda de maneira mais natural.


A resenha foi longa? Foi. Mas, por outro lado, teve muita coisa interessante? Teve. Eu vou continuar resenhando capítulo por capítulo? Vou. Vou porque este material é rico demais. Algo semelhante a isso só vi em "Sobre a Escrita" de Stephen King. Aliás, serve até como paralelo interessante porque estamos vendo um livro da década de 1970 (a segunda edição que é dos 1980s) cujos ensinos são úteis e completamente atuais, ao ponto de praticamente 50 anos depois ainda serem válidos.

Eu vou é ler com calma mesmo e tentar aprender o máximo que conseguir. Esse fichamento deixará registrado lições que podem me ser úteis no futuro. Essas ferramentas são valiosas demais pra deixar passar assim. Quem sabe, fazendo bom uso delas, eu realmente não me torne um Escritor ao Acaso.

Resenha - Writing fiction (II): Choosing a subject

CASSILL, R.V. Writing fiction. 2nd edition. New York: Prentice Hall Press, 1986.


Passamos, então, para as partes seguintes deste livro sensacional. Hoje trataremos sobre a questão do ASSUNTO ou TEMA (sobre o que vamos falar quando escrevemos ficção). E, sim, haverá mais resenhas sobre isto. Este livro é fantástico, maravilhoso, excelente. Aos escritores ao acaso, como eu, é leitura mais do que recomendada!


PARTE 2: ESCOLHENDO O ASSUNTO

Cassill relata que uma grande frustração sua como professor é ver alunos que têm excelentes cargas de leitura escreverem sobre assuntos tão estapafúrdios quando chega sua vez. O escritor parece colocar uma barreira entre ele mesmo e aquilo que ele conhece, optando por falar de assuntos fantásticos em vez de abordar algo com o qual ele já tenha familiaridade.

Há várias razões para isto. Uma delas é o medo de se expor. Ou pior: o medo de descobrir que, na verdade, o escritor sequer consegue falar sobre aquilo que está perto dele. Mas Cassill é veemente quanto a isso: "[...] face the fear of hidden embarassments forthrightly and take the subjects for your first stories from your own life." (p. 12)

Utilizando da própria experiência, o escritor pode coletar trechos de memórias ou ocasiões e compor uma ficção a partir disso. Isto não significa fazer uma autobiografia, mas criar uma ficção a partir daquilo com o qual você tenha mais familiaridade -- de preferência abordando ocasiões onde você era mais você mesmo: provavelmente em momentos de vulnerabilidade.

Você não precisa ter todo o assunto diante de você antes de começar a escrever. Basta ter um vislumbre dele: coloque no papel e deixe-o ser construído conforme você avança sobre ele. Esta construção se torna um processo natural em que você escolhe dentre as diversas possibilidades as que melhor se encaixam com o que você está escrevendo. No fim das contas, como diz Cassill: "[...] the act of writing is a way to possess your own life." (p. 13)

E, no fim das contas, é escrever o exercício mais necessário ao escritor. Parece óbvio, mas, também não raro, acontece da gente querer primeiro absorver um mundo de informações antes de mergulhar em alguma empreitada. Não é que devamos seguir em frente no escuro, mas é só que absorvemos muito melhor a teoria quando ela é aliada à prática: "The imagination will -- and should -- make a hundred starts for every story that is carried to completion" (p. 14)

Escolher um assunto ou tema é, claro, um ato da imaginação. Porém: "Legwork is a part of imagination. You've got to go take a look at life." (p. 15). Além disso, como Cassill já disse, a escolha em si não pode impedir a história de começar ou seguir em frente. Certamente haverá muitas dificuldades para um escritor iniciante, ainda mais se for escrever sobre um tema que lhe estiver próximo (pelas consequências dessa escrita, digo); mas vale lembrar que: "[...] the subject of your first story need not be the subject of your final masterpiece." (p. 15). Aliás, isto é verdade com praticamente todos os grandes escritores: seus primeiros livros dificilmente foram suas melhores obras.

E algo bem interessante sobre a escolha do assunto ou tema: este é apenas o começo! O escritor deve ter em mente que, depois que há tal escolha ou pelo menos direcionamento, agora é que começa o verdadeiro trabalho! Mas Cassill traz uma coisa que já vi antes em outro ramo da Arte.

Quando eu morei nos EUA, nosso regente do coral, Mr. Joseph Johnson -- ou apenas Mr. J, para íntimos --, costumava nos ensinar que: "Durante os ensaios, o coração fica morno e a mente em chamas; já durante a apresentação, a mente fica morna e o coração fica em chamas." O que ele queria dizer é: durante os ensaios, se esforcem para criar e aprender racionalmente a música para que, quando forem apresentar, isto venha de forma tão natural que vocês possam se entregar totalmente a ela.

Na literatura, que coisa interessante, a performance vem antes do ensaio. Explico: Cassill traz à tona que escrever deve ser um ato "do coração" (pra usar a analogia do Mr. J), enquanto o processo de revisão deve ser um aspecto "da mente". O escritor primeiro se entrega sobre o texto sem se preocupar com nada e apenas depois se debruça sobre ele para fazer as análises e críticas.


