segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Resenha - O vermelho e o negro

STENDHAL. O vermelho e o negro. São Paulo: Abril, 2010.


Existem livros que são clássicos imortais por um motivo. Existem livros que são tão bons que, quando autores consagrados respondem à pergunta: "Quais livros você considera essenciais que toda pessoa leia?", eles não conseguem deixar "O vermelho e o negro" de Stendhal de fora da lista. O livro é absolutamente sensacional: mas eu não faço ideia do porquê.

Não é que eu não tenha entendido a história, nem que não tenha apreciado o livro como um todo. É que simplesmente não sei dizer exatamente o que é que consegue tornar esse livro tão bom. Porque o livro é muito bom! É fantástico. E é muito interessante porque a história não é nada demais. O que parece ser o grande diferencial é o modo como o autor conta essa história.

O livro se passa em torno da vida de Julien Sorel, um jovem da baixa classe francesa do século XIX que busca ascender socialmente. Mas como fazer isso? Seu desejo é conquistar mérito entrando no exército, mas o clero torna-se o único caminho viável. A história toda se resume a isso. Ele passa então a ser preceptor da família do prefeito da cidade, mas tem um envolvimento com a esposa dele e é mandado para um seminário numa cidade próxima. Chegando lá, por ser muito inteligente, ganha o favor do diretor do seminário e depois é enviado a Paris para ser secretário de um importante nobre; mas, também nessa casa, envolve-se com a filha do marquês. Tudo isso gera um grande conflito que faz o jovem voltar à primeira cidade para cometer um crime terrível que o levaria à morte.

Como podem ver, o enredo não é nada complexo e há pouquíssimas reviravoltas no livro (sério, pelo menos pra mim, houve só duas). E talvez seja exatamente isso, sabe? As coisas se encadeiam de uma forma tão natural que a gente nem percebe que está sendo carregado de tal forma pelo autor que, quando menos esperamos, já estamos em Paris olhando pra trás e vendo como as coisas aconteceram. A leitura é espantosamente fluida. Eu li todas as quase 700 páginas em uma semana. 

O estilo do autor também é muito seco, mas não é um seco que agride o leitor, mas que o faz caminhar de maneira mais rápida e aguça a criatividade do leitor. Em contraste com várias leituras que tenho feito, ele consegue não exagerar nas descrições e até mesmo a fala dos personagens, bem como o encadeamento das ideias é tão direto que a gente precisa parar um pouco depois que lê. 

Eu chamei isso de "seco" mas a palavra que quero na verdade é "simples". Há uma elegância inerente ao modo que Stendhal escreve, fazendo a gente caminhar pela história e se envolver com a psique dos personagens que em alguns momentos parece que já os conhecemos há muito tempo. Ainda que haja um certo romantismo piegas em alguns momentos do livro, este tom não se sobrepõe na obra e há muito mais cinismo presente do que melosidade. 

Stendhal não tem pena de atacar o momento em que vivia. A coisa oscila entre os monarquistas e os napoleonistas num contexto em que os primeiros tentam de toda forma garantir seu poderio. O título da obra, segundo alguns estudiosos, teria a ver com a dicotomia entre o exército e o clero que perpassa Julien durante todo o livro, mas isso não é esclarecido por Stendhal, tampouco é consenso entre os acadêmicos. Eu mesmo não tenho a menor ideia do que significa o título; não tivesse lido esses comentários de estudiosos, arriscaria dizer que "vermelho" tendia ao amor/paixão e o "negro" à morte, que são dois temas relevantes na história. Mas até mesmo depois de ter dito isso, não me convenço totalmente.

Ele ataca também a falsidade do clero, desenhando-os como verdadeiros agentes políticos e nada religiosos -- aliás, a própria ideia de Deus é descartada, seria apenas uma construção despótica. Há também muitas críticas aos modos do século XIX como um todo, a toda aquela pompa que era apenas uma máscara para a falsidade e resultava, invariavelmente, no tédio.

Mas se tem algo que este livro não vai causar no leitor é tédio. Vi-me envolvido pela leitura de maneira fascinante. Tanto que, até agora, ainda não sei direito como o livro conseguiu ser tão bom. Mais do que um clássico, "O vermelho e o negro" é realmente uma obra-prima da literatura. 

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Resenha - Frankenstein

SHELLEY, Mary. Frankenstein. Herts: Wordsworth Editions Ltd, 1997.