A escolha do tema ou assunto, afinal, é uma jornada contínua. Sempre haverá algo mais para procurar ou aprender antes de "chegar lá". Se, como escritores iniciantes (ao acaso!), somos incentivados a começar com aquilo que temos mais proximidade, quanto mais escrevemos, mais somos encorajados (ou pelo menos deveríamos ser) a nos afastarmos cada vez mais em direção ao desconhecido.
"In the long run the reward for this may only be that the writer will discover who he really is. His own identity will be clarified as his ability to write of his own experience increases. And that, I think, is a benefit none of us should scorn." (p. 18)

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Resenha - Writing fiction (I): Reading as a Writer

CASSILL, R.V. Writing fiction. 2nd edition. New York: Prentice Hall Press, 1986.


Continuando minha caminhada pelo estudo da arte de escrever, me deparei com este livro que comprei nos EUA por um valor bem módico. Ele consiste em ensinos muito diretos de Cassill combinado com exemplos práticos. Para isto, ele opta por incluir no corpo do livro 6 contos de diferentes autores. 

Isto, a princípio, me deixou com um pé atrás, porque estas histórias correspondem a 40,22% do livro. Olhei isso e pensei: "Poxa, quase metade do livro são só histórias? Será que esse cara tem mesmo tanto a ensinar?". Mas comecei a leitura. Antes de partir pro conteúdo, o autor sugere que primeiro a gente leia por diversão as histórias que vai analisar depois. Fiz isso e valeu muito a pena, mesmo que não tenha gostado muito de todos os contos.

No caso desta resenha, assim como no anterior, não teve como: virou mais fichamento do que resenha. E não me arrependo. A leitura é tão boa e tão rica, que só no primeiro capítulo já tinha tanta coisa boa de se registrar que rendeu essa resenha toda. Quando o texto é bom assim, vale mais a pena resenhar com calma do que ler tudo de uma vez. Tem muita citação aí pela frente. Coisa boa.


PARTE 1: LER COMO UM ESCRITOR

A essência da ficção é trazer uma premissa inicial que gere questionamentos. E depois responder esses questionamentos. "João ouviu Maria falar algo que o deixou perplexo". Quem é João? Quem é Maria? O que ela falou? Por que João ficou perplexo? Pronto, este é o começo. 

Cassill ensina que a leitura ainda é o melhor caminho para aprender, porque é mais fácil aprender por exemplos do que por definições abstratas. Isto é algo que eu li também em Stephen King ("Sobre a escrita") e uma tônica que é repetida por diversas autoridades no mundo da literatura. Afinal, esta é uma máxima incontestável: a leitura é o combustível criativo e técnico do escritor.

No final das contas, escrever ficção é sobre contar a verdade, como ensinou King. Não importa sobre o que é, basta que o leitor acredite no que está lendo. E eis a dica para o escritor: quando estiver lendo ficção, busque conhecer quais são os elementos que o autor usa para criar essa "verdade" tão real que você sequer consegue escapar enquanto lê. Cassill chama isso de "concreteness" ou "concretude" (numa tradução livre).
"Good writers are your real teachers of how to write fiction, and their novels and stories are the means by which they teach." (p. 5)
A leitura do escritor, portanto, não pode ser a mesma do leitor: "[...] the writer wants to note, beyond anything that concerns even the critic, is how the story, its language, and all its parts have been joined together." (6). Ou seja, o escritor busca entender todo o aparato que monta a própria estrutura do texto.

Cassill ressalta algo muito interessante. Não é só porque o autor escreveu daquela maneira que o texto não possa ser escrito de outra forma. Entender como e o porquê da escolha do autor é que importa. A forma não é algo automático do texto, mas uma escolha que o autor faz, dentre tantas outras possíveis.

Em alguns casos, como no exemplo do conto de Chekhov citado no livro, não é fácil entender porque o autor escolheu certas formas. Mas, pela mera suposição, mesmo que não saibamos com certeza, podemos entender um princípio importante: "[...] no choice of character, action, language, names, or anything else is an isolated one." (p. 8) É o que Cassill chama de "unidade da ficção", ou seja, tudo que for escrito, deve necessariamente considerar o que já foi escrito.

Sobre personagens: não se conhece um personagem na primeira vez. Ele é revelado ao leitor conforme vemos suas reações ou comportamentos a diferentes situações ou circunstâncias. O escritor, então, deve considerar: Como a história amplifica e estende as primeiras impressões do personagem? Houve oportunidades suficientes para revelar o personagem? Estas oportunidades foram adequadas, ou haveria outras que se encaixariam melhor?

No desenrolar de qualquer história, o autor não escreve absolutamente cada segundo ou detalhe de tudo. Isso traz algumas perguntas: Por que o autor escolheu omitir alguns diálogos ou cenas? Como ele cobriu esses intervalos entre cenas? Um bom escritor faz o leitor imaginar algo consistente com o que foi construído. Além disso, ele omite aquilo que não é relevante e o que não é necessário para criar a ilusão da história.

Neste ponto, o autor cita algo que eu achei bem importante. Mas preciso fazer um adendo antes.

Na vida (e aqui parece o começo de uma crônica), não raro, quando nos propomos a fazer alguma coisa, estabelecemos metas tão altas, tão ideais, que esquecemos da nossa realidade e, em vez de garantir pelo menos o básico, nos frustramos quando não atingimos aquilo que esperávamos. Isto se dá quando fazemos dieta, por exemplo, e percebemos que não chegamos onde queríamos (considerando, até!, que tenhamos feito tudo certinho).

Cassill traz uma lição importante neste ponto (e aqui retomo): ler um Ulysses de Joyce seria um tipo de leitura que renderia uns bons meses ou anos de estudo para um escritor interessado em compreender os mecanismos e estruturas do livro. Porém, ele ressalta, é preferível que o escritor gaste alguns dias se debruçando corriqueiramente sobre o texto do que nunca pegar o livro pra ler.
"Read poetry. Nowhere are there such possibilities of language on display as there are in poetry. Not all these possibilities are suitable for fiction, but the fiction writer ought, by all means, to know that they exist." (p. 9)
Um bom artista, sempre será eclético. Mesmo que o compositor de música erudita odeie o sertanejo, ele conhecerá e compreenderá as estruturas que fazem este ritmo ser tão pobre em algum aspecto ou outro. Eu sempre pensei isso na Música, não vejo porque será diferente na Literatura. 

Além da poesia, Cassill sugere que o escritor leia teatro também. E, uma coisa que King mencionou: o escritor aprende muito lendo coisa boa, mas aprende mais ainda lendo coisa ruim -- isto é, quando consegue identificar o que não é bom. E não entenda "bom" como juízo de valor, mas como aquilo que soma quando é lido.


Gente, olha só: esse horror de conteúdo foi só o primeiro capítulo! Que livro rico! Não só traz muito conhecimento, como é bem escrito e, o principal, realmente se preocupa em ensinar e não apenas criar mais uma lista ou checklist de dicas para escritores. Um livro que leva a pensar, isso sim é algo bom. Voltarei com mais capítulos em breve! Acompanhem!

sábado, 20 de julho de 2019

Resenha - How to write a sentence

FISH, Stanley. How to write a sentence: and how to read one. New York: Harper Collins, 2011.


Resolvi que já estava na hora de revisitar livros sobre o processo da escrita. Não é porque sou um escritor ao acaso que não devo, de vez em quando, tentar dar uma aperfeiçoada no que faço. Tanto é que já resenhei outros livros que falam sobre escrever. Este aqui, porém, pareceu-me mais um livro acadêmico do que... sei lá... é praticamente um livro acadêmico mesmo. Justamente por conta disso, a resenha também vai ser bem acadêmica. Na verdade, entenda essa resenha como um fichamento. 


#INTRODUÇÃO

Nesta primeira parte, o autor tem uma pegada bem filosófica/teórica, mas que é bem eficaz em traduzir os princípios que ele quer trazer pro livro. Ele propõe dar definições mas não ficar só nisso e usar exercícios práticos também. Bom, ele até dá alguns, mas são a exceção; e algumas dicas não funcionam em português, naturalmente. Abaixo trago algumas citações.
"Technical knowledge, divorced from what it is supposed to be knowledge of, yields only the illusion of understanding." (19)
Achei essa citação bem importante, porque foge da técnica pela técnica. Nos meus estudos de música, muitas vezes se estudava mil e uma técnicas mas não se sabia direito como aplicá-las. Logo, a técnica precisa estar vinculada ao conteúdo e não somente à aparência deste. Na verdade, esse dilema entre forma e conteúdo é uma luta com a qual o autor se digladia o livro todo: "It is true that you can't get from form to content, but it is also true that without form, content cannot emerge." (27)
"But if one understands that a sentence is a structure of logical relationships and that the number of relationships involved is finite, one understands too that there is only one error to worry about, the error of being illogical [...]" (20, grifo meu)
Logo, entender uma frase ou sua construção, não é só entender a gramática que estar por trás, mas, principalmente, sempre buscar a relação lógica entre os termos que a compõem. Neste ponto, ele sugere um exercício: treine com frases de 3 palavras.
"[...] the first step in producing good sentences is to decide what style you will use to communicate your message, a decision that sends a message of its own." (43)
Aqui ele já adianta um pouco do que vai falar quando tratar dos dois estilos que elenca. O que ele está fazendo na verdade, é afirmando que a forma se sobrepõe em alguns momentos ao conteúdo. Isso se encaixa em algumas noções sociológicas como a "teia de sentidos" de Weber, em que a mera escolha inicial já aponta para algum significado próprio. Mas divagamos. 


#ESTILO SUBORDINATIVO

Basicamente neste estilo, cada termo da frase é pensando e estruturado de um jeito que ela, por sua coesão, funciona como um sistema de engrenagens. É um estilo mais fechado, planejado, encaixado. Neste, se encaixariam frases como provérbios: empacotadas certinhas, quase montadas, menos espontâneas. Passam ideia de segurança.