Essa é uma resenha pra desconstruir noções erradas sobre esse clássico maravilhoso. Antes de entrar nelas, cabe lembrar que esse aqui é considerado o berço da ficção científica e quem deu origem a isso foi uma mulher, Mary Shelley, em 1818 (guardem essa data que será importante para entender algumas das considerações que farei adiante). Mas vamos lá. Vou direto ao ponto: 

1) "Frankstein" NÃO é o nome do monstro!
A história gira em torno de um cientista genovês chamado Victor Frankenstein, que, em seus estudos de química e física, as "ciências naturais", depara-se, sem querer, com a fórmula para a criação da vida. Absorto por essa descoberta, ele então parte para a criação de um ser vivo, montado a partir de partes que ele consegue e juntadas numa única criatura horrenda, gigantesca para os padrões humanos e dotada de diversas capacidades físicas e intelectuais.

2) O monstro de Frankestein NÃO é verde e NÃO tem cicatrizes ou parafusos na cabeça!
Ou pelo menos o livro não menciona isso em hora nenhuma. Na verdade, Shelley menciona sim a cor da pele do monstro: é amarela! Sim, não leram errado. O que deve ter acontecido é que, para ocupar melhor as telas do cinema na década de 1930 (primeira edição de um filme do monstro) a cor tenha sido escolhida por se destacar melhor e daí acabou se consolidando na cultura pop. 
Agora quanto aos parafusos, a testa gigante e as marcas de costura da pele no rosto, aí não tem como justificar. Não tem nada a respeito disso no livro. Isso também se popularizou graças, provavelmente, à construção cinemática dele, que depois foi fortalecida pela televisiva. Aliás, não está nada de parabéns a tal de "Becky Surridge", a ilustradora da capa do livro. Não só ajudou a consolidar ainda mais uma imagem errada no imaginário popular, como fez um péssimo trabalho como capista. Qualquer iniciante no Photoshop teria feito coisa melhor (essa mulher já tem má fama por algumas capas e, o pior: como é que a Wordsworth deixou algo assim acontecer?!)

3) O monstro de Frankenstein NÃO é estúpido e NÃO anda devagar com braços esticados.
Por Deus, se tem uma coisa que esse monstro não é isso é ser estúpido ou lento! Muitíssimo pelo contrário! O monstro tem uma altíssima capacidade intelectual, não somente de raciocínio, mas a fala dele é melhor que a de Frankenstein, sua capacidade de montar estratagemas em muito excede a do próprio criador e tem o detalhe que aparentemente todos esquecem: ele tem força e velocidade inumanas! Ele é capaz de escalar uma montanha em poucos segundos, saltar distâncias colossais e mover-se com tamanha agilidade que ninguém conseguia alcançá-lo. Como se não fosse suficiente, ele é capaz de sobreviver com uma dieta exclusivamente vegetariana e sobreviver a temperaturas extremas de modo que nenhum ser humano conseguiria fazer.

Bom, tendo desconstruído alguns dos mitos que esse livro carregava, acho que cabe fazer uma pequena análise. Primeiro, eu li dessa vez o original em inglês (na adolescência já o havia lido em português). Isso fez certa diferença porque tive que lidar com toda chatice do inglês elizabetano do começo do século XIX. Aff, é por causa desse tipo de linguagem que tantos jovens odeiam clássicos.

Charles Kieffer (escritor brasileiro, para quem não conhece) no seu livro "Para ser escritor" (2010) explica que em tempos passados era importante que o escritor descrevesse cenas nos mínimos detalhes, mas o objetivo era um só: encher linguiça pra ter muitas páginas pra publicar. O que acontece é que tinha que "valer a pena" pro editor realizar impressões, daí que um bom escritor sempre teria muitas páginas. Mas soma-se a isso outra coisa: o estilo de escrita da época. 

Aff, meu Deus. Quanta coisa não daria pra cortar dos imensos parágrafos cheios de descrição sobre as árvores, o céu, a cor do luar, "as montanhas entrecortadas pela luz que trazia à elas um aspecto lúgubre, ora do oriente, ora do ocidente". Cara, esse inglês dessa época é cruel para o leitor contemporâneo (ou pelo menos para este leitor contemporâneo). Eu li Orgulho e Preconceito no original também (que, por acaso, é da mesma década de Frankenstein!) e Deus tenha misericórdia: as coisas tem que ser descritas nos mínimos dos mínimos detalhes em uma série de frases supérfluas que em absolutamente nada contribuem para o desenvolvimento da história de maneira ativa ou direta.

A história é carregada mesmo pelos capítulos em que algo acontece: seja Frankenstein criando o monstro, seja o criador abandonando a criatura, seja a criatura aprendendo a falar e se comportar apenas observando humanos, sejam as injustiças que os humanos causam à criatura, seja o criador em estado de choque pelo que tinha feito, seja a criatura e o contato dela com o criador, seja o ódio crescente que ambas as partes passam a nutrir um pelo outro. É isso que move a história.