Também entrariam aí algumas frases longas que deixam o verbo principal pro final (quando a água cair; quando o vento soprar; quando o horizonte ceder; quando.... Então sabereis que....). Modo de trazer mais importância pro verbo final e, ao mesmo tempo, torná-lo suspenso. Isso sugere planejamento da frase. 

O autor tem uma paixão por frases que eu não consigo compartilhar com tanta profundidade. Se pensar na música, é como se ele tivesse uma paixão por sons, ao ponto de querer esmiuçá-los até a frequência mais precisa possível. Mas aí eu já não é tanto minha praia. Entre sons e suas propriedades, prefiro a música.


#ESTILO ADITIVO

Em contraste com o subordinativo, este é um estilo mais descontraído, mais orgânico: "In this essay style, successive clauses and sentences are not produced by an overarching logic, but by association; the impression the prose gives is that it can go anywhere in a manner wholly unpredictable." (62)

Nestes termos, cada palavra da frase tem grande significância, em vez de reservar isso pro final dela. O mesmo vale para parágrafos: as frases não são subordinadas diretamente umas às outras, mas todas tem importância equivalente, quase um "stream of consciousness" .
"Sterne, Salinger, Stein, Hemingway -- the additive, non-subordinating style is obviously versatile; it can be the vehicle of comedy, social satire, philosophical reflection, realism, and something approaching photography.” (76) 
Isto é: "[...] in fact, the more difficult style to master; for the relative absence of formal constraints means that there are no rules or recipes for what to do because there are no rule or recipes for what not to do.” (84)

O autor traz aqui a mesma lógica de muitos compositores e estudiosos da teoria musical: para desconstruir, você tem que primeiro ser capaz de construir, ou, pelo menos, compreender bem as estruturas com as quais você está mexendo. Mas não sei até que ponto concordo com isso. Retomo isso na conclusão.


#FRASES INICIAIS E FINAIS

Sobre frases iniciais:
"The category of first sentence makes sense only if it is looking forward to the development of thematic concerns it perhaps only dimly foreshadows. […] First sentences have what I call ‘an angle of lean’; they lean forward, inclining in the direction of the elaborations they anticipate. First sentences thus have content in prospect, [...]" (99)
Sobre frases finais, que, por onde estão localizadas, já têm uma ressonância:
"They do have one advantage: they become the heirs of the interest that is generated by everything that precedes them; they don’t have to start the engine; all they have to do is shut it down." (119)
Estas citações são praticamente o princípio geral que ele traz para cada um destes termos. A frase inicial se inclina para frente, ela precisa trazer moção ao texto. A frase final, por sua vez, não tem essa preocupação. Ela não precisa iniciar nada, ela pode resolver algo ou não; ela pode afirmar algo ou não; ela detém a vantagem de ter todo o peso do texto pra impulsioná-la.

A meu ver, porém, essa parte do livro é só um compilado de análises de frases iniciais e finais de livros famosos. Ainda que traga aprendizado, não achei tão útil, porque não traz necessariamente os princípios por trás. Parece ser mais um professor se divertindo do que ensinando. Pra piorar, alguns exemplos eram de inglês arcaico, o que ultrapassou minha já limitada capacidade.

Não deixam de serem interessantes as análises, mas como é o autor que faz pra mim e não me ensina a fazer, eu não consigo reproduzi-las. Agora mesmo eu estou lendo minhas frases e não tenho ideia de como começar a analisá-las. No fundo, eu só aprendi a ver como o autor faz a análise, mas eu não consigo captar quais foram os passos que ele tomou até chegar nesse ponto. Seria mais um daqueles casos onde algo é óbvio para o autor, mas não para o leitor?


#CONCLUSÃO

O livro é muito bom, mas é um pouco areia demais pro meu caminhãozinho. Sinto que ainda não cheguei num nível onde consigo apreciar e realmente aprender tudo o que ele tem pra me ensinar. Há uma analogia que o autor usa, dizendo que aprender a usar frases é como treinar escalas e técnicas na Música. Pode até ser, mas aí mora a um estreito limiar entre um músico com alta técnica e pouco coração e um músico com pouca técnica e muita paixão. 

Além disso, um fato interessante: eu comecei a compor muito cedo na música, antes mesmo de entender escalas, tons, cadências, campos harmônicos, etc. O desejo de criar sempre foi latente em mim. Mas, antes de eu conhecer esses termos todos eu já compunha de uma maneira que poderia ser considerada "contemporânea". Quando eu aprendi essas definições, porém, meu estilo mudou muito. Para alguns teóricos, é como se eu tivesse retrocedido em termos composicionais. 

O que quero dizer é que sinto que aqui estou num terreno perigoso, porque saí da Música pela falta de paixão que vi perpassar as diferentes atividades musicais nas quais me metia. Até que ponto escrever é um exercício de prática de uma arte refinada ou um mecanismo de criatividade? A literatura começou na minha vida como este segundo. E disso não quero abrir mão. 

O que vale mais: escrever com estilo e precisão ou simplesmente escrever? Talvez você não produza nada que os críticos aclamem, talvez não escreva nada que ganhe um prêmio Nobel. Mas, e daí? O que é escrever afinal de contas? Se for pra ser que nem a música, melhor parar logo então, enquanto ainda gosto do que estou fazendo. 

Inegável é que a técnica precisa ser aperfeiçoada, mas quando ela deixa de lado o princípio maior, perde sua função. Pergunte a qualquer músico profissional que passou horas sentado tocando escalas e estudos o quanto ele gosta de tocar. Agora compare a resposta dele com um músico que não tem toda essa capacidade, mas grava vídeos no Youtube se divertindo, mesmo tocando mal.

Novamente, o livro é bom. Talvez eu só o tenha lido no momento errado. Consegui vislumbrar muita coisa que nem imaginava, mas também serviu pra mostrar que enxerguei apenas a ponta do iceberg. A verdade, no entanto, é que ainda não estou pronto para mergulhar em águas mais profundas, vamos com calma.

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Resenha – Steampunk: Extraordinary Tales of Victorian Futurism

ASHLEY, Mike (ed.). Steampunk: Extraordinary Tales of Victorian Futurism. New York: Fall River Press, 2012.


Vou me arriscar e tentar explicar o que é "Steampunk", embora tenha certeza que você encontra definições por aí. A meu ver, trata-se de uma variação de ficção científica, mas com uma base sociocultural da Europa do fim do século XIX. Ou seja, um futuro onde a primeira fase da Revolução Industrial ainda se faz presente. Uma mistura única de engenhocas mecânicas (muitas delas movidas a vapor ou carvão, gerando eletricidade), forças magnéticas ocultas e reações químicas. Tudo isso num contexto vitoriano, com telégrafos, autômatos, carros voadores e aquele chazinho inglês de fim de tarde.

O livro é uma antologia de contos steampunk. Mike Ashley, que já é um editor de ficção científica com uma boa bagagem nas costas, se propõe a reunir autores com essa temática. Pra alcançar esse feito, numa empreitada mais enciclopédica do que literária, Ashley pega autores da época, ou seja, aqueles que são realmente do fim do século XIX e que escreveram a ficção científica do seu tempo num estilo que hoje chamamos de steampunk.


O começo do livro engana, porque o conto até que é bem escrito e interessante. Mas infelizmente esta é uma exceção do livro. De modo bem geral, a escrita dos contos é entediante e mal feita. Olha o caso do conto do autômato enxadrista: já li outro livro sobre este fato (que é deveras bem interessante). Mas no caso do conto no livro, a narrativa me decepcionou. Muito, mas muito mal escrito. Frustração do começo ao fim. Interessante como, depois de ler algumas coisas com olhos de escritor, a gente começa a identificar essas coisas com certa naturalidade.

E a coisa se repete. Acho que o editor, no desejo de reunir contos "verdadeiramente" steampunks, (ou, pelo menos, de autores que estavam mais próximos das ideias do gênero em si) findou por juntá-los sem um crivo de total excelência. Não é que os contos sejam escritos com erros ou falhas grosseiras, é só que fica evidente que não são o melhor que se pode oferecer -- ou será que é?

Por outro lado (não que se justifique) é interessante notar que muitos dos contos, que são necessariamente ficção científica aos nossos olhos, eram tidos como verossímeis na época em que foram publicados. Tal é o caso, por exemplo, da ideia de que a Terra era oca e havia entradas para o centro dela nos Polos. Entendam: está-se falando de uma época em que nenhum explorador sequer havia ainda chegado nesses extremos! (Polo Norte foi visitado pela primeira vez em 1909 e o Sul em 1911).

Tanto é o caso, que alguns autores não têm pena de utilizar linguagem pseudocientífica pra fortalecer seus argumentos. É tudo ficção, evidente, mas aponta para uma marca da época. Quem não lembra de Júlio Verne, cuja explicação de alguns fenômenos, várias vezes, fazia até um bocado de sentido? Falando assim, me pergunto se eu não olhei o livro com olhos contemporâneos demais. (Mas, nesse caso, com que olhos eu o veria?!)
"What the world can sell, Miss Haffkin -- or, in other words, what money can buy -- has very little value beyond the necessaries of life. It is what money cannot buy, what the world has not got to sell, that is really precious." (p. 86, ênfases minhas, conto "From Pole to Pole" de George Griffith)
Naturalmente, a ver a época em que foram escritos, os contos trazem fortes traços românticos em vários momentos. O romantismo ainda é muito forte e evidente, pelo menos na maioria dos contos, embora alguns sejam permeados ainda pelo gótico que a gente viu lá em Shelley (autora de Frankenstein). E, falando nela, no conto da "vivificação" senti a mesma agonia ao ler Frankenstein quando o autor passa por cima do processo de ressuscitação e segue a história (kkkkk), acho que sou muito curioso.