O parágrafo anterior spoilou o suficiente do livro pra dar uma noção do que acontece nele. Para mim, o livro todo gira em torno desta pergunta: Quem é o verdadeiro monstro? O monstro de Frankenstein, para mim, é um ser lúcido, capaz de bondade e amor, mas deturpado pelas injustiças do mundo voltou-se para o mal e o ódio, tornando-se um assassino de inocentes. Por outro lado, Victor Frankensetein é um cientista que, tomado pela loucura de um conhecimento que ninguém nunca teve acesso (aliás, Mary Shelley é genial em apontar que seu personagem descobre o segredo, mas não se atreve a descrever nadinha dele ao leitor, deixa tudo na imaginação!) e com esse conhecimento partir para a criação de um ser horrendo, que nunca deveria ter existido, deixá-lo para morrer e negar-lhe qualquer chance de companheirismo ou salvação.

Tudo isso revolve muito na filosofia da época. Mary Shelley com certeza foi influenciada por Rosseuau e pela ideia do "bom selvagem". O monstro é retratado como tendo nascido bom, mas corrompido pela sociedade e pelas injustiças que passou, não tendo outra escolha senão recorrer ao ódio (o monstro fala isso exatamente com essas palavras no livro). Mas isso não me convence. Só o que ouso dizer é que isso foi reflexo do Zeitgeist da época da autora, o que é absolutamente natural. No final, fico verdadeiramente em dúvida o que monstro era e até que ponto concordo ou não com suas motivações. É um dilema muito interessante.

O monstro é um total recluso. Não é aceito em nenhuma sociedade e não tem ninguém que possa chamar de "par" ou "igual". Como seria uma pessoa que fosse obrigada a viver nessas condições? E até que ponto a tecnologia pode realmente ajudar a humanidade ou se torna só um instrumento para coisas inimagináveis? Viram só? É a essência da ficção científica. Ah! Só um pequeno spoiler pra aguçar a curiosidade: em determinado momento, o monstro encontra-se com seu criador e pede para que ele construa um ser que fosse igual a ele, mas fêmea. E Victor Frankenstein aceita.

Tem tanta coisa que eu ainda poderia falar, mas acabaria entrando demais na história e faria o leitor perder o gostinho das surpresas que o livro traz (como, por exemplo, como em determinado momento fica evidente que não é o criador que comanda a criatura, mas exatamente o contrário — o mestre se tornando escravo). Por favor leiam (em português talvez seja uma leitura menos cansativa) e acompanhem as loucuras da criatura e do criador, das injustiças cometidas contra o monstro e a dor pela qual passa Frankenstein. Esse livro é sensacional é um absolute must read para todos os admiradores de ficção científica e, depois que lerem, me respondam: quem é o monstro?

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Por essa ninguém esperava

- A Giovana?! - ela perguntou, incrédula.
- A Giovana. - a outra disse, com um meneio da cabeça.
- A Giovana...


Estava eu andando de carro quando ouço uma conversa. E aí veio esse microconto.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

O café

Sentou-se em frente ao computador, bebericando seu café com leite numa caneca branca. Leu as notícias com calma, tomando o maior cuidado para não deixar respingar nada em seu robe de seda de cor vinho. Suas pernas elegantemente cruzadas moviam-se vagarosamente, fazendo suas pantufas de elefante balançar. 

Então seu celular tocou. Não havia tempo a perder. Seu rosto tensionou-se, seus pensamentos tornaram-se afiados, seu corpo inteiro preparado. Num movimento rápido, ele deixou o café sobre a mesa de mogno e pegou o aparelho com a mão que, num veloz deslize de dedos, acendeu a tela na qual ele leu a mensagem: “Traz o café, acabou aqui.”

“Putz, isso é o código do quê mesmo?”, pensou, enquanto levantava-se de súbito. “Caramba, onde foi que deixei a lista dos códigos? Acho que esse é o de remoção do objeto de interesse número cinco, quase certeza... ou o codinome desse era 'bolacha'? Não... era 'biscoito', ah sei lá!”

Revirava furiosamente as gavetas do criado-mudo próximo à cama, onde encontrou um papel em que leu uns borrões. Era a lista de objetos de interesse. O que estava associado a ele era o relógio de pulso de Babashi, um chefe do crime organizado local. Não havia tempo a perder. Tinha que localizar seu alvo, e rápido.


Ficou curioso? O que será que vai acontecer? Fiquei bem contente em escrever esse conto e ver ele selecionado para a Antologia Inquietação, disponível na Amazon.com por meio deste link. Depois confere lá!