É sempre bem interessante ver o presente com os olhos do passado, enquanto o "agora" ainda era "futuro" (frase bonita, né?). Digo isto porque revela como era diferente a percepção de visionários de dois séculos passados; some-se a isso a impossibilidade de sequer imaginar o mundo tal como ele é hoje (a era das comunicações). De todos os autores do livro, foram George Parsons Lathrop ("In the Deep of Time") e Frank Packard ("An Interplanetary Rupture") quem melhor chutaram na direção certa (embora o primeiro seja exageradamente utópico).
"No machinery, however ingenious, and no amount of invention, however marvelous, will ever take the place of willpower and character." (p. 137, "In the Deep of Time")
Algo peculiar: o conto mais interessante do livro, "The Brotherhood of the Seven Kings", não tem nadinha de steampunk. Me pergunto até o que ele está fazendo no livro. Acho que foi incluso porque é uma história que se passa na Inglaterra vitoriana e tem o uso de uma tecnologia como parte da trama, algo que, pelo menos do meu ponto de vista, não justifica a caracterização de "steampunk". Aliás, não fosse a pequena introdução antes do conto, nem saberíamos do que se trata o título. Ocorre que esta história foi tirada de uma série de aventuras com este título, mas o conto em si não tem nada a ver com "brotherhood", tampouco "seven kings".

E já que estamos falando de favoritos, acho que o mais criativo do livro foi "Plague of Lights" de Owen Oliver, uma praga de "luzes" vindas do céu que infecta pessoas e as leva à loucura. Muito boa abordagem e utilização da narrativa pra criar a atmosfera, embora ainda haja aquele romantismo pegajoso permeando a história e deixando meio entediante. 

Por outro lado, o mais bem escrito, com certeza, foi "What the Rats Brought" de Ernest Favenc, que traz a essência de um bom conto: expressar o máximo, utilizando o mínimo. O conto "The Last Days of Earth" de George Wallis quase alcança a primeira posição também; este último, aliás, parece ter sido um dos preferidos do editor, pelo comentário que ele fez.


Agora, se o livro talvez peca na escolha dos autores para compor a antologia, ele se supera em diagramação. Olha, vou te contar, faz um bom tempo que eu não vejo livro tão bem preenchido. As imagens combinam perfeitamente com o estilo do livro, as bordas bem trabalhadas, o texto (à exceção de um ou outro parágrafo) muito bem distribuído.

Sabe o ditado: "Não julgue um livro pela capa"?, pois é. No meu caso, eu não segui ele nadinha (risos), preciso admitir. Eu vi essa capa bonitona e bem trabalhada , folheei as páginas de gramatura espessa, senti o toque do relevo das palavras tanto na capa quanto na contracapa, e, ainda por cima, bati o olho no preço: 5 dólares. Ah! Aí não teve como resistir.


E, afinal, o que se conclui de tudo isso? É uma leitura recomendada ou não? Olha, a resposta é aquela clássica evasiva: depende. Mas, falando sério, depende mesmo. Sabe, é que depende do que você está procurando numa leitura. Perceba que o editor já tem um histórico de reunir contos de determinados estilos e publicar antologias, muitas vezes para fins de registro mesmo, numa tentativa de agrupar de maneira mais ordenada alguns assuntos.

Mas aí, pra mim, isso não vale. Porque eu não tenho necessariamente interesse em saber como os escritores do século XIX escreviam. Sinceramente, como leitor, eu só quero ler coisas boas. Simples assim. E, sinto dizer, muitas dessas histórias não são boas. Algumas ideias realmente eram, mas o jeito de contar é muito, mas muito entediante. Continuando com o sincericídio (copiei essa palavra do prof. Devair), eu dei foi graças a Deus quando terminei de ler o livro.

Só que aí a gente vai pro outro lado: de repente você realmente quer ler literatura do fim do século XIX; de repente você até gosta daquele romantismo pegajoso, com a donzela em perigo, os arroubos de amor perdidos na eternidade, feitos heroicos espontâneos e por aí vai; de repente você é até um pesquisador da cultura steampunk e quer conhecer as origens! Olha aí, seria um prato cheio.

Mas, para mim, steampunk tem que ser mais do que só mexer com geringonças mecânicas, dínamos, dirigíveis, autômatos, seres criados ou modificados pela ciência, etc. Steampunk tem a ver com o constante equilíbrio entre uma crença e descrença no futuro, seja ele movido à energia elétrica, atômica ou outra que nem conheçamos. Tem a ver com aqueles dilemas que permeiam a própria condição humana, que, em determinado ponto, torna-se para sempre vinculada à tecnologia que o próprio ser humano produziu. Ou seja, tem que ser boa ficção científica.

terça-feira, 9 de julho de 2019

Resenha - 2001: A Space Odissey

CLARKE, Arthur C. 2001: A Space Odyssey. London: Orbit, 1998.


Dando continuidade a alguns clássicos da Ficção Científica, foi a vez dessa belezura aqui. Uma coisa que me chamou a atenção pra começar: uma pequena Googlada mostrou que o filme e o livro não são a mesma coisa. Fato interessante, porque dessa vez o livro veio depois do filme (embora tenha sido escrito concomitantemente). Clarke ajudou a escrever o roteiro do filme que se tornou um clássico e depois publicou a obra com adaptações que ele achava melhores.

E vamos começar logo falando do autor. Esse cara era realmente um visionário. Imagine nos anos 60 falar sobre uma tela onde se poderia ler qualquer jornal do mundo em questão de segundos. Impossível! Coisa de ficção científica! Viajar até a lua? Estabelecer uma base em pleno espaço? Que cara louco! Coisa de ficção científica. Um computador capaz de operar sozinho diversas funções? Pff. Só em filme mesmo. 

Como persona de escritor, o autor também é interessante. Por exemplo, ele cita outros colegas da época e dá a devida honra a seus trabalhos. Embora aqui eu fale especificamente da pequena menção que ele faz H. G. Wells, achei válido destacar, porque não é algo que se vê sempre. Além disso, a lista de compositores clássicos citados parecer ser uma jornada mais do autor do que do personagem.

Passando ao enredo, fiquei muito satisfeito em ver uma leitura muito clara e real de uma situação política no futuro. Nada de Estado Único ou distopias. Ainda há governos, presidentes, e a ONU com maior relevância no cenário internacional (essa ainda é uma possibilidade). Isso é bom pra manter um certo realismo da obra em relação à geopolítica global.

Clarke é bem mais detalhista do que os outros dois autores de ficção científica que li. Talvez por conta dessa comparação, em alguns momentos, o texto pareceu muito infodump. É legal ambientar a história e o universo dela (especialmente quando se fala de bugigangas do futuro!), mas penso que quaisquer objetos ou processos deste novo mundo têm que influenciar diretamente na história; caso contrário, melhor fazer um atlas daquele mundo fictício e aí, se eu quiser conhecer, eu compro.

Por outro lado, embora tenha muito infodump, em alguns momentos a descrição é absolutamente fascinante. Naquela cena da reposição do AE-35, fica evidente o que Stephen King falou: nós, por algum motivo desconhecido, somos fascinados com o trabalho. Escreva uma história sobre viagem no espaço. Tá, ok. Agora escreva uma história sobre um encanador fazendo manutenção de uma nave espacial. Uau! Já ficou bem mais interessante. É um mistério: nós gostamos de ler, ouvir e assistir coisas sobre o trabalho.

O miserável do escritor é bom em cliffhangers: deixa pontas soltas nas últimas linhas de alguns capítulos e não tem a menor pressa em desenrolar isso. Como falei, é um mizerávi. Falando em escrita, a conexão entre as diferentes partes do livro é feita de um modo exímio, com naturalidade que só incentiva a continuar a leitura. Aliás, o último 1/4 do livro é tão eletrizante que a leitura passa num tapa. O sangue frio do autor, em chegar no clímax sem pressa, é de causar inveja. Constrói o enredo com cautela, pra deixar bem amarrado.

Pensando no que está no substrato do texto, percebo verdades cristãs no livro, especificamente, o problema do pecado, bem claro no personagem Hal. Ele, ainda que teoricamente incapaz de cometer erros, tem um erro inserido no seu código fonte. Isso necessariamente leva ao conflito interno e, depois, ao externo. Esse trecho é bem revelador: "He was only aware of the conflict that was slowly destroying his integrity -- the conflict between truth, and concealment of truth." (162).

E o Hal é com certeza um dos personagens mais interessantes. Sua participação tem grande relevância, mas ele nem tem tantas falas ou ações assim. O que me interessa mesmo são as reflexões que sua própria existência trazem e como, invariavelmente, elas refletem a natureza humana. No fundo, penso que o autor aponta a curiosidade como o maior instinto humano (pensando ali no final com Bowman).

E, ao que parece, isso interessa também ao autor, uma vez que ele gasta alguns bons parágrafos questionando naturezas, modos de existência (tanto biológica quanto sociologicamente) e não tem medo de entrar na Física para abordar algumas perguntas que tem quebrado a cabeça de cientistas por mais de um século já.

Novamente, tem muita coisa no livro que já faz tanto parte do nosso imaginário, que tomamos por óbvio. Mas, se pensarmos numa imaginação capaz de criar tudo isso, ficamos absolutamente assombrados! O que talvez mais assuste é ver como várias das intuições de Arthur C. Clarke se provaram corretas e como a tecnologia tem se desenvolvido e refletido algumas de suas predições.

Por fim, acho que aquele final -- e a óbvia relação com o começo -- funcionam apenas pelo bem da narrativa. Mas, penso eu, seria bem pouco verossímil. Não tenho certeza de que a mente humana aguentaria algo daquela magnitude e funcionaria tão bem logo após o impacto. Mas aí também já é um preciosismo grande demais, né? Se fosse pra questionar desse modo, eu não leria ficção científica.

Ao final, meu parecer é que a leitura engana. Começa devagar, sem grandes novidades, quase chato. Vai ganhando velocidade bem devagar, sem pressa. Mas, a certa altura do campeonato, o leitor já está engatado numa descida em alta velocidade e fica sem escolha: não tem mais como voltar, agora ele precisa terminar de ler o livro. Se isto não é uma boa leitura, então eu não sei o que é.

terça-feira, 2 de julho de 2019

Resenha - Blade runner

DICK, Philip. Do androids dream of electric sheep? filmed as Blade Runner. London: Gollancz, 2017.


Estou seguindo a lista de clássicos da ficção científica e mandando ver! O da vez foi "Do androids dream of electric sheep?" também conhecido como Blade Runner! Dispensa ambientar demais a história, uma vez que o filme já faz isso de maneira muito boa. Faz muito tempo desde que o assisti nas telas (muito mesmo), então foi como se tivesse visto a história pela primeira vez.

O que me chamou atenção de cara na história, foi um cenário pós-apocalíptico onde a criação de animais era compulsória. E não somente isso, mas o estigma social que era não ter um animal. A que ponto deve chegar uma sociedade para que a conservação da natureza deva ser mandatória não somente a um nível jurídico, mas mesmo como um fato social? (eita, Durkheim!)

O livro, por ser de 1968, tem alguns clichês de filmes policiais -- que pelo menos hoje são clichês, né? Falando sobre o contexto, há um fato interessante na história. Mesmo num mundo pós-apocalíptico, não há "Os russos" e sim "The Soviets". Interessante pensar numa época em que um mundo de equilíbrio bipolar parecia tão certo que até os principais teoristas de Relações Internacionais pensavam assim.

Voltando ao livro, achei interessante como ele trabalha os personagens. Além de traços como a psique, trejeitos, estilos, etc, até sotaques são utilizados (me refiro àquela apresentadora da TV com a fala bem estranha de ler). Ah, e os personagens são interessantes do começo ao fim. Havia na minha cabeça uma expectativa de que Deckard fosse se revelar um androide lá pro final, mas não sei de onde tirei isso; talvez só tenha achado que seria uma boa sacada.


Aliás, ainda sobre personagens, Deckard tinha um dilema: como conviver com o conflito moral de ser um caçador de recompensas que tira vidas pra ganhar seu sustento? Ele respondia a isso justificando que androides não eram seres vivos. Mas depois de ver a geração dos Nexus 6, ficou titubeante. Em vários momentos do livro os androides mostram emoções fortes (raiva e amor).

E há um contraste de Deckard com John Isidore, que é alguém geneticamente danificado pela radiação e, por isso, não considerado mais tecnicamente humano; porém, mesmo assim, tem um coração de ouro e empatia por todas as coisas -- sejam animais, humanos ou androides. O que Isidore aparenta de retardo cognitivo, parece ser o que falta em Deckard quanto à empatia.

O livro todo é muito bem escrito e ambientado. O autor é esperto: usa referências de uma cidade (São Francisco, na Califórnia) que já existe pra situar o leitor. É um bom uso da intertextualidade, que já localiza o leitor sem precisar gastar tempo com isso (hoje em dia basta uma internet pra conhecer o local e os pontos de referência).

Mesmo que no final não tenha acontecido o plot twist que eu esperava, o livro é cheio de reviravoltas. Há dúvida pairando a todo momento sobre a identidade das pessoas e nunca se sabe com certeza quais serão as consequências de determinadas ações. Mesmo tendo o livro um quê de policial, as cenas de ação são curtas e simples, porque esse não é realmente o foco do livro.

Na verdade, a abordagem psicológica e o foco na realidade dura/fria lembra traços de uma literatura noir (o que também está bem próximo de alguma literatura policial). O modo como a história se desencadeia é fantástico: a ação do livro acontece toda num único dia. Uma narrativa magnânima, capacidade de ordenar e coordenar os fatos com maestria.

Vejo mais uma vez o reflexo da realidade dos grandes acontecimentos em nossas vidas: eles não são grandiosos como nos filmes (me refiro especialmente à cena de Deckard e a secretária do inspetor). Isso é bom porque, ainda que seja ficção científica, consegue trazer uma proximidade com o leitor.

Por fim, enquanto em Huxley a reflexão estava à tona, em Dick ela está submersa no simbolismo. O que basicamente este traz é uma reflexão posmoderna: todas as religiões são uma fraude; mas, se ela funciona pra você, então ela é real. [Só pra constar: até mesmo os defensores do posmodernismo já não concordam com esse tipo de flutuação absoluta do conceito de verdade].

Há algo de místico no fim do livro, o que parece minar as próprias filosofias embutidas na narrativa. Apenas cito que a religião "Mercerismo" é uma tônica importante no livro. Ainda que não esteja relacionada diretamente à trama, ela compõe boa parte do contexto da história e tem muita relevância para algumas aplicações e atitudes dos personagens (especialmente os secundários).

Novamente, só me resta recomendar a leitura do livro. Só fico um pouco triste em ver que nomes como Dick e Huxley retratam tão bem o desespero humano pelo contato com o que está além. É o "sensus divinatis" de Calvino. Fica muito evidente nas duas narrativas esse dilema com o que perpassa a condição humana e os caminhos tortuosos que o homem passa pra tentar alcançar isso. Uma triste realidade que perdura ainda hoje